You see, my life, it's a series of compromises anyway
Há 25 anos (e 20 dias), em 7 de Setembro de 1998, a banda britânica Mansun lançou Six, seu segundo álbum de estúdio. Em um tour de force dos mais ousados, este é um autêntico disco de rock progressivo feito por uma banda que até então estava identificada com o britpop e que vinha de um grande êxito comercial: Attack Of The Grey Lantern (1997), o debut do Mansun, alcançara o 1º lugar nas paradas britânicas desbancando nada menos que o álbum homônimo do Blur, que havia sido o #1 na semana anterior. Embora Attack of the Grey Lantern já tivesse um espírito experimental ao combinar elementos de glam, art rock, Madchester e pop psicodélico, além de ser um trabalho semi-conceitual (há um ciclo de canções sobre um super-herói - o "Lanterna Cinza" - e os tipos sociais excêntricos com quem ele interage, como "Taxloss", "Stripper Vicar", "Egg Shaped Fred" e "Dark Mavis"), a banda foi além em Six: pode-se dizer que este é um álbum conceitual de teor pessimista, como bem argumenta este artigo de Ed Biggs para a The Student Playlist: "Six é quase incessantemente sombrio e difícil de realmente desbloquear, mesmo depois de várias audições. Abandonando os personagens satíricos (...) Six lidava com uma colcha de retalhos de emoções humanas quase uniformemente negativas, como obsessão, desordem, depressão e alienação. Você no mínimo entraria em contato com Paul Draper nas redes sociais se descobrisse os manuscritos de suas letras para Six. A música que acompanha essas emoções serve tanto para reforçar quanto para compensar sua rigidez, então você nunca tem certeza se Draper e Mansun devem ser levados a sério." Além disso, cabe observar que um possível antecessor no pop/rock britânico dos anos 90 para as tonalidades sombrias e autodepreciativas de Six é The Holy Bible (1994), o terceiro e melhor álbum dos Manic Street Preachers, e também o último com o letrista e guitarrista Richey Edwards antes de seu desaparecimento (e possível suicídio), em 1995. A própria capa do disco tem uma estética bem típica do rock progressivo, com várias referências culturais, inclusive uma pilha de livros que contém 1984 (George Orwell), 120 Dias de Sodoma (Marquês de Sade), O Livro de Mórmon (Joseph Smith) e até livros que não existem, como Life as a Series of Compromises (Graham Langdon). O disco se chama Six segundo Paul Draper (vocalista, letrista, guitarrista e produtor da banda), porque se refere "ao personagem de Patrick McGoohan que ele criou para si mesmo no programa de TV dos anos 1960, The Prisoner. Seu personagem era conhecido simplesmente como Número 6 e ele era prisioneiro em uma vila. É claro que o título do álbum se refere a mim mesmo. Depois de toda a loucura de 'Attack of the Grey Lantern' atingir o primeiro lugar nas paradas de álbuns, foi isso que eu senti que havia me tornado; morando em hotéis, aeroportos e ônibus de turismo, prisioneiro de registro comercial". Por coincidência, na mesma época o guitarrista Dominic Chad, que é fã de A. A. Milne, criador do Ursinho Pooh, estava lendo um livro de poemas de Milne chamado Now We Are Six (1924). Aliás, as coincidências envolvendo o número 6 se estenderam à colocação nas paradas britânicas, pois Six estreou em 6º lugar. A faixa-título, em seus dois primeiros minutos, apresenta-se como uma canção melódica com letra resignada ("And you see, I kind of shivered to conformity / Did you see, the way I cowered to authority"); porém, a partir de um súbito riff de guitarra raivoso, começa uma montanha-russa sonora que envolve passagens psicodélicas, furiosas e um eventual retorno mais intenso à sonoridade dos minutos iniciais. "Six" contém os versos centrais da filosofia pessimista do álbum: "Life is a compromise anyway / And it's a sham, and I'll accept it all". "Negative", que foi o terceiro single de Six, talvez seja a faixa do disco que tem formato mais palatável para o sucesso radiofônico - e ainda assim a letra faz jus ao título e é um primor de negatividade, ainda que com toques sarcásticos: "My future's looking positive / No one even picked on me today (...) You convert to Scientology / To feel part of something once again". "Shotgun" começa como um punk acelerado e animado com certas guinadas ao glam, mas depois de um minuto e meio revela sua verdadeira face: uma canção lenta e sorumbática, no qual o eu-lírico anseia por uma visão de mundo mais ingênua que pudesse livrá-lo de sua melancolia: "The simple of thought inherit the Earth / Like Winnie-the-Pooh, Confucianist rules / Oblivious in what I do". A bela vinheta "Inverse Midas" é a única faixa de Six que foi composta por Dominic Chad, embora o instrumento que ele toca na faixa seja um piano. Ela inicia o medley do disco, que vai das faixas 4 a 7, em um momento à la Abbey Road - e a influência da suíte do Lado B deste álbum dos Beatles foi admitida pelo próprio Paul Draper. A suíte segue imediatamente com "Anti Everything", uma canção de atmosfera mais irreverente, com uma guitarra que parece fazer esguichos. Se quisermos fazer uma analogia com Abbey Road, seria o equivalente de "Mean Mr. Mustard" neste medley. "Fall Out" é uma faixa esquizofrênica: começa com um sample da "Dança da Fada Açucarada" (trecho do Quebra Nozes de Tchaikovsky) e depois se torna uma canção com estilo parecido com o do Suede, com um ritmo dançante conduzido pelo violão que até parece uma antecipação de "She's In Fashion". Há um aspecto sinfônico no sentido de, nos segundos finais, a canção apresentar uma melodia que depois será repetida - e será o pilar - na canção "Legacy". Como bem definiu Ben Scott em artigo para o XS Noize: "neste ponto do álbum, você sente que tudo pode acontecer." "Serotonin" entra logo em seguida com uma estética mais soturna, algo que também se reflete em sua letra, na qual as drogas preenchem o vazio existencial: "With this method that I've found / I'm redressing all I now / I can change the amount of God / That wraps around me (...) My chemist is the only friend that I've got". Esta também é uma das faixas que revela que a decisão de Paul Draper de autoproduzir Six foi certeira, pois ele era bem criativo nos arranjos. O épico de 9 minutos "Cancer" é um dos momentos mais sublimes de Six. Os versos tratam de uma desilusão religiosa que se agravou em uma profunda crise existencial: "I'm emotionally raped by Jesus / But somehow I'm still here / What now of my faith / Just a desperate exercise to limit pain / I am weak". No início da segunda metade da faixa, a bela melodia tocada no piano abre o caminho para o retorno dos demais instrumentos, com destaque para o solo de guitarra de Chad. O desfecho de "Cancer" tem toques de psicodelia, e com isso encerra em grande estilo a Parte 1 de Six - um conceito que talvez fizesse mais sentido na era dos LPs (seria o fim do Lado B do primeiro disco) do que na dos CDs (que suportam até 80 minutos de música, sendo que Six possui 70)... ... mas, o Mansun deu um jeito de explicitar o fim de uma parte e o início de outra com um inusitado interlúdio: "Witness to a Murder (Part Two)", um monólogo performado por Tom Baker, ator britânico que interpretou o Doctor Who entre 1974 e 1981. Esta canção contém versos repletos de amargura e frustração: "All my life / What I mistook for friendly pats on the back / Were really the hands that pushed me / Further and further down / The more I struggle the less I achieve". A magnífica "Television" abre a Parte 2 de Six com baixo proeminente, vocais dobrados, guitarras com sonoridade bem viajante (mas que, antes do refrão, contêm uma distorção bem grunge). A letra, de acordo com Draper, é "uma descrição muito sombria da paranoia e da solidão de estar preso em hotéis em uma banda de rock em turnê com muito pouco para fazer exceto sexo, drogas e Sky TV... desculpe, quero dizer rock 'n' roll." "Special/Blown It (Delete As Appropriate)" é uma canção que trata da autossabotagem que o Mansun estava incorrendo (inclusive através de Six), arriscando a popularidade recém-adquirida: "I've blown it in every single way / Screwed every single chance that came (...) Blew my chances in a tragic flurry, sweeping apathy (...) I could have been somebody special". Ed Biggs observa de forma certeira que tanto essa faixa quanto "Television" revisitam os temas de "Negative", desta vez "a partir da perspectiva de como as mudanças de humor violentamente mutáveis dos protagonistas afetam sua perspectiva do otimismo a um repentino pessimismo". Além disso, quanto à sonoridade, nestas duas faixas o Mansun "dedica um tempo para deixar as músicas se desenrolarem em um ritmo mais tradicional, e isso contribui para uma experiência menos estonteante (head-spinning)". "Legacy" foi o primeiro e mais bem-sucedido single retirado de Six, alcançando o 7º lugar nas paradas do Reino Unido. Apesar de durar 6 minutos e meio (algo pouco "radio-friendly"), ela tem uma melodia tão envolvente que seu sucesso não é difícil de compreender. Além disso, "Legacy" contém uma das melhores letras do álbum, com direito a um refrão que cita o controverso autor de 120 Dias de Sodoma: "I wouldn't care if I was washed up tomorrow / You see, reading novels is banned by the Marquis de Sade / All relationships are emptying and temporary / Life is wearing me thin / I feel so drained, my legacy / A sea of faces just like me". Na reta final da faixa, a angústia e incerteza da banda se estaria deixando um legado musical - ou, num sentido mais metafísico, se depois da morte seriam lembrados ou simplesmente tragados pela finitude - se manifesta na repetição quase mântrica do verso "Nobody cares when you're gone". Como se não bastasse tudo isso, o videoclipe de "Legacy" é excelente, e usando marionetes reconta a história do Mansun - muito embora também sirva de alegoria para outras bandas, não só do britpop mas do rock em geral, cujas carreiras também foram meteóricas. Sobre essa perspectiva soturna que predomina em "Legacy" (e em Six como um todo), cabe citar novamente Ben Scott: "É justo dizer que sempre houve escuridão no coração de Mansun: afinal, eles nomearam a banda em homenagem a um notório serial killer [Charles Manson]. Mas essa música não diz apenas respeito à morte, ela até faz com que a própria vida pareça fútil e sem valor enquanto você a gasta tendo que 'prove your worth to people that you call your friends'. Até a maior alegria do mundo é abafada pela frase recorrente 'All relationships are emptying and temporary'. Ocorreu-me o quão pessimista isso soava para uma banda que tinha acabado de atingir o grande momento (big time). Apesar do sucesso e da fama crescente, essa música não foi obra de uma mente saudável e feliz." "Being a Girl", durante 2 minutos (que foi inclusive o recorte feito para seu lançamento como single e como clipe) é um delicioso glam-punk de letra andrógina e frustração juvenil na melhor tradição de T. Rex e Bowie: "Being a boy's like sucking on a lemon / And I judge myself by the adverts I see / I feel like being a girl (...) Yeah, how my life never tasted sweeter (...) I'm so boring, my clothes wanna keep / Someone else warm, someone cooler". Nos 6 minutos seguintes, contudo, "Being a Girl" se converte em um space rock à la Pink Floyd, e ainda por cima contém um trocadilho político delicioso: "The only pureness left is preached by Marx". Não surpreendentemente, a EMI tratou Six como um suicídio comercial do Mansun, e mesmo que o disco tenha estreado no top 10 de álbuns no Reino Unido e todos os seus quatro singles tenham alcançado o top 30 ("Legacy" #7, "Being a Girl" #13, "Negative" #27, "Six" #16), a liberdade criativa concedida para Draper e cia. foi revogada, e o álbum seguinte, Little Kix (2000), já seria cerceado por uma perspectiva mais mercadológica. Ou seja, Six e os B-sides de seus singles (dentre os quais destaco "When The Wind Blows") foram uma oportunidade única para a banda de, estando em uma grande gravadora, lançar um disco ambicioso com um orçamento generoso. O Radiohead, outra banda de espírito experimental e progressivo que tinha contrato com a EMI, teve um destino bem mais afortunado que o do Mansun, pois OK Computer (1997), que também foi temido por alguns executivos da gravadora como um disco comercialmente arriscado, caiu nas graças do público e da crítica. De toda forma, ao contrário do que temiam na penúltima faixa do álbum, o Mansun deixou um legado, pois serviu de inspiração para várias bandas contemporâneas (ou da década seguinte), como The Mars Volta, Elbow, Muse e o próprio Radiohead. Para encerrar essa resenha, cito a seguir duas reflexões interessantes que encontrei em artigos sobre Six. A primeira comenta sobre o fato de que a banda caiu numa espécie de ostracismo pelos próprios "historiadores" do britpop e raramente é colocada no cânone das grandes bandas dessa cena musical (Blur, Suede, Oasis, Pulp etc.), muito embora mereça o seu lugar neste panteão por seus dois excelentes primeiros álbuns: "If Mansun, so popular at the tail end of the 90s, have been inexplicably erased from the history books by Britpop revisionists, it seems fitting to call for an end to such dumfounding neglect. (...) I like to think in years to come, with more distance from the decade in question, Mansun’s impact and significance will be projected more accurately in the music press and among listeners. (...) But really, all that matters is this: Six is an incredibly fucked-up/fucking incredible album" (artigo de Daniel Round para a God In The TV) A segunda delas aponta a notável atualidade de várias temáticas psicológicas e socioculturais abordadas neste álbum: "As the world pivots ever more inexorably into social media-fuelled chaos, atomisation and individual alienation and loneliness, Six becomes more relevant with each passing year, as many of the anxieties and worries it describes have become more widely discussed." (Ed Biggs)