Em 30 de Maio de 1968, os Beatles gravaram a primeira versão de “Revolution” (a mais lenta, que seria a faixa 8 do disco 2 de The Beatles, vulgo “Álbum Branco”, lançado em Novembro daquele ano). Escrita por John Lennon, esta canção não era a primeira de cunho político composta pela banda (a pioneira foi “Taxman”, de 1966), mas certamente é a mais explícita e contundente. Foi uma resposta de Lennon aos “événements” de Maio de 68 na França (mas não só a eles, afinal os protestos estudantis já vinham desde Março na Inglaterra e EUA). Para surpresa dos militantes de esquerda que estavam esperando – ou, em alguns casos, quase exigindo – um endosso do Fab-Four ao movimento, “Revolution” deve ter soado decepcionante. Lançada no fim de Agosto (em sua segunda versão, a mais rápida, que foi B-side do single “Hey Jude”), todas as suas estrofes começam com uma tentativa de diálogo com as pautas dos movimentos sociais (querer uma revolução, mudar a constituição, dizer que o problema são “as instituições”...), mas terminam com uma tripla recusa de adotar métodos violentos e sectários: “But when you talk about destruction / Don't you know that you can count me out” “But if you want money for people with minds that hate / All I can tell is brother you have to wait” “But if you go carrying pictures of Chairman Mao / You ain't going to make it with anyone anyhow” Em outras palavras, John estava dizendo às facções leninistas, trotskistas, maoístas etc. que, “apesar de compartilhar do desejo por mudança social, ele acreditava que a única revolução que valeria a pena surgiria da mudança interna, em vez da violência revolucionária.” (Steve Turner)
O suposto tom “reformista” (no sentido pejorativo que essa palavra ganhou entre os marxistas), conformista ou mesmo conservador da posição política de Lennon (e, por tabela, dos Beatles) foi reforçado pelo contraste com uma canção lançada no mesmo mês: a assumidamente rebelde “Street Fighting Man” (Rolling Stones), que chegou a ser proibida em várias rádios americanas. Enquanto a canção dos Stones, que critica a apatia política londrina (“where I live the game to play is compromise solution”), foi louvada, “Revolution” chegou a ser desprezada por uma resenha na New Left Review como “um grito de medo lamentável de um burguês mesquinho”. Lennon tentaria fazer as pazes com a esquerda três anos depois, em “Power To The People” (“Say we want a revolution / We better get on right away”), mas manteve até o fim da vida seu posicionamento pacifista: “Não contem comigo se for para a violência. Não esperem me ver nas barricadas, a não ser que seja com flores”.
A importância de “Revolution”, contudo, vai além de sua letra. Com seu distorcido riff de guitarra (já proeminente na primeira versão, de estilo blues, e ainda mais barulhento na segunda, mais roqueira), ela abre os trabalhos do “Álbum Branco”. Pelos próximos cinco meses os Beatles gravariam outras três dezenas de canções; o excelente single “Hey Jude” / “Revolution” (forte candidato a melhor compacto da banda, ao lado de “Strawberry Fields Forever” / “Penny Lane”) foi um aperitivo, e três meses depois veio o ambicioso LP duplo que, transitando pelos mais diversos estilos, conteria várias das melhores faixas compostas pelo quarteto de Liverpool. Selecionei 7 delas para uma lista no Spotify com minhas 60 músicas favoritas dos Beatles.
Aproveitando que estou terminando minha tese sobre José Guilherme Merquior, não consigo deixar de ver um paralelo entre “Revolution” e seu livro Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (publicado em 1969, mas escrito no ano anterior). Merquior estava em plena Paris no ano de 68, como diplomata e estudante (estava assistindo a um curso de Lévi-Strauss, e pouco depois começaria seu doutorado em Letras pela Sorbonne). Considerando a efervescência política daquele ano (e o fato de que a maioria dos seus amigos intelectuais eram marxistas), é surpreendente que o livro que ele escreveu naquele ano contenha uma crítica tão dura (e, meio século depois, ainda tão certeira) a um dos gurus da “geração 68”, Herbert Marcuse: “Visivelmente enojado pela ‘cumplicidade’ entre democracia e reação, Marcuse passa a vincular o progresso social à violência revolucionária, ilustrando essa tese com quatro exemplos: as guerras civis inglesas, a Revolução Francesa, e as revoluções chinesa e cubana. (...) A exclusão da Revolução [Russa] de Outubro [de 1917] de um contexto onde as revoluções chinesa e cubana são louvadas é um absurdo romântico, uma avaliação histórica inteiramente inobjetiva – embora certamente apta a seduzir os arroubos sinófilos e castrômanos do revolucionarismo de evasão da nossa época, para o qual a China de Mao-Tsé Tung é tanto mais formidável quanto mais ignorada. (...) A obrigação de Marcuse não é mostrar que a violência surtiu bons efeitos no passado pré-democrático, e sim provar que ela é superior, atualmente, à ação democrática. (...) O ‘revolucionarismo’ desses extremismos denota apenas – apesar do caráter ruidoso dos seus clichês – uma reação passiva ante os problemas da cultura contemporânea; nunca, a disposição de enfrentá-los criticamente. Entronizando a violência revolucionária, Marcuse não consegue identificar o seu agente social (...). Teorizando sem glória e sem êxito sobre a violência, e contra a tolerância democrática, Marcuse se situa como prisioneiro dos mitos messiânicos como a ditadura ‘esclarecida’ ‘de transição’ – sem ver que a sua dialética interna a transforma necessariamente em despotismo permanente. O denunciador da repressão cultural derrapa ingenuamente para o panegírico da repressão política.” (MERQUIOR, 2017 [1969], pp. 324-328)
Após 2 dias e meio, terminei de ler Michel Foucault, ou O Niilismo de Cátedra, o último dos três livros do Merquior que peguei na BCE quando ainda estava no 6º semestre da graduação. Concluí a leitura de O Marxismo Ocidental em julho/2013; O Argumento Liberal, em dezembro/2015; e hoje o livro de José Guilherme sobre Foucault.
Naquela época só li alguns capítulos deles: o ensaio homônimo de O Argumento Liberal; a introdução de O Niilismo de Cátedra; o capítulo sobre Marcuse e o paralelo entre Lukács e o personagem Naphta (A Montanha Mágica, de Thomas Mann) em O Marxismo Ocidental.
Decidi que Merquior seria o tema da minha tese em 2015, embora já tivesse escrito 3 artigos sobre ele no ano anterior e as obras O Liberalismo: Antigo e Moderno e Saudades do Carnaval já tivessem sido inspiração teórica para minha monografia sobre A Montanha Mágica (pelo conceito de Bildung no liberalismo alemão) e dissertação sobre Doutor Fausto (pela crítica cultural da modernidade a partir de uma perspectiva humanista), respectivamente.
Não farei uma resenha do livro agora; vou guardar para o capítulo da tese sobre a crítica de Merquior aos pós-modernos. Deixo, contudo, como aperitivo um trecho da conclusão deste ensaio que, ironicamente, acaba sendo nietzschiano em sua demolição de um dos maiores ídolos intelectuais das últimas décadas:
"Tudo começa com a ironia de uma filosofia que, tendo sonoramente proclamado a morte do homem (uma questão epistemológica, decerto - mas com que implicações morais cuidadosamente orquestradas!), dedica-se aos mais excitantes problemas da humanidade (loucura, sexo, poder e punição...) sob a alegação de que a filosofia, como investigação de antigas abstrações como a realidade e a verdade, a subjetividade e a história, caducou. (...) Recusando todo debate crítico, [esses filósofos pós-filosóficos] parecem laborar no equívoco de que a ausência de método e o desdém pelo rigor argumentativo levem automaticamente a uma percepção virtuosa dos 'problemas reais'. Não se pejam de passar por escritores, e não por pensadores profissionais; mas o manto 'literário' mal encobre um imenso dogmatismo. (...) Leo Strauss costumava dizer que, nos tempos modernos, quanto mais cultivamos a razão, mais cultivamos o niilismo. Foucault demonstrou que não é absolutamente necessário fazer a primeira coisa a fim de alcança a segunda. Ele foi o fundador de nosso niilismo de cátedra." (MERQUIOR, 1985, pp. 246-247)
Desde criança eu adoro o dia 17 de Maio (conto mais sobre isso aqui), e esta costuma ser uma data importante na minha vida. Dois maiores exemplos: 17/5/2009 foi o dia do meu 1º beijo; em 17/5/2016 a Alba aceitou ser minha orientadora no doutorado.
Cheguei a planejar que acabaria minha tese de doutorado hoje. Não foi possível; acabei me atrasando no cronograma. Sem problemas; estou num pique inédito em meses e ainda hoje devo terminar de ler o demolidor livro do Merquior sobre o Foucault, que será tema de um dos capítulos.
Aliás, o 17/5 desse ano vem sendo legal por três motivos além da leitura de Foucault, ou O Niilismo da Cátedra:
1) Busquei 3 CDs que comprei e estava ansioso para encontrar - Tommy (The Who), The Compact King Crimson (King Crimson) e Before And After Science (Brian Eno);
2) Um meme do Twitter me ajudou a descobrir um certo site russo para baixar artigos acadêmicos. Encontrei vários do Merquior que eu procurava há anos, e outros que cheguei a ler e fichar (quando passei uma tarde inteira no acervo dele no CCBB), mas é sempre bom ter uma cópia, rs;
3) Após quase um mês procurando desesperadamente esse CD pelo apartamento, enfim achei meu ELO's Greatest Hits (Electric Light Orchestra). Como é de praxe nessas situações, ele estava num lugar extremamente óbvio: na estante de CDs, escondido atrás da pilha de álbuns dos 60s/70s. P.S.: Hoje é também o 25º aniversário de Souvlaki (Slowdive), o melhor álbum da banda e o 2º melhor do shoegaze (só perde para Loveless, do My Bloody Valentine). Contém canções sublimes como "When the Sun Hits" e "Alison", viajadas como Souvlaki Space Station e delicadas como "Here She Comes". Fun fact: Souvlaki foi o CD simples mais caro que já comprei (70 reais, importado, na Travessa de Botafogo, em 2015). Valeu o sacrifício, pois é um álbum celestial. Além disso, minha versão é a americana, com 4 faixas-bônus, dentre elas um belo cover de "Some Velvet Morning".
Em 1º de Maio de 1996, comprei meu 1º CD de rock: Domingo (Titãs). Três dias antes eu havia ouvido - e amado à primeira audição - a faixa-título, então pedi para meus pais me levarem no Bazar Paulistinha do Flamboyant para adquiri-lo. Titãs é até hoje uma das minhas bandas favoritas; é o conjunto nacional de que mais gosto e o 3º que mais ouço segundo o Last.FM (só fica atrás de Beatles e Blur). Não consegui ir a um show deles quando criança, mas a partir dos 18 anos fui em quatro: um em Brasília, em 2008 (na turnê que fizeram junto com os Paralamas do Sucesso), e três no Rio - sendo dois em 2012 (Cabeça Dinossauro Ao Vivo e o show em comemoração dos 30 anos de banda, com participações especiais dos ex-titãs Arnaldo Antunes e Charles Gavin) e um em 2014 (a abertura da turnê Nheengatu). 22 anos depois, fiz uma playlist com 50 grandes canções deles. Além dos clássicos e hits, incluí algumas obscuras que adoro, como "Dona Nenê", "Qualquer Negócio" e a própria "Racio Símio" (que também inspirou o nome do meu blog, fundado em 2005). Não coloquei nenhuma faixa dos dois piores álbuns deles - Como Estão Vocês? (2003) e Sacos Plásticos (2009) -, mas selecionei 21 da trilogia oitentista de obras-primas (Cabeça Dinossauro, Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas e Õ Blésq Blom) e 13 da trilogia noventista de discos ótimos porém subestimados (Tudo Ao Mesmo Tempo Agora, Titanomaquia e Domingo). Por fim, incluí a melhor canção do álbum mais recente, Doze Flores Amarelas.