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Kaio

 

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19 dezembro 2019

Uma Antropóloga e Socióloga Combativa


Alba Zaluar foi uma das maiores antropólogas e sociólogas brasileiras. Tive o prazer de conhecê-la no IESP-UERJ durante o mestrado; mas, foi só no 1º semestre do doutorado, em 2014, que fiz minha primeira matéria com ela - Estudos Exemplares em Ciências Sociais. Ela e o professor Fabiano Santos fizeram uma ótima seleção de bibliografia para o curso, incluindo autores como Wanderley Guilherme dos Santos (outro grande cientista social que nos deixou esse ano), Oliveira Viana e Sérgio Buarque de Holanda - cuja aula ficou sob responsabilidade de Alba. Foi a 1ª vez que tive contato com seu famoso estilo polemista e contundente. Ela questionou enfaticamente o conceito de "homem cordial" e discordou da interpretação "oficial" da USP sobre este autor, para espanto (e, em alguns casos, até indignação) dos meus colegas de turma. O debate foi animado.

Dois anos depois, no dia 6 de Maio de 2016, eu precisava definir meu orientador de doutorado, já que por uma regra maluca da CAPES o meu orientador de mestrado Cesar Guimarães, da Ciência Política, não poderia orientar um aluno de Sociologia, mesmo que os dois cursos estejam umbilicalmente unidos no IESP-UERJ (e no antigo IUPERJ). Um amigo me sugeriu conversar com a Alba, pois, embora o meu tema de pesquisa ("A crise da cultura moderna segundo José Guilherme Merquior") não fosse necessariamente algo que ela pesquisava, ela tinha uma formação ampla e uma abertura para dialogar com meu tema. Enviei um e-mail, o qual ela respondeu apenas 2 horas depois. A resposta não poderia ter sido mais animadora:
"Olá Kaio
Realmente não conheço a obra do José guilherme Merquior, embora o tenha conhecido pessoalmente nos debates da Casa Grande quando você ainda não era nascido. rsrsrs.
Mas o assunto sempre me fascinou e li sobre a crise da cultura em Hannah Arendt, Stuart Hall e um monte de antropólogos sobre a cultura que nunca se disse moderna.
Assim sendo, podemos conversar e espero poder lhe ajudar."

Durante os dois anos de orientação, a Alba se ofereceu para me enviar artigos da New Left Review que tivessem a ver com o meu tema, afinal publicaram artigos seminais do marxismo ocidental - corrente com a qual Merquior muito debateu em seus livros e artigos.
Cheguei a fazer uma disciplina dela sobre antropologia cultural em 2017, mas o momento da orientação em que ela foi mais ativa foi justamente no último mês antes de eu enviar e defender a tese. Aliás, foi durante esse período (Maio a Junho de 2018) que fiquei sabendo que ela estava com câncer. Nos últimos dias antes da entrega, ela foi lendo meus capítulos, fazendo sugestões e críticas e, é claro, me cobrando para terminar logo, afinal já tínhamos marcado a data da defesa - que deliberadamente marquei para o dia do meu aniversário (29 de Junho), não só pelo aspecto simbólico mas também por uma questão prática (era o único dia da semana sem jogos da Copa do Mundo).
Enfim terminei a tese no dia 16/6, e dois dias depois entreguei as cópias para os professores. Ela fez um comentário brincalhão no Facebook: "Ótima tese, cuidadosa, erudita e levada a termo obsessivamente. Não queria parar de escrever! Doeu por o ponto final. Desconfio que ainda está escrevendo escondido de nós!" A foto que acompanha este texto é do dia da defesa. No final, ela disse que tinha sido uma das melhores bancas da qual havia participado, pois aprendeu muito com os outros professores (que eram de áreas diversas como Letras e Ciência Política).

Eu estava perdido no período "pós-doutorado", afinal não haviam aparecido ainda os concursos para professor e para não ficar totalmente parado eu estava apenas dando aulas particulares. A partir de Setembro do ano passado, a Alba me deu um apoio imensurável, expresso na idéia de eu catalogar os livros dela para futura doação ao Museu Nacional. Ao longo das cerca de 20 visitas à casa dela (sendo uma delas na casa de campo em Araras, em Abril desse ano), cataloguei 2860 livros. Faltava provavelmente só mais uma ida para eu concluir o catálogo, que chegaria aos 3 mil livros. Na última vez que a vi, na segunda-feira dia 9 de Dezembro, combinamos de eu voltar na quinta, dia 12. Quando eu estava indo embora, ela me disse um "Obrigado!" que me causou uma sensação diferente, quase como se fosse em tom de despedida.
Cheguei na quinta de manhã no prédio dela, mas o porteiro me avisou que ela não estava em casa; havia sido internada na noite anterior. Fiquei atônito, e me preparei emocionalmente - ainda mais considerando que, na última vez que a vi, ela estava lúcida, mas com dificuldades para se alimentar.
Recebi há alguns minutos a notícia de que minha querida orientadora (e amiga) nos deixou.
Pretendo fazer a minha parte para que esta geração e as próximas conheçam o enorme legado intelectual dela para a Antropologia e a Sociologia no Brasil, e também para que saibam que ela era um ser humano magnífico. Sempre polêmica, sempre afiada, sempre combativa (digamos que ela levava bastante ao pé da letra a frase de Bourdieu de que "A sociologia é um esporte de combate"). Provavelmente criou muitas inimizades com sua postura geniosa, rebelde e inconformista, mas também deixou muitos admiradores - e orientandos que, como eu, têm muito a agradecê-la por tudo que ensinou.

 

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