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22 setembro 2023

I wish I could eat your cancer when you turn back

(Republicação, com algumas revisões e acréscimos, da resenha de In Utero publicada há 5 anos neste blog)



Em 21 de Setembro de 1993 foi lançado nos Estados Unidos o álbum In Utero, o terceiro do Nirvana. Dois anos após o estrondoso êxito de Nevermind, que tornou a banda a mais popular do planeta, a ponto de direcionar o mercado e o público para uma maior aceitação do rock alternativo, o "power trio" de Seattle resolveu adotar uma sonoridade calcada na agressividade e urgência de discos como Surfer Rosa (Pixies) e Pod (The Breeders), ambos produzidos por Steve Albini - o qual, não por acaso, foi convidado para produzir o álbum. Há, contudo, uma influência menos óbvia, admitida por Kurt Cobain em uma entrevista em 93: In Utero também é inspirado em Red (King Crimson), um álbum de rock progressivo marcado pelas distorções no baixo e guitarra e pela elevada dinâmica sonora (isto é, a variação entre momentos mais calmos e outros mais barulhentos).

A gravação do disco transcorreu em apenas duas semanas, em Fevereiro de 1993. O lançamento, contudo, foi adiado devido à tensão entre a banda e a gravadora Geffen sobre a estética abertamente anticomercial adotada em In Utero. O próprio Kurt, contudo, não gostou tanto de como Albini produziu "Heart-Shaped Box", "All Apologies" e "Pennyroyal Tea" (as três faixas mais melódicas do álbum, e todas seriam lançadas como singles), e pediu para Scott Litt (produtor do R.E.M.) remixá-las; no caso de "Pennyroyal Tea", a nova versão não entrou no disco, mas apenas como single em 94, algumas semanas antes da morte de Cobain. Além disso, a excelente faixa "I Hate Myself And Want to Die" foi retirada de última hora da tracklist do CD, possivelmente para evitar controvérsias sobre o seu título.

In Utero é uma contundente afirmação artística; se Nevermind foi o álbum em que Kurt Cobain conseguiu encontrar o equilíbrio entre a sonoridade alternativa e o apelo comercial, In Utero é uma opção deliberada pela experimentação estética (tanto na temática sombria das letras quanto na sonoridade pesada) em detrimento das expectativas do público. Ele mostrou que era possível a uma banda no auge da popularidade manter a sua integridade, e seu exemplo foi seguido por Pinkerton (Weezer) e Kid A (Radiohead).

"Serve The Servants" é uma das faixas mais desconcertantemente autobiográficas que já abriu um disco de rock. O primeiro verso é uma debochada (e preventiva) autocrítica: "Teenage angst has paid off well / Now I'm bored and old". Outro trecho da letra toca em um tema delicado - a relação com o pai, cujo divórcio com a mãe de Kurt quanto este tinha apenas 7 anos foi um dos eventos mais traumáticos de sua vida: "I tried hard to have a father / But instead I had a dad / I just want you to know that I / Don't hate you anymore". O riff e o solo de guitarra de "Serve The Servants" estão entre os melhores do catálogo do Nirvana.

"Scentless Apprentice", inspirada no romance O Perfume (Patrick Süskind), é possivelmente a música que mais chocou os fãs casuais de Nirvana em 1993 - ainda mais por ser a 2ª faixa do CD. A bateria introdutória de Dave Grohl é um dos momentos mais marcantes do disco, assim como a distorção cavalar na guitarra e nos vocais de Kurt Cobain e no baixo de Krist Novoselic.

"Heart-Shaped Box", primeiro single do álbum, é uma macabra e por vezes escatológica declaração de amor de Kurt a Courtney Love: "I've been locked inside your Heart-Shaped box for weeks (...) / I wish I could eat your cancer when you turn back (...) Throw down your umbilical noose so I can climb right back". É um dos destaques do disco, e a única que ganhou um clipe (excelente, diga-se de passagem), dirigido por Anton Corbijn.

"Rape Me" começa parodiando o riff de abertura de "Smells Like Teen Spirit" (o maior hit da banda, mas que justamente devido à sua ubiquidade Kurt odiava tocar ao vivo) para depois declamar uma letra anti-estupro, na qual o eu-lírico promete se vingar de seu algoz. Muitos também interpretam a letra como uma analogia ao martírio que Kurt sentia pela superexposição midiática (p.ex., o infame episódio da revista Vanity Fair em 1992, que quase fez Kurt e sua esposa Courtney Love perderem a guarda de Frances Cobain ao publicarem erroneamente que Courtney teria usado heroína mesmo após saber que estava grávida).

"Frances Farmer Will Have Her Revenge On Seattle" é minha faixa favorita de In Utero, pois é a que melhor representa a dinâmica sonora "loud quiet loud", com seus versos calmos e refrões estrondosos. A letra é especialmente pungente ("I miss the comfort in being sad"), ao traçar um paralelo entre o drama pessoal de Cobain (desde a pressão da gravadora para lançar algo tão comercial quanto Nevermind até a supramencionada invasão de sua privacidade pela imprensa) e Courtney (que sofria forte perseguição midiática, como se fosse uma nova Yoko Ono) com o de Frances Farmer, atriz de Seattle que, após anos de conduta errática (possivelmente devido à depressão e ao alcoolismo), foi internada em uma instituição psiquiátrica e submetida a uma terapia de choque.

"Dumb" é uma música sobre alienação, comodismo: "I'm not like them / But I can pretend (...) The day is done / But I'm having fun / I think I'm dumb / Or maybe just happy". É a música com melodia mais calma de In Utero, evocando uma melancolia semelhante à de certas canções dos Beatles escritas por John Lennon.

"Very Ape" começa com uma crítica ao machismo (mais especificamente, a um estereótipo de masculinidade agressiva): "I take pride as the king of illiterature / I'm very ape and very nice". Um lado de Kurt Cobain pouco conhecido é seu ativismo feminista, algo que era pouco comum no meio musical - em especial o ambiente predominantemente masculino do rock - no início da década de 90. Não por acaso, ele era muito próximo das integrantes do Bikini Kill (inclusive era ex-namorado da baterista Tobi Vail). A segunda parte da letra, contudo, pode ser vista como uma autodescrição: "I'm too busy acting like I'm not naive / I've seen it all, I was here first".

"Milk It" é uma das faixas mais coléricas de In Utero, e em seu refrão contém versos sobre o vício de Cobain em drogas, e eles soam especialmente soturnos dado o que aconteceu meio ano depois com Cobain: "I am my own parasite / I don't need a host to live (...) / Look on the bright side is suicide".

"Pennyroyal Tea" trata de um chá que Kurt tomou para diminuir suas dores estomacais; segundo uma lenda urbana, ingeri-lo em grandes quantidades poderia causar um aborto, o que serviu de metáfora para o niilismo do vocalista e letrista do Nirvana: "Sit and drink Pennyroyal Tea / Distill the life that's inside of me". Esta faixa contém uma das melodias mais inesquecíveis do álbum, e meses depois ganharia uma bela versão acústica.

Considerando que é a canção mais experimental e anticomercial do álbum, o título de "Radio Friendly Unit Shifter" é adoravelmente sarcástico. Segundo a New Musical Express, ela expressava o cinismo e a desilusão de Cobain em relação à indústria musical: "I love you for what I am not / I did not want what I have got (...) / I'm nothing to do with what you think / If you ever think at all".

"Tourette's" tenta evocar em seus vocais os tiques nervosos típicos de uma pessoa que sofre da síndrome de Tourette. É a faixa mais curta e acelerada do disco, e mesmo que trate de temática tão perturbadora, possui um ritmo bem animado. Foi uma das faixas de In Utero tocadas no lendário show do Nirvana no Reading Festival, em 1992.

"All Apologies", dado o suicídio de Cobain apenas 6 meses e meio depois, foi frequentemente interpretada como um réquiem, especialmente por ser a última faixa do derradeiro álbum da banda. É, contudo, uma das faixas mais antigas dentre as escritas para o álbum, tendo sido composta em 1990, antes mesmo da gravação de Nevermind. Ela também pode ser lida como uma dedicatória, em tom de desculpa, à sua esposa Courtney e à sua filha Francis: "What else should I be? / All apologies (...) / What else could I write? / I don't have the right". Sua melodia é extremamente cativante, e o coda ("All in all is all we are"), simplesmente sublime.

In Utero estreou em 1º lugar em vários países, dentre eles os Estados Unidos e a Inglaterra, mas previsivelmente vendeu bem menos do que Nevermind. Na época, embora tenha sido muito elogiado pela crítica, alguns viram o disco como o deliberado afastamento do Nirvana da liderança do grunge, em termos de popularidade, para o Pearl Jam, que na mesma época lançou Vs., cujas vendas na estréia foram 5 vezes maiores que as de In Utero nos EUA. A morte de Cobain, contudo, fez com que o álbum começasse a ser reavaliado, e 30 anos depois não são poucos os fãs e os críticos - dentre os quais me incluo - que o consideram a obra-prima do Nirvana.

 

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