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Kaio

 

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03 março 2020

A Divina Psicodelia


Ontem foi aniversário de 50 anos da obra-prima dos Mutantes (e, na minha opinião, do Rock brasileiro): A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado. É um álbum genial já em sua capa, que retrata Dante e Virgílio no Inferno; já a contracapa gerou polêmica, com Rita Lee (vocais e percussão) deitada seminua em uma cama entre os irmãos Arnaldo Baptista (teclados e vocais) e Sérgio Dias (guitarra e vocais).
Este disco representa a ruptura da banda com o Tropicalismo, com o qual se associou nos dois álbuns anteriores; pesou nisso a entrada de dois integrantes que incrementaram a pegada roqueira: o baixista Arnolpho Lima Filho, o Liminha (que na década seguinte se tornaria um dos produtores mais requisitados do pop/rock nacional, em especial pelos seus discos com os Titãs), e o baterista Ronaldo Paes Leme, o Dinho.
A canção mais famosa - e forte candidata a melhor composição dos Mutantes - é "Ando Meio Desligado". A parte instrumental, em especial o baixo e a guitarra, indica uma guinada para o rock psicodélico (que já estava presente nos discos anteriores, mas misturado a outras estéticas, como o "pop barroco"), e a letra reforça essa tendência, pois soa como uma declaração de amor sob efeitos lisérgicos: "Ando meio desligado / Eu nem sinto meus pés no chão / Olho e não vejo nada / Eu só penso se você me quer / Eu nem vejo a hora de lhe dizer / Aquilo tudo que eu decorei". Em 2001, esta faixa ganhou um ótimo cover do Pato Fu.
"Quem Tem Medo de Brincar de Amor" tem um vocal com um debochado sotaque californiano ("Ah, deixa pra lá meu amor / Vem comigo e esquece / Este drama ou o que for / Sem sentido"). Destaque para a pulsante linha de baixo e para o clima festivo, que, como sugere esta apresentação ao vivo, foi inserido para abafar o trecho que dá título à faixa, devido à sua possível conotação sexual -  a qual já havia levado a censura a vetar o título inicial, "Quem Tem Medo de Fazer Amor".
"Ave, Lúcifer" consegue ser bela e sinistra ao mesmo tempo, com uma das melhores letras da banda ("As maçãs envolvem os corpos nus / Nesse rio que corre / Em veias mansas dentro de mim / Anjos e Arcanjos repousam neste Éden infernal") combinada a arranjos orquestrais impecáveis (feitos pelo maestro Rogério Duprat) - não por acaso, talvez seja uma das canções deles que melhor envelheceram.
A balada "Desculpe, Babe", de acordo com Chris Fuscaldo em Discobiografia Mutante (2018), é uma canção complementar a "Quem Tem Medo de Brincar de Amor": "uma mais dramática sobre rompimento, a outra mais alegre sobre recomeço" (p. 74).
"Meu Refrigerador Não Funciona" é outro deboche aos californianos, desta vez tanto aos vocais de Janis Joplin quanto às longas introduções das canções psicodélicas das bandas de lá. É uma das composições mais engraçadas da banda, e o uso dos teclados por Arnaldo para criar um clima "macabro" é magistral.
"Hey Boy" tem como alvo os playboys que freqüentavam a lendária Rua Augusta (que será tema de outra canção interpretada pelos Mutantes, dois anos depois), em São Paulo: "He, he, he, hey, boy / Teu pai já deu tua mesada hey, boy / A tua mina tá gamada hey, boy (...) Mas você nunca fez nada / No pequeno mundo do teu carro / O tempo é tão pequeno / Teu blusão importado / Tua pinta de abonado (tuas idéias modernas)". O final do protagonista não poderia ser mais tragicômico: a canção termina com o barulho de um acidente de carro... O Fonft, canal do saudoso Olavo Rocha, fez um divertido clipe de "Hey Boy" em 2008.
"Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo" é mais um caso de cover satírico, desta vez de uma composição inédita de dois ícones da Jovem Guarda: Roberto e Erasmo Carlos. De acordo com Chris Fuscaldo, "Roberto queria parecer preocupado com as questões de seu tempo, antenado com a juventude que saía às ruas (...), mas não gostou do resultado e passou a música a Erasmo, que a entregou aos Mutantes antes mesmo de ele registrar (...) em um disco seu em 1972" (p. 75).
O único resquício da estética tropicalista em A Divina Comédia é o iconoclasta cover de "Chão de Estrelas", uma canção originalmente dramática de Sílvio Caldas. Há até barulho de helicóptero após o trecho sobre a "mulher, pomba rola, que voou"! Tom Cardoso, em seu texto sobre este disco para a coleção Grande Discoteca Brasileira (2010), comenta que o apresentador de televisão Flávio Cavalcanti, "que costumava quebrar ao vivo os discos que não o agradavam, teria reduzido a pedaços o álbum dos Mutantes por causa da desconstrução de 'Chão de Estrelas'" (p. 37). Cavalcanti, segundo Fuscaldo, ainda fez um discurso "sobre a decadência dos valores da juventude" (p. 78), o que deve ter divertido a banda.
"Jogo de Calçada" é uma canção menos conhecida, mas não hesito em colocá-la como um dos destaques de A Divina Comédia. A performance de Sérgio Dias na guitarra é empolgante, e a letra dos manauenses Wandler Cunha e Ilton Oliveira (para quem Arnaldo pediu autorização para colocá-la no 3º álbum de sua banda) é muito bem cantada por Rita Lee: "Amanhã não tem chuva, que lindo / Só tem lua cortada, sumindo / Numa luz que apagada / Uma nuvem está rasgada / Mas nossa vida não vai acabar / E nós a beijar pra lá e pra cá, cha, cha, cha".
As duas últimas faixas são as mais experimentais, o que talvez tenha a ver com fato de uma delas ter uma letra mínima ("Haleluia") sobre a qual são feitas variações melódicas - no início parece uma canção religiosa, mas depois de um certo tempo fica claro o clima de galhofa - e a outra ("Oh! Mulher Infiel") ser uma jam instrumental com guitarra e teclados endiabrados.

Lançado em 2 de Março de 1970, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado indica os caminhos sonoros que a banda exploraria e aprofundaria nos álbuns seguintes, como Jardim Elétrico (1971) e Mutantes e seus Cometas no País do Baurets (1972) - sendo que este último apontaria uma nova transição estilística, em direção ao rock progressivo. Em uma discografia tão consistente, apontar A Divina Comédia como melhor disco dos Mutantes passa tanto pelo seu repertório de altíssimo nivel quanto pelo espírito experimental e irreverente que permeia cada uma das faixas. Devo concordar com a avaliação de Tom Cardoso: "alcançaram seu auge criativo, musical, sem quem para isso se tornassem músicos sérios e 'maduros'. Não, eles continuavam deliciosamente debochados, tão maluquetes quanto nunca" (p. 37).