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Kaio

 

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31 dezembro 2019

Top 20: os melhores álbuns da década

20. After Laughter (Paramore) - 2017
Quem diria que um dia o Paramore, uma banda com longa associação ao emo, faria um disco que eu gostaria? Hayley Williams e cia. investiram em uma estética new wave, e o resultado foi mais do que satisfatório. Os arranjos estão caprichados e as melodias serelepes de Taylor York estão em um delicioso contraste com as letras deprimidas de Hayley (que mostrou um grande amadurecimento como compositora). After Laughter está longe de ser um guilty pleasure; é um notável salto artístico de um conjunto que até então estava associado à "geração Crepúsculo".
Destaques: "Hard Times", "Rose-Colored Boy", "Told You So" e "Fake Happy".

19. The Next Day (David Bowie) - 2013
Bowie volta a lançar um álbum de estúdio após uma década, com um álbum que, apesar da capa iconoclasta (profanando a  de outro disco dele, "Heroes"), é um bom resumo das tendências estilísticas que adotou ao longo de quatro décadas e meia: a melancolia à la Low em "Where Are We Now?", o solo de guitarra glam de "Valentine's Day", o flerte com a eletrônica de "Love Is Lost" e o rock alternativo à la Scary Monsters da faixa-título e de "The Stars (Are Out Tonight)".
Destaques: "The Next Day", "The Stars (Are Out Tonight)", "Love Is Lost" e "Where Are We Now?".

18. More Light (Primal Scream) - 2013
A discografia do Primal Scream é tão eclética quanto irregular. Felizmente os pontos altos são bem altos: Screamadelica (1991), Vanishing Point (1997), XTRMNTR (2000) e o mais recente deles, More Light. A banda se atém aos seus pontos fortes: altas doses de psicodelia, combinação de rock com eletrônica e letras politizadas.
Destaques: "2013", "River of Pain", "Culturecide" e "It's Alright, It's Ok".

17. Plastic Beach (Gorillaz) - 2010
Damon Albarn fez em Plastic Beach o álbum do Gorillaz menos focado em singles e com maior arquitetura temática; a propósito, o último disco tão amarrado conceitualmente de Albarn havia sido The Great Escape (1995), do Blur. O resultado é amplamente satisfatório, especialmente na primeira metade do disco.
Destaques: "White Flag", "Stylo", "Some Kind Of Nature" e "On Melancholy Hill".

16. Post Pop Depression (Iggy Pop) - 2016
Com a ajuda crucial de Josh Homme (Queens of the Stone Age), que produziu este disco e recrutou o baterista dos Arctic Monkeys e o guitarrista dos Queens, Iggy Pop lançou seu melhor trabalho em 40 anos (sim, desde a dupla The Idiot e Lust for Life, produzidos e co-escritos por Bowie em 1977). As letras estão bem auto-biográficas, como indica este trecho de "American Valhalla": "I've nothing but my name".
Destaques: "Break Into Your Heart", "Gardenia", "American Valhalla" e "Paraguay".

15. Modern Vampires Of The City (Vampíre Weekend) - 2013
Um dos discos mais elogiados da década pela crítica especializada, Modern Vampires Of The City é de fato muito bom, mas como vocês verão acho que há pelo menos outro álbum da banda superior a ele (embora para mim o ápice do Vampire Weekend seja o debut, de 2008). Com uma ou outra exceção (em especial a frenética e excelente "Diane Young"), este CD é mais lento do que os dois trabalhos anteriores do conjunto nova-iorquino. As letras estão mais reflexivas, e compõem um interessante painel político e cultural de NY.
Destaques: "Unbelievers", "Step", "Diane Young" e Ya Hey".

14. Tranquility Base Hotel & Casino (Arctic Monkeys) - 2018
Talvez o disco do qual mais discordei da opinião dominante tanto da crítica quanto dos fãs. Tranquility foi mal compreendido e julgado como um disco auto-indulgente, talvez porque seja bem diferente de seu antecessor, AM (2013), mais comercial e acessível (mas que nem acho tão bom assim). Não importa: as letras de Alex Turner estão cada vez melhores (em especial as debochadas "Star Treatment" e "Four Out Of Five"), e o ritmo mais vagaroso das canções dá a elas uma certa elegância, ainda mais quando ornamentada por flertes com space rock, glam, lounge pop e o Bowie de Young Americans (1975).
Destaques: "Star Treatment", "Tranquility Base Hotel & Casino", "Four Out Of Five" e "She Looks Like Fun".

13. Right Thoughts, Right Words, Right Action (Franz Ferdinand) - 2013
Continuo acreditando no que disse sobre este CD há 6 anos: "o quarteto escocês mantém o alto nível de sua discografia com um disco menos conceitual que seu antecessor Tonight, mas tão urgente quanto o debut de 2004. A tradição do FF de canções dançantes se mantém com 'Right Action' e 'Love Illumination'; outras faixas de destaque são a profana 'Evil Eye', o romance contado do break-up ao início em 'The Universe Expanded' e uma bela reflexão sobre a finitude em 'Fresh Strawberries'." Só adicionaria um elogio à maravilhosa progressão rítmica da ensolarada "Stand On The Horizon".
Destaques: "Right Action", "Evil Eye", "Love Illumination" e "Stand On The Horizon".

12. The Magic Whip (Blur) - 2015
Em uma década marcada por retornos após longos hiatos (vide #19, #5 e #2), o 8º CD do Blur foi o que teve a origem menos planejada: as bases para as 12 canções foram gravadas durante os 5 dias em que a banda estava à toa em Hong Kong, devido a um show cancelado. Um ano depois, o guitarrista Graham Coxon co-produziu as canções com o produtor de longa data Stephen Street, e o vocalista Damon Albarn, que estava em turnê para divulgar seu disco solo Everyday Robots (2014), passou um dias na cidade anglo-chinesa para se inspirar para escrever as letras. The Magic Whip é um dos álbuns mais consistentes do Blur; pode até não ser um dos melhores, mas é um dos com menos "fillers". As melhores faixas são "Lonesome Street" (que parece um elo entre o perfeccionismo melódico The Great Escape e as mudanças bruscas de sonoridade do álbum homônimo de 97) e "New World Towers" (uma reflexão sobre os efeitos íntimos da globalização).
Destaques: "Lonesome Street", "New World Towers", "Go Out" e "Ong Ong".

11. Pala (Friendly Fires) - 2011
Dos CDs incluídos nessa lista, este foi um que para mim mais foram "trilha sonora" do ano em que foram lançados. Ouvi muito Pala no fim de 2011, pois gostei de como a banda combinou a pegada indie e dançante de seu primeiro álbum com toques de funk e psicodelia, criando canções tão animadas quanto viajadas. O Friendly Fires só voltaria a lançar um disco agora em 2019 (e Inflorescent é bom, diga-se de passagem), e talvez esse longo silêncio tenha ajudo a mostrar que Pala passou no teste de longevidade.
Destaques: "Live Those Days Tonight", "Hawaiian Air", "Hurting" e "Helpless".

10. Let England Shake (PJ Harvey) - 2011
"Goddamn Europeans! / Take me back to beautiful England / And the grey, damp filthiness of ages" (trecho de "The Last Living Rose"). No início da década, o patriotismo britânico ainda não estava contaminado pelo debate do Brexit (independentemente do mérito do "Remain" ou do "Leave"), o que torna este grande álbum de PJ Harvey ainda mais sintomático, até mesmo porque uma de suas canções - "The Words That Maketh Murder" - trata de outro tema que hoje em dia já soa antiquado (a Guerra do Afeganistão). Let England Shake é bem "frontloaded", já que suas melhores canções estão logo no início; de toda forma, o arco temático estimula que seja ouvido na íntegra.
Destaques: "Let England Shake", "The Last Living Rose", "The Glorious Land" e "The Words That Maketh Murder".

9. Contra (Vampire Weekend) - 2010
Nos primeiros dias da década, o Vampire Weekend lançou um CD que, apesar de ter estreado em 1º lugar nas paradas americanas, era marcado pelo experimentalismo sonoro (como demonstram faixas como "Horchata" e "Diplomat's Son"), embora algumas faixas mantenham o estilo indie do álbum anterior (como "Cousins", tão  enérgica que parece um frevo).
Destaques: "White Sky", "Holiday", "Cousins" e "Giving Up The Gun".

8. A Moon Shaped Pool (Radiohead) - 2016
Em um disco triste para os padrões já sorumbáticos do Radiohead, Thom Yorke reflete, dentre outros temas (há espaço para a polítizada "Burn The Witch", p.ex.), sobre o fim de seu casamento. Mesmo o fato de "True Love Waits" (canção que já constava nos shows da banda desde 1995) finalmente  ter entrado em um álbum do Radiohead é profundamente simbólico, pois foi só depois de encerrar seu longo relacionamento que Yorke gravou a versão definitiva da canção da banda que expõe o amor de forma mais aberta e transparente: "And true love waits / In haunted attics / And true love lives / On lollipops and crisps / Just don't leave / Don't leave".
Destaques: "Burn The Witch", "Daydreaming", "Tinker Tailor Soldier Sailor Rich Man Poor Man Beggar Man Thief" e "True Love Waits".

7. Father, Son, Holy Ghost (Girls) - 2011
Um dos álbuns mais catárticos da década, composto por um artista de infância e adolescência trágicas (foi criado numa seita, o pai o abandonou, a mãe se prostituía, o irmão faleceu precocemente...) e uma vida amorosa aparentemente turbulenta (como indica a desiludida "Alex"). A banda Girls acabaria apenas um ano depois, mas a despedida não poderia ter sido mais contundente: há canções que remetem a Beach Boys ("Honey Bunny"), Deep Purple ("Die"), Pink Floyd ("Vomit"), dentre outras influências clássicas.
Destaques: "Honey Bunny", "Alex", "Die" e "Vomit".

6. The Suburbs (Arcade Fire) - 2010
A temática suburbana já havia sido delineada na tetralogia "Neighborhood" em Funeral (2004), mas o Arcade Fire resolveu ir além e fazer dela um álbum conceitual. The Suburbs foi o maior êxito comercial da banda (e ganhou até Grammy de Álbum do Ano), e tal reconhecimento é bem merecido - como bem definiu a Rolling Stone brasileira na época em uma matéria sobre os melhores discos de 2010 (nº 52, Janeiro/2011), ele combinou, com ousadia, "a grandiosidade do rock de arena às experimentações só permitidas a uma banda indie nos limites do mainstream" (p. 80).
Destaques: "The Suburbs", "Ready To Start", "Suburban War" e "Sprawl II (Mountains Beyond Mountains").

5. Random Access Memories (Daft Punk) - 2013
Embora tivesse lançado a trilha sonora de Tron: Legacy em 2010, o Daft Punk não lançava um disco de verdade desde 2005 (Human After All) - e, se considerarmos que este havia sido irregular, até pela composição a toque de caixa, era Discovery (2001) o último trabalho de ponta do duo eletrônico francês. Random Access Memories compensou muito bem essa longa espera: é o conjunto de canções mais "orgânico" do Daft Punk, com menos ênfase na eletrônica e mais na musicalidade - a qual é ainda mais calcada na disco e nos anos 70 do que Discovery. As participações especiais de Giorgio Moroder, Pharrell Williams e Julian Casablancas também contribuem para a magia deste álbum.
Destaques: "Give Life Back To Music", "Giorgio By Moroder", "Instant Crush", "Get Lucky" e Contact".



4. Night Thoughts (Suede) - 2016
O Suede voltou em grande estilo com Bloodsports (2013), mas foi Night Thoughts que chegou às alturas dos melhores discos da banda: Suede (1993), Dog Man Star (1994) e Coming Up (1996). É com o segundo destes três álbuns que este CD possui maior afinidade estilística (uma combinação de glam com traços de post-punk, art rock e, no caso de "I Don't Know How To Reach You", até progressivo), embora as letras já não sejam sobre uma juventude junkie e decadentista, e sim sobre um pai de família angustiado com o futuro que espera seus filhos, mas também nostálgico de alguns momentos de sua juventude.
Destaques: "When You Are Young", "Outsiders", "No Tomorrow", "I Don't Know How To Reach You" e "Like Kids".



3. Blackstar (David Bowie) - 2016
O canto de cisne de um dos maiores artistas dos últimos 50 anos é um álbum magnífico, cuja arquitetura lembra muito a de outro disco icônico de Bowie, Station to Station (1976): apenas 40 minutos de duração, poucas canções (7, metade do número de faixas de The Next Day), uma faixa-título épica (que combina jazz e rock progressivo e apresenta uma tocante letra de despedida, uma espécie de testamento), uma canção intermediária com simbolismo religioso ("Lazarus") e um encerramento ("I Can't Give Everything Away") tão belo quanto fúnebre. Blackstar entra tranquilamente também no top 10 de melhores álbuns de David Bowie.
Destaques: "Blackstar", "Lazarus", "Sue (Or In A Season In Crime"), "Girl Loves Me" e "I Can't Give Everything Away".



2. m b v (My Bloody Valentine) - 2013
Depois de 21 anos e 3 meses, poucas pessoas ainda acreditavam que o My Bloody Valentine lançaria o seu terceiro álbum, o sucessor do lendário Loveless (1991). Mesmo o lançamento, em meados de 2012, da compilação EP's 1988-1991 e das versões remasterizadas de Isn't Anything (1988) e Loveless não foi o suficiente para diminuir a surpresa dos fãs da banda quando, no início de Fevereiro de 2013, o álbum m b v foi disponibilizado de forma quase singela, por download pago no site de banda e, horas depois, por vídeos no YouTube de cada faixa (algo que não era tão comum na era pré-Spotify). As expectativas foram altas, e ainda assim a banda conseguiu superá-las. O álbum começa com uma trinca de faixas mais similares à estética de Loveless ("She Found Now", "Only Tomorrow" e "Who Sees You"), seguida de um trio de canções mais melódicas ("Is This And Yes", "If I Am" e a melhor do álbum, "New You") e um desfecho com três canções mais experimentais (a propulsão de "In Another Way", o drum 'n' bass/jungle de "Nothing Is" e, em especial, "Wonder 2" e seu loop de helicóptero). Kevin Shields procrastinou, mas voltou duas décadas depois com um álbum tão poderoso quanto os dois com os quais pavimentou a estética do shoegaze.
Destaques: "She Found Now", "Only Tomorrow", "If I Am", "New You" e "In Another Way".





1. Reflektor (Arcade Fire) - 2013
Fiquei surpreso ao reler minha lista dos melhores álbuns de 2013 (que, aliás, foi o ano de lançamento de 7 dos discos deste top 20 da década) e descobrir que coloquei Reflektor apenas como "menção honrosa". Ao longo dos últimos seis anos passei a valorizá-lo cada vez mais; apesar de ser um CD duplo, ele não comete o pecado de sacrificar a qualidade em nome da quantidade. Pelo contrário, a maioria esmagadora das 13 faixas pode ser elencada entre as melhores composições desta banda canadense. É um trabalho extremamente ambicioso, com letras carregadas de referências culturais (desde Kierkegaard e mitologia grega até Orfeu Negro), uma participação especialíssima de David Bowie na faixa-título, experimentos sonoros (com um flerte com música dançante e eletrônica que era no máximo sugerido em faixas de discos anteriores, como "Sprawl II") e produção caprichada de James Murphy (LCD Soundystem). Entre os momentos mais sublimes do álbum estão a discoteca filosófica de "The Reflektor", a repentina transição do punk para o glam em "Joan of Arc", a catártica "We Exist", o tom épico de "Awful Sound (Oh Eurydice)", a melancólica mas contagiante "It's Never Over (Oh Orpheus)" e a  etérea "Afterlife".
Destaques: "Reflektor", "We Exist", "Joan Of Arc", "Awful Sound (Oh Eurydice)", "It's Never Over (Oh Orpheus)" e "Afterlife".

Menções honrosas: Bloodsports (Suede) e Tourist History (Two Door Cinema Club).

19 dezembro 2019

Uma Antropóloga e Socióloga Combativa


Alba Zaluar foi uma das maiores antropólogas e sociólogas brasileiras. Tive o prazer de conhecê-la no IESP-UERJ durante o mestrado; mas, foi só no 1º semestre do doutorado, em 2014, que fiz minha primeira matéria com ela - Estudos Exemplares em Ciências Sociais. Ela e o professor Fabiano Santos fizeram uma ótima seleção de bibliografia para o curso, incluindo autores como Wanderley Guilherme dos Santos (outro grande cientista social que nos deixou esse ano), Oliveira Viana e Sérgio Buarque de Holanda - cuja aula ficou sob responsabilidade de Alba. Foi a 1ª vez que tive contato com seu famoso estilo polemista e contundente. Ela questionou enfaticamente o conceito de "homem cordial" e discordou da interpretação "oficial" da USP sobre este autor, para espanto (e, em alguns casos, até indignação) dos meus colegas de turma. O debate foi animado.

Dois anos depois, no dia 6 de Maio de 2016, eu precisava definir meu orientador de doutorado, já que por uma regra maluca da CAPES o meu orientador de mestrado Cesar Guimarães, da Ciência Política, não poderia orientar um aluno de Sociologia, mesmo que os dois cursos estejam umbilicalmente unidos no IESP-UERJ (e no antigo IUPERJ). Um amigo me sugeriu conversar com a Alba, pois, embora o meu tema de pesquisa ("A crise da cultura moderna segundo José Guilherme Merquior") não fosse necessariamente algo que ela pesquisava, ela tinha uma formação ampla e uma abertura para dialogar com meu tema. Enviei um e-mail, o qual ela respondeu apenas 2 horas depois. A resposta não poderia ter sido mais animadora:
"Olá Kaio
Realmente não conheço a obra do José guilherme Merquior, embora o tenha conhecido pessoalmente nos debates da Casa Grande quando você ainda não era nascido. rsrsrs.
Mas o assunto sempre me fascinou e li sobre a crise da cultura em Hannah Arendt, Stuart Hall e um monte de antropólogos sobre a cultura que nunca se disse moderna.
Assim sendo, podemos conversar e espero poder lhe ajudar."

Durante os dois anos de orientação, a Alba se ofereceu para me enviar artigos da New Left Review que tivessem a ver com o meu tema, afinal publicaram artigos seminais do marxismo ocidental - corrente com a qual Merquior muito debateu em seus livros e artigos.
Cheguei a fazer uma disciplina dela sobre antropologia cultural em 2017, mas o momento da orientação em que ela foi mais ativa foi justamente no último mês antes de eu enviar e defender a tese. Aliás, foi durante esse período (Maio a Junho de 2018) que fiquei sabendo que ela estava com câncer. Nos últimos dias antes da entrega, ela foi lendo meus capítulos, fazendo sugestões e críticas e, é claro, me cobrando para terminar logo, afinal já tínhamos marcado a data da defesa - que deliberadamente marquei para o dia do meu aniversário (29 de Junho), não só pelo aspecto simbólico mas também por uma questão prática (era o único dia da semana sem jogos da Copa do Mundo).
Enfim terminei a tese no dia 16/6, e dois dias depois entreguei as cópias para os professores. Ela fez um comentário brincalhão no Facebook: "Ótima tese, cuidadosa, erudita e levada a termo obsessivamente. Não queria parar de escrever! Doeu por o ponto final. Desconfio que ainda está escrevendo escondido de nós!" A foto que acompanha este texto é do dia da defesa. No final, ela disse que tinha sido uma das melhores bancas da qual havia participado, pois aprendeu muito com os outros professores (que eram de áreas diversas como Letras e Ciência Política).

Eu estava perdido no período "pós-doutorado", afinal não haviam aparecido ainda os concursos para professor e para não ficar totalmente parado eu estava apenas dando aulas particulares. A partir de Setembro do ano passado, a Alba me deu um apoio imensurável, expresso na idéia de eu catalogar os livros dela para futura doação ao Museu Nacional. Ao longo das cerca de 20 visitas à casa dela (sendo uma delas na casa de campo em Araras, em Abril desse ano), cataloguei 2860 livros. Faltava provavelmente só mais uma ida para eu concluir o catálogo, que chegaria aos 3 mil livros. Na última vez que a vi, na segunda-feira dia 9 de Dezembro, combinamos de eu voltar na quinta, dia 12. Quando eu estava indo embora, ela me disse um "Obrigado!" que me causou uma sensação diferente, quase como se fosse em tom de despedida.
Cheguei na quinta de manhã no prédio dela, mas o porteiro me avisou que ela não estava em casa; havia sido internada na noite anterior. Fiquei atônito, e me preparei emocionalmente - ainda mais considerando que, na última vez que a vi, ela estava lúcida, mas com dificuldades para se alimentar.
Recebi há alguns minutos a notícia de que minha querida orientadora (e amiga) nos deixou.
Pretendo fazer a minha parte para que esta geração e as próximas conheçam o enorme legado intelectual dela para a Antropologia e a Sociologia no Brasil, e também para que saibam que ela era um ser humano magnífico. Sempre polêmica, sempre afiada, sempre combativa (digamos que ela levava bastante ao pé da letra a frase de Bourdieu de que "A sociologia é um esporte de combate"). Provavelmente criou muitas inimizades com sua postura geniosa, rebelde e inconformista, mas também deixou muitos admiradores - e orientandos que, como eu, têm muito a agradecê-la por tudo que ensinou.

14 dezembro 2019

London is drowning, and I live by the river



No dia 14 de Dezembro de 1979, o The Clash lançou London Calling, um álbum duplo marcado pela ambiciosa diversidade estilística (e com isso superava as limitações estéticas do punk), mas também por conter várias das melhores canções não só do Clash, mas da história do Rock em geral. O LP 1 (equivalente às faixas 1 a 10 do CD) em especial parece uma coletânea, com várias canções clássicas se sucedendo.
A parceria lírica e musical dos vocalistas e guitarristas Joe Strummer e Mick Jones, que já havia produzido o excelente debut homônimo (1977), o ótimo Give 'Em Enough Rope (1978) e singles espetaculares como "Complete Control" e "(White Man) In Hammersmith Palais", estava mais afiada do que nunca, e as 19 faixas mostram uma banda disposta a dialogar de forma criativa com qualquer estilo musical que lhe interessasse.
A faixa-título de London Calling é uma combinação magnífica de arranjos poderosos (destaque para a linha de baixo de Paul Simonon) e versos apocalípticos, em especial o refrão: "The ice age is coming, the sun is zooming in / Engines stop running, the wheat is growin' thin / A nuclear era, but I have no fear / 'Cause London is drowning, and I, I live by the river" . Há espaço até para uma profanação tipicamente punk de uma das instituições sagradas da música britânica: "Phony Beatlemania has bitten the dust".
Outros destaques do álbum são:
- LP 1 - a melódica e debochada "Jimmy Jazz" (que contém um trecho que soa auto-referencial: "What a relief / I feel like a soldier / Look like a thief"); a empolgante "Hateful" (uma das melhores performances de Topper Headon na bateria); o cativante reggae "Rudie Can't Fail" (com dobradinha de Strummer e Jones nos vocais); "Spanish Bombs", um retrato da Guerra Civil Espanhola - embora possivelmente com os "Troubles" da Irlanda do Norte em mente - que contém até uma referência a um famoso poeta espanhol: "Fredrico Lorca is dead and gone"; a melancólica crítica ao consumismo em "Lost In The Supermarket" (I came in here for the special offer / A guaranteed personality"); o furioso ataque ao establishment de "Clampdown", que possui uma das melhores letras da banda: "Stop wasting your time, there's nothing coming / Only a fool would think someone could save you (...) It's the best years of your life they want to steal / But you grow up and you calm down / And working for the clampdown / You start wearing blue and brown (...) You drift until you brutalize"; o retrato da violência urbana em "The Guns of Brixton" (primeira canção composta pelo baixista Paul Simonon - o qual, aliás, estampa a capa de London Calling destruindo seu instrumento musical); 
 - LP 2 - o reflexivo hard rock "Death Or Glory" - que, de acordo com Nick Burns, trata da inevitabilidade de "trair o movimento", ou de pelo menos arrefecer o impulso vanguardista; o divertido hardcore "Koka Kola", outro ataque aos yuppies, desta vez insinuando que são movidos a cocaína ("Koke adds life, advertising world / 'Treat me nice', says the party girl"); e o desfecho do álbum, a deliciosamente pop "Train In Vain", que Mick Jones escreveu em resposta a "Typical Girls", do The Slits, banda na qual tocava sua ex-namorada, Viv Albertine.
London Calling foi o momento em que o The Clash deixou de ser uma banda punk para se tornar uma banda de rock no sentido amplo, inclusive na abertura para experimentar com outros estilos, como o jazz, o reggae e o ska. É também um raríssimo caso de álbum duplo que mantém o alto nível até o fim, sem faixas "fillers" ou auto-indulgentes. Infelizmente o Clash não repetiria a dose nem no trabalho seguinte, o ousado mas irregular LP triplo Sandinista! (1980), nem no conciso mas também desnivelado Combat Rock, de 1982.
40 anos depois, é possível afirmar com segurança que London Calling foi o ápice da banda, o momento em que ambição e qualidade estavam equiparadas. Sem dúvidas estamos diante de um dos melhores álbuns de Rock de todos os tempos.

P.S.: Aproveitei a data para fazer uma playlist de The Clash. Incluí oito faixas do aniversariante.