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26 outubro 2019

Há tempos o encanto está ausente, e há ferrugem nos sorrisos


A Legião Urbana lançou seu quarto álbum, intitulado As Quatro Estações, em 26 de Outubro de 1989. Ou seja, aquele mês teve o lançamento não só do melhor álbum dos Titãs (Õ Blésq Blom), mas também da obra-prima da Legião até então (e que, para mim, só seria superada pelo disco seguinte deles, V).

As Quatro Estações foi o disco da banda que teve gestação mais longa: começou ser composto mais de um ano antes, em Agosto de 1988, logo após o fim de uma turbulenta turnê - cujo momento mais crítico foi o desastroso show no Mané Garrincha, em Brasília, em Junho daquele ano. O próprio vocalista Renato Russo admitiu que as músicas demoraram "porque eu tinha que tirar Brasília do meu sistema". Durante o processo de composição e gravação a Legião ainda passou por mais um problema: a demissão do baixista Renato Rocha, cujo comportamento errático (ex.: faltando ou chegando atrasado aos ensaios; perdendo vôos e equipamentos; tendo pouca afinidade musical com o baterista Marcelo Bonfá...) chegou a tal ponto que a banda não conseguia mais trabalhar com ele.

A saída de Rocha teve um impacto estético, pois ele representava um elemento punk/hardcore que o agora trio pretendia abandonar. As Quatro Estações é o início da trilogia dos álbuns mais sofisticados da Legião Urbana: canções como "Eu Era um Lobisomem Juvenil" flertam com o rock progressivo, aproximação estilística que será reforçada no próximo álbum, V (1991), e outras, como "Feedback Song For A Dying Friend", trazem instrumentos musicais inusitados, algo que será realçado em O Descobrimento do Brasil (1993).






O disco abre com um caso inusitado de canção pop sem refrão: "Há Tempos", a qual possui uma das letras mais bonitas e elaboradas de Renato Russo. O verso inicial ("Parece cocaína / Mas é só tristeza") lembra um trecho de "Station to Station", de David Bowie ("It's not the side effects of the cocaine / I'm thinking that it must be love"); segue-se uma citação ao poema Desiderata, de Max Ehrmann ("Muitos temores nascem do cansaço e da solidão") e, no final, uma inversão otimista do "double think" do romance distópico "1984", de George Orwell ("Disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem").

"Pais e Filhos", um dos maiores sucessos da banda, é outro destaque lírico do álbum, com versos que, como bem apontou Arthur Dapieve em Renato Russo: o trovador solitário (2000), apresentam "fragmentos de cenas e conflitos familiares" - desde um suicídio ("Ela se jogou da janela do quinto andar") até uma família divorciada ("Eu moro com minha mãe / Mas meu pai vem me visitar"). O próprio Renato, no Programa Livre em 1994, mostrou seu espanto com o fato de que as pessoas cantavam alegremente o refrão ("É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã") sem reparar no seu desfecho amargo ("Porque se você parar pra pensar, / Na verdade não há"). A faixa ainda conta com um notável solo de guitarra de Dado Villa-Lobos durante o minuto final - aguçado pela catarse dos versos que o acompanham: "Sou uma gota d'água / Sou um grão de areia / Você me diz que seus pais não entendem / Mas você não entende seus pais / Você culpa seus pais por tudo / E isso é absurdo / São crianças como você / O que você vai ser / Quando você crescer?"

"Feedback Song For A Dying Friend" é, do ponto de vista sonoro, a mais excêntrica do disco, em especial na sua parte final, calcada em música indiana. A letra, escrita em inglês - e, que no encarte do álbum, ganhou uma primorosa tradução de Millôr Fernandes - tem conotações homoeróticas, e o título da faixa é uma alusão a dois artistas que foram vítimas das complicações decorrentes da AIDS: o fotógrafo Robert Mappletorphe, falecido em Março de 89, e Cazuza, que na época expôs publicamente sua enfermidade, tendo morrido no ano seguinte.

"Quando O Sol Bater Na Janela Do Teu Quarto" é mais um caso de intertextualidade - desta vez, com a Doutrina de Buda (Bukkyo Dendo Kyokai): "Tudo é dor / E toda dor vem do desejo / De não sentimos dor". Os versos expressam uma mistura de angústia ("Quem roubou nossa coragem?") com vislumbre de redenção ("Mas ainda temos chance"). Sua deliciosa sonoridade pop fez dela um dos maiores hits do álbum; não só ganhou cover do Barão Vermelho em 1999, como também sua versão acústica, presente no póstumo álbum ao vivo Como É Que Se Diz Eu Te Amo (lançado em 2001, gravado em 1994), também fez sucesso.

"Eu Era um Lobisomem Juvenil" pode até não estar entre as canções mais famosas da banda, mas é certamente um dos destaques deste álbum. A introdução instrumental é delicada e os teclados lhe dão uma sonoridade mais imponente - especialmente no refrão e na coda. Seus versos expressam uma aguda introspecção: "O que sinto muitas vezes / Faz sentido e outras vezes / Não descubro um motivo / Que me explique porque é / Que não consigo ver sentido / No que sinto, que procuro (...) O que você me falou / Me fez rir e pensar / Porque estou tão preocupado / Por estar tão preocupado assim..."

"1965 (Duas Tribos)" mantém a tradição de canções punk politizadas da Legião, à la "Geração Coca-Cola" e "Que País É Este". Como o próprio título sugere, a letra trata do período da ditadura militar; seus versos oscilam entre a descrição das mortes e torturas ("Cortaram meus braços / Cortaram minha mãos / Cortaram minhas pernas / Num dia de verão"), a crítica da corrosão dos padrões ético-morais ("Quando querem transformar / Dignidade em doença (...) Inteligência em traição (...) Estupidez em recompensa (...) Esperança em maldição") e o sarcasmo em relação à euforia do milagre econômico: "Eu tenho um autorama / Eu tenho um Hanna Barbera (...) E modelos Revell / O Brasil é o país do futuro".

"Monte Castelo" é possivelmente a canção legionária preferida dos professores de Língua Portuguesa (pelo menos era a da minha professora da 6ª série, rs), pois cita de forma intercalada um dos sonetos mais famosos de Camões ("Amor é fogo que arde sem se ver") - transcrito quase na íntegra - e uma passagem bíblica dos Coríntios ("Ainda que eu falasse a língua dos homens e [...] dos anjos, / Sem amor eu nada seria"). A propósito dessas referências eruditas que permeiam As Quatro Estações, Dado Villa-Lobos, em sua autobiografia Memórias de um Legionário (2015) - co-escrita por Felipe Demier e Romulo Mattos - afirma que "o disco virou uma miscelânea de textos de diferentes épocas e tradições culturais, e desembocou em uma questão espiritual e ecumênica".

Dado também comentou que o disco traz "outras temáticas contrastantes, como a da sexualidade", e isso ficou evidente nas duas faixas seguintes, "Maurício" e "Meninos e Meninas". A primeira, talvez a faixa menos interessante do álbum (os teclados, ao contrário de faixas anteriores, ficaram datados, e a melodia não é tão contagiante), possivelmente trata de um caso amoroso anterior de Renato. A segunda, por sua vez, é uma das melhores do catálogo legionário (inclusive foi selecionada para a coletânea Mais do Mesmo, de 1998); ela contém, além de um ótimo ritmo ressaltado pelo arranjos dos violões com a bateria, uma confissão de bissexualidade mesclada a uma confissão de religiosidade: "Acho que gosto de São Paulo / Gosto de São João / Gosto de São Francisco / E São Sebastião / E eu gosto de meninos e meninas".

"Sete Cidades" fez sucesso nas rádios, possivelmente graças ao seu arranjo pop rock (com direito a gaita!) refrão romântico: "Quando não estás aqui / Sinto falta de mim mesmo / E sinto falta do teu corpo junto ao meu". Anos depois ela foi interpretada por Sérgio Britto - o titã favorito de Renato, pois este gostava de suas letras sentimentais - em As Dez Mais (1999).
"Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar" é outro caso de música que, ofuscada num álbum tão repleto de hits, também merecia ser mais reconhecida. O riff é um dos melhores de Dado Villa-Lobos, a bateria de Marcelo Bonfá é precisa e a letra conta com mais uma citação religiosa (desta vez ao Agnus Dei, baseado numa passagem do Evangelho de João), gerando um final de disco altamente ecumênico: "Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo / Tende piedade de nós / Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo / Dai-nos a paz".


As Quatro Estações era um disco bastante aguardado, dada a crescente popularidade da Legião Urbana; já na pré-venda o LP chegou a 400 mil cópias. O sucesso prosseguiu: chegou a 700 mil em 1990 (fato destacado por uma matéria da Veja, que ressaltava como as vendas deste disco eram até três vezes maiores que as de álbuns contemporâneos de outras bandas nacionais de rock, como os Titãs, os Paralamas do Sucesso e os Engenheiros do Hawaii), e no início da década de 2000 superou, segundo a ABPD, as 2 milhões de unidades. A Legião mudou de patamar - não só comercial (mesmo após seu fim o conjunto continuou a ser uma das bandas mais bem-sucedidas do catálogo internacional de artistas da gravadora EMI), mas também no próprio cenário musical brasileiro, transcendendo o fim da popularidade do "BRock", no início da década de 90. Grande parte do mérito por essa consolidação no cancioneiro popular nacional se deve ao álbum que completa 30 anos hoje.

16 outubro 2019

Palavras pra esquecer versos que repito, palavras pra dizer de novo o que foi dito

Em 16 de Outubro de 1989, chegou às lojas o álbum que considero a obra-prima dos Titãs: Õ Blésq Blom. É o disco mais eclético e experimental do octeto paulista, combinando elementos de música regional, punk, post-punk, pop rock, MPB, funk, eletrônica, country e reggae. As letras estão entre as melhores que os Titãs já escreveram: há crítica social ("Miséria"), lirismo ("Flores" e "Palavras"), inventário de patologias fisiológicas e anímicas ("O Pulso"), angústia existencial ("Medo" e "Deus e o Diabo"), intertextualidade ("32 Dentes"), e humor metalinguístico ("Racio Símio", "O Camelo e o Dromedário" e "Faculdade").
As origens de Õ Blésq Blom remontam à passagem da banda pelo Nordeste em meados de 1989, no fim da turnê de Go Back (álbum ao vivo lançado em 1988). Em Recife, na praia da Boa Viagem, eles conheceram os repentistas Mauro e Quitéria. Ficaram tão encantados com a música deles que Paulo Miklos correu para o hotel para buscar um gravador, e alguns trechos registrados em fita cassete serviram de abertura e encerramento para o futuro LP (além de um trecho da faixa “Miséria”). O próprio título do disco é tirado do inusitado dialeto criado por Mauro: segundo conta Ricardo Alexandre em Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos anos 80 (2002), ele era estivador e durante muitos anos conviveu com estrangeiros no cais do porto de Recife, de forma que o dialeto de suas canções mistura palavras em idiomas como inglês, grego, espanhol e italiano. “Õ blésq blom” significaria algo como “Os primeiros homens que pisaram sobre a Terra”.
Gravado no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, entre Julho e Setembro de 1989, este é o álbum mais sofisticado dos Titãs até então; o contraste com a produção crua dos três primeiros LPs, inclusive Cabeça Dinossauro (1986), é nítido, embora o lado A de Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas (1987) já antecipe sua sonoridade mais limpa e seus experimentos com funk e eletrônica. Na época foi chamado de “o vinil mais bem produzido que este país já viu” (José Augusto Lemos, da revista Bizz – a qual, aliás, elegeu Õ Blésq Blom como o melhor disco brasileiro de 1989, tanto na votação dos críticos quanto na dos leitores). Ele ainda soa moderno, e mesmo a bateria eletrônica não o deixou datado; pode-se dizer que o 5º LP titânico é o ápice de Liminha como produtor e dos Titãs como banda de estúdio.
Após dois anos quase ininterruptos na estrada, o conjunto estava em sua fase mais prolífica: 30 músicas foram escritas para o álbum, das quais 10 foram selecionadas (além das vinhetas com Mauro e Quitéria e "Natureza Morta", que é uma espécie de introdução a "Flores"). Dentre as sobras de Õ Blésq Blom, algumas chegaram a ser lançadas posteriormente:“Nem 5 Minutos Guardados”, “A Melhor Forma” e “Não Vou Lutar” – Acústico MTV (1997); “Era Uma Vez” e “Senhora e Senhor” – Volume Dois (1998); “Eu Prefiro Correr”, “Saber Sangrar”, “Estrelas”, “Minha Namorada”, “Aqui É Legal” e “Porta Principal” – E-Collection (2000). Com exceção das ótimas "Nem 5 Minutos Guardados" e "Não Vou Lutar", é possível dizer que a banda realmente foi criteriosa na escolha das faixas que entraram no álbum.

Vamos a uma análise das faixas de Õ Blésq Blom:



- “Miséria”: é, ao lado de “Comida”, a melhor crítica social escrita pelos Titãs. Ela também se assemelha - e supera - à sua antecessora no contraste entre o contagiante ritmo funkeado com os delicados temas sociopolíticos de que trata: "Miséria é miséria em qualquer canto / Riquezas são diferentes (...) Fracos, doentes, aflitos, carentes (...) A morte não causa mais espanto". Segundo o livro de Ricardo Alexandre, ninguém menos do que Caetano Veloso elogiou a música na época: “Os Titãs chegaram ao topo da MPB”.
- “Racio Símio”: a banda mostra sua faceta mais excêntrica com uma letra desconexa que faz paródia – por vezes bem cáustica – de ditos populares: "Quem esporra sempre alcança (...) Só os chatos não disfarçam / Os sonhos despedaçam / A razão é sempre do freguês (...) Quem come prego sabe o ** que tem". A propósito, "Racio Símio" era o título original do álbum, e inspirou o nome deste blog. Em seu Guia Politicamente Incorreto dos anos 80 pelo Rock (2017), Lobão cita esta faixa, ao lado de “Flores”, como um dos exemplos de “letras sensacionais” de um disco que “transborda criatividade”.
- “O Camelo e o Dromedário”: se a faixa anterior já era esquisita, esta vai ainda mais longe, com uma letra inusitada sobre as diferenças entre os dois ruminantes típicos de regiões desérticas, sob um delicioso ritmo de reggae. Paulo Miklos arrasa nos vocais predominantemente “falados”, como se cantasse um rap; vide versos hilários como: "Será que, por ter duas corcovas, o camelo passa mais tempo sem beber água? / Ou, pelo contrário, com um peso maior, beba mais água que o dromedário? / Será que o bom dromedário com sua única corcova tem por cima mais espaço? / E ficaria assim nosso amigo camelo exposto a um maior cansaço?".
- “Palavras”: em um disco marcado pela metalinguagem, esta é a faixa que traz esse elemento da forma mais lírica e pungente: "Palavras não têm cor / Palavras não tem culpa / Palavras de amor / Pra pedir desculpas / Palavras doentias / Páginas rasgadas / Palavras não se curam / Certas ou erradas". Destaque também para a bateria de Charles Gavin.
- “Medo”: curta, acelerada e nervosa canção que contém uma das letras mais intrigantes de Arnaldo Antunes: "Precisa perder o medo do sexo / Precisa perder o medo da morte / Precisa perder o medo da música". É a faixa do LP mais similar ao punk rock de Cabeça Dinossauro e do lado B de Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas.


- “Flores”: o maior hit do álbum. Seu videoclipe foi premiado no VMA da MTV de 1990 (na categoria Escolha da Audiência Internacional – Brasil) – e a viagem para Nova York serviu para a banda gravar o clipe de “Deus e o Diabo”. A letra de "Flores" pode ser interpretada em pelo menos dois níveis: o relato de um suicida numa perspectiva post mortem ("Os pulsos os punhos cortados / O resto do meu corpo inteiro / Há flores cobrindo o telhado / E embaixo do meu travesseiro"); e uma reflexão sobre o caráter efêmero e contingente da vida ("As flores de plástico não morrem"). Devo discordar de Caetano (e de certa forma concordar com Marisa Monte, que fez um dueto dela com Branco Mello na versão do Acústico): esta é a canção do álbum mais próxima da MPB.



- “O Pulso”: mais um momento excêntrico, com a enumeração de 48 doenças, inclusive as da alma (rancor, estupidez, hipocondria, ciúmes, cleptomania, hipocrisia, culpa). A despeito de todas as enfermidades listadas, o ser humano ainda sobrevive: "O pulso ainda pulsa"; por outro lado, há um limite: "O corpo ainda é pouco". Arthur Dapieve, em BRock – O Rock Brasileiro dos anos 80 (1995), interpreta esta faixa como uma “versão patológica” de “Nome aos Bois”, canção de Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas que citava vários ditadores e personalidades controversas. Para além da inusitada letra, vale elogiar a linha de baixo de Nando Reis e os teclados de Sérgio Britto. "O Pulso" é a música mais associada a Arnaldo do catálogo titânico; não por acaso, foi ele quem a cantou no Acústico.
- “32 Dentes”: os Titãs resolvem embarcar no country, em uma das melhores performances vocais de Branco Mello (que a cantava de um jeito ainda mais enlouquecido ao vivo). O riff inicial lembra “The Hungry Wolf” (X); aliás, é o segundo álbum seguido em que uma canção composta por Branco Mello, Tony Bellotto e Marcelo Fromer se inspira nessa banda punk californiana (o caso anterior foi “Armas pra Lutar”, cuja abertura remete a “Your Phone’s Off The Hook But You’re Not”). A supramencionada intertextualidade é com “Traumas” (Roberto Carlos): "Meu pai um dia me falou / Pra que eu nunca mentisse / Mas ele [também] se esqueceu / De me dizer a verdade").
- “Faculdade”: um funk que brinca com a polissemia de algumas palavras (faculdade, propriedade, utilidade, identidade). O sax de Miklos cria uma permanente tensão que finalmente se consuma nos segundos finais.
- “Deus e o Diabo”: uma das letras mais filosóficas dos Titãs – e olha que Arnaldo Antunes não está entre seus compositores! É interessante notar que Õ Blésq Blom é o álbum com mais contribuições líricas de Paulo Miklos e Nando Reis (inclusive esta faixa, que compuseram junto com Sérgio Britto), os dois titãs com maior inclinação para a MPB; vide suas carreiras solo. Assim como em "Miséria", há uma parceria nos vocais de Britto e Miklos, mas em "Deus e o Diabo" ela adquire o interessante contorno de inverterem os papéis de Deus e do diabo, os quais podem ser vistos como alegorias de estados emocionais, algo sugerido pelo refrão: "O que há de errado com meu coração?". Esta é a faixa mais eletrônica de Õ Blésq Blom (há até o sample de uma britadeira); segundo a biografia da banda A Vida Até Parece Uma Festa (2002), de Hérica Marmo e Luiz André Alzer, não surpreendentemente ela desagradou os guitarristas Fromer e Bellotto, pois quase não participaram de sua gravação. Controvérsias à parte, "Deus e o Diabo" é umas das minhas preferidas do álbum; eis o clipe dela:



Õ Blésq Blom foi aclamado pela crítica e teve boas vendas (220 mil cópias até o fim de 1990). O seu principal legado estético foi sobre o mangue beat (estilo de bandas como Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A), pela mistura de rock com ritmos regionais. O próprio Chico Science disse anos depois a Paulo Miklos que, no show dos Titãs em Recife na turnê do álbum, ele e outros fundadores do movimento estavam na primeira fila.

10 outubro 2019

Nothing he's got he really needs, 21st Century schizoid man


O dia 10 de Outubro de 1969 marcou o lançamento de três grandes álbuns de rock: Arthur  (or the Decline and Fall of the British Empire), dos Kinks (a propósito, hoje publiquei uma resenha dele no Album of the Year); Hot Rats, de Frank Zappa (que mistura rock instrumental com jazz-fusion); e um dos melhores discos não só da década de 1960, mas de todos os tempos: In the Court of the Crimson King, a estréia de uma banda formada apenas nove meses antes: o King Crimson, um quinteto composto por Robert Fripp (guitarra), Michael Giles (bateria), Greg Lake (vocais e baixo), Ian McDonald (backing vocals, mellotron, flauta, sax e vibrafone) e Peter Sinfield (letras).
1969 foi um annus mirabilis na trajetória dos Crims: 
- Em Janeiro, a banda fez seu primeiro ensaio no porão de um "road cafe"; 
- Em Abril, fizeram seus primeiros shows na Inglaterra;
- Em Julho, tocaram para cerca de meio milhão de pessoas em um festival no Hyde Park, como banda de abertura dos Rolling Stones (e de certa forma roubando a cena deles);
- Em Agosto, gravaram o seu disco de estréia, sendo eles próprios os produtores do álbum, após terem desavenças estéticas com Tony Clarke, produtor dos Moody Blues; 
- Em Outubro, lançaram In the Court of the Crimson King, que estreou direto no 5º lugar na Inglaterra (atrás apenas de grandes sucessos comerciais como Abbey Road, dos Beatles, e a coletânea Through the Past Darkly, dos próprios Rolling Stones), alcançou cinco meses depois o 28º lugar nos Estados Unidos e também um surpreendente 1º lugar entre os discos internacionais no Japão (superando até Abbey Road)
- No fim do mesmo mês, começaram uma extensa turnê pelos EUA, que teve uma ótima recepção; 
- Em Dezembro, durante a turnê americana, a banda se desintegrou, pois McDonald tinha divergências artísticas com Fripp (o primeiro queria que o King Crimson adotasse uma direção mais folk e romântica e com temáticas menos pesadas e sombrias, e o segundo priorizava a verve experimental), Giles não queria manter a rotina cansativa das turnês (chegou a defender que virassem uma banda de estúdio, como os Beatles, mas Fripp não se interessou por isso) e Lake foi convidado por Keith Emerson para formar o supergrupo Emerson, Lake & Palmer.
Ou seja, em menos de um ano a primeira formação crimsoniana passou por um início promissor, uma ascensão meteórica (foi um dos discos mais elogiados de 69, mesmo tendo sido lançado na mesma época de Abbey Road e Led Zeppelin II; além disso, conseguiu Disco de Ouro tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos) e um desfecho abrupto. Robert Fripp e Peter Sinfield mantiveram a banda viva, sendo que o primeiro foi o único integrante constante em todas as formações posteriores (já Sinfield sairia em 71, e dois anos depois começaria a compor letras para o Emerson, Lake & Palmer).

In the Court of the Crimson King é considerado um clássico, dentre outros motivos, por ter lançado as bases definitivas do rock progressivo, desde o apelo conceitual (a temática apocalíptica de três das cinco faixas) até o ecletismo, incorporando outros estilos musicais - inclusive música clássica/erudita - e saindo da ortodoxia do rock baseado no blues. Cabe ressaltar que quatro de suas canções estão entre as mais populares e influentes de toda a carreira da banda, e a outra ("Moonchild"), por mais que divida opiniões até hoje, foi importante por seu espírito vanguardista e por antecipar as improvisações ("blows") que se tornarão recorrentes nos álbuns seguintes. 

Eis uma análise faixa-a-faixa do debut crimsoniano:

21st Century Schizoid Man
Sete minutos de revolução sonora. Esta faixa combina elementos de heavy metal (aliás, foi uma das canções pioneiras no gênero), jazz (sua parte intermediária consiste em quase 4 minutos de uma insana e frenética improvisação) e rock progressivo (estrutura complexa, com muitas mudanças de ritmo, camadas sonoras e elevada "musicianship"). Na parte musical tudo é no mínimo espetacular: a guitarra feroz de Robert Fripp, os vocais distorcidos e o baixo contundente de Greg Lake, o sax histérico de Ian McDonald e a performance visceral de Michael Giles na bateria (experimente escutar uma versão da faixa com a bateria isolada dos demais instrumentos). Cabe notar que ela foi gravada ao vivo, num take só. 
A letra também merece destaque, contendo fortes tonalidade distópicas ("Neurosurgeons scream for more (...) Poets starving, children bleed"), criticando desde a Guerra do Vietnã ("Innocents raped with napalm fire") até o consumismo desenfreado ("Nothing he's got he really needs"). A propósito, a célebre e perturbadora capa de In the Court... retrata justamente o "schizoid man" descrito na letra.
Fripp manteve esta faixa no repertório até 1974 (ano do fim da primeira encarnação da banda), em 1996 e de 2014 em diante, talvez porque fosse o único elo do primeiro álbum com todas as demais encarnações do King Crimson: o sucessor In the Wake of Poseidon (1970) - no qual foi inserida a sua irmã caçula, "Pictures of a City" -, a fase jazzística de Lizard (1970) e Islands (1971) e a sonoridade mais pesada de Larks' Tongues in Aspic (1973), Starless and Bible Black (1974) e Red (1974).
"21st Century Schizoid Man" é, ao lado de “Starless”, a melhor canção do King Crimson, e curiosamente ambas se complementam: uma abriu o leque de possibilidades estéticas da banda e a outra o apresentou em sua forma definitiva. 

I Talk To The Wind
Um dos momentos mais belos do álbum é justamente a transição entre o caos de “21st Century...” e a serenidade de “I Talk To The Wind”, pois é nela que se percebe que estamos diante de uma banda eclética e talentosa.  Aliás, provavelmente foi durante esses poucos segundos que o King Crimson me conquistou, 8 anos atrás.
A performance de Ian McDonald na flauta é magistral, e mostra bem o tipo de sonoridade pastoral que ele queria – mas não pôde – desenvolver no King Crimson, e que acabou realizando no ótimo álbum solo McDonald and Giles (1971).

Epitaph
Outra transição notável é entre a faixa anterior e esta, com os tambores anunciando o início de uma canção tão épica em sua sonoridade quanto trágica em sua letra. Mais uma vez Sinfield evoca uma visão pessimista e decadentista: "The wall on which the prophets wrote / Is cracking at the seams (...) When every man is torn apart / With nightmares and with dreams / Will no one lay the laurel wreath / When silence drowns the screams".
Esta é uma das canções em que o uso do mellotron é mais proeminente, criando uma atmosfera lúgubre, como se estivesse retratando a agonizante queda de um Império. A guitarra acústica adiciona certa delicadeza à melodia, e os vocais de Greg Lake são majestosos.
A propósito, "Epitaph" contém os meus versos favoritos de uma letra do King Crimson: “Knowledge is a deadly friend / If no one sets the rules / The fate of all mankind / I see is in the hands of fools".

Moonchild
Os 3 primeiros minutos parecem sugerir uma canção melódica e delicada, na linha de "I Talk to the Wind", mas os 9 minutos finais vão por um caminho inusitado, cheio de improvisações instrumentais, envolvendo desde vibrafone até percussão.
É possível afirmar que "Moonchild" lança a semente para as intrigantes, desconcertantes - e, mesmo assim, por vezes belas - improvisações que marcarão álbuns posteriores, como Larks' Tongues in Aspic (1973).

The Court of the Crimson King
Das cinco canções do disco esta é a mais paradigmática para o rock progressivo, desde o uso abundante do mellotron (desta vez com uma tonalidade mais expansiva) até a letra profundamente alegórica e rebuscada (vide versos como "The pattern juggler lifts his hand / The orchestra begin / As slowly turns the grinding wheel / In the court of the crimson king"). Pode-se rastrear seu legado em bandas como Yes, Genesis, Pink Floyd, Camel e em qualquer outra que tentou construir uma canção sinfônica (ou simplesmente longa e ambiciosa) desde então. 
A faixa-título consegue transmitir elegância e melancolia ao mesmo tempo, e seu poderoso refrão é um dos momentos mais catárticos da discografia crimsoniana - e que ainda por cima é realçado quando ela é tocada ao vivo, criando uma sensação ecumênica (que felizmente pude experimentar no Rock in Rio - festival do qual farei uma resenha em breve).
Do ponto de vista da sonoridade, novamente temos a bela flauta de McDonald e o desempenho avassalador de Giles na bateria. A canção ainda conta com uma coda, que surge lentamente após o suposto clímax e desfecho; mesmo em seus dois minutos finais a canção (e o álbum) nos guarda um último momento sublime, ao retomar de forma ainda mais intensa a melodia principal. 

O rock nunca mais seria o mesmo depois de In the Court of the Crimson King; a elevação artística e o potencial de alta cultura de um estilo musical que começara estritamente popular e comercial já encontrava uma primeira demonstração cabal nos meses finais da década de 60, e o legado da primeira (e maior) obra-prima do King Crimson continua encantando ouvintes exatas cinco décadas depois.

06 outubro 2019

King Crimson no Rock in Rio no dia do 45º aniversário de Red


6 de Outubro de 2019: o King Crimson tocará no Rock in Rio, em sua 1ª turnê no Brasil em 50 anos de banda (ainda que interruptos, pois assumiu várias encarnações: 1969-74, 1981-84, 1994-2004, 2007-09 e 2013 em diante). Irei ao show, para o qual estou extremamente ansioso. Será um setlist de apenas uma hora, mas repleto de clássicos (dentre eles, espero, duas faixas sobre as quais falarei abaixo - "Red e "Starless").

6 de Outubro de 1974: Red, o sétimo álbum de estúdio do King Crimson, é lançado. Na época soou como um disco póstumo, pois poucos dias antes do lançamento o guitarrista Robert Fripp dissolveu a banda (para surpresa dos demais integrantes, que já estavam se preparando para uma nova turnê nos Estados Unidos) e entrou em um retiro espiritual da Fundação J. G. Bennett, um seguidor do místico Gurdjieff. Há quem diga que a banda estava à beira de repetir o sucesso de seu primeiro álbum (In The Court Of The Crimson King, de 1969, o mais famoso dos Crims), mas também se pode dizer que o conjunto acabou na hora certa – não só porque Red foi uma despedida em grande estilo, mas também porque o rock progressivo começou a perder prestígio entre crítica e público nos anos seguintes, a ponto de ser o bode expiatório do movimento punk como “tudo aquilo que está errado” no Rock. Após o fim da primeira encarnação do King Crimson, Fripp se tornaria um músico bastante requisitado, participando em faixas de artistas mais próximos ao art rock e à new wave, como Brian Eno, David Bowie, Peter Gabriel (outro egresso do rock progressivo), Blondie e Talking Heads. Quando ressuscitou o conjunto, em 1981, ele apontaria para outras direções estilísticas, tão interessantes quanto as adotadas nos anos 70, o que mostra como o King Crimson foi uma das bandas que mais levou a sério a proposta de fazer música progressiva, que não se apega ao passado e está sempre se movendo e se reinventando esteticamente. Nesse aspecto “metamórfico” ele só possui dois equivalentes na música do Século XX: Miles Davis e David Bowie.






“Red”, a canção que abre o álbum homônimo, é uma das mais poderosas e sombrias do catálogo do King Crimson. Em parte isso se deve, segundo o musicólogo Eric Tamm em seu livro Robert Fripp: From King Crimson to Crafty Master, ao uso do trítono, que na Idade Média era chamada de “a nota do diabo” (“diabolus in musica”), pois o intervalo entre notas cria uma dissonância que evoca um efeito de tensão soturna no ouvinte. A faixa-título possui a distinção de ser uma das poucas músicas da banda que foi tocada por todas as formações posteriores.



“Fallen Angel” tem uma letra sobre a violência das gangues em Nova York. Os versos evocam certa delicadeza (aliás, é interessante notar que todo álbum do King Crimson tem uma faixa mais gentil e melódica que as demais), mas no refrão a canção ganha peso, com direito a uma corneta estridente e a um solo de guitarra desconcertante.



“One More Red Nightmare” é a primeira e única letra do vocalista e baixista John Wetton para a banda (todas as letras da demais faixas dos três álbuns em que ele esteve no King Crimson foram escritas por Richard Palmer-James, ex-Supertramp; porém, Wetton também escreveu a letra inicial de "Starless") é sobre um pesadelo de um acidente aéreo. Para evocar essa sensação de desespero foi providencial a ferocidade com que Bill Bruford tocou os pratos de bateria que achou em um lixo (aliás, vale a pena conferir a empolgação com que ele relata isso em sua autobiografia).



“Providence” é uma improvisação feita em um show em Providence (capital de Rhode Island, nos EUA) no dia 30 de Junho de 1974 – aliás, foi o penúltimo da banda antes da dissolução. É a única canção do álbum com participação do violinista David Cross, que foi demitido por "incompatibilidades artísticas" entre o fim da turnê americana e a gravação do álbum, em Julho. À primeira vista soa meio deslocada em Red (embora continue os experimentos ao vivo já presentes no álbum anterior, Starless and Bible Black), mas funciona muito bem para criar o clima de tensão que antecederá a última faixa, assim como dar um respiro após a intensidade das três canções anteriores.






“Starless” é possivelmente a obra-prima do King Crimson, a canção que em 12 minutos sintetiza todas as fases da banda: o início (até cerca de 4:30) é sinfônico e melancólico, a parte intermediária (entre 4:30 e 9:00) é uma improvisação que gera uma tensão crescente - em especial pelo ritmo repetitivo da guitarra - e o final (de 9:00 em diante) é uma explosão sonora que oscila entre o jazz e o metal, à la "21st Century Schizoid Man" (a eletrizante 1ª faixa de In The Court of the Crimson King). Segundo Eric Tamm, essa estrutura tripartite é semelhante à de uma sonata, por conter exposição, desenvolvimento e recapitulação (afinal nos dois últimos minutos a melodia inicial é retomada). A versão de estúdio substitui o violino que David Cross usava na versão ao vivo por um dos mais belos solos de guitarra de Fripp, e que antecipa o estilo atmosférico que ele adotará nos anos seguintes em faixas como “Heroes” (David Bowie). Wetton canta com muita emoção a ótima letra que escreveu junto com Palmer-James, e também contribui de forma substantiva com seu baixo, que em combinação com a bateria de Bruford compõe o que Fripp chamava de “flying brick wall”. Todos esses elementos fazem de “Starless” um final digno para a primeira fase do King Crimson.



Red, até pela falta de uma turnê e pelo desapontamento de ser um álbum de uma banda defunta, não vendeu bem (chegou apenas ao 45º lugar das paradas britânicas e ao 66º das americanas), mas em compensação foi o segundo disco mais influente do King Crimson (o primeiro é o álbum de estréia, afinal nada menos do que inventou o rock progressivo). Inspirou desde bandas de metal progressivo (como Tool) até de grunge (Kurt Cobain citou Red na sua lendária lista de 50 álbuns favoritos, e In Utero é certamente um herdeiro de sua dinâmica sonora entre versos calmos e refrões furiosos). Além disso, é um dos álbuns progressivos que melhor envelheceu; um ouvinte desatento poderia pensar que ele foi lançado nos anos 90, talvez pela combinação da sonoridade pesada produzida pelo “power trio” Fripp, Wetton e Bruford com a sofisticação dada pelos instrumentos de sopro (em especial o sax de Ian McDonald em “One More Red Nightmare” e “Starless” – aliás, foi uma participação mais do que especial, pois McDonald é um ex-membro da banda, tendo sido o principal compositor de In The Court of The Crimson King).