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10 outubro 2019

Nothing he's got he really needs, 21st Century schizoid man


O dia 10 de Outubro de 1969 marcou o lançamento de três grandes álbuns de rock: Arthur  (or the Decline and Fall of the British Empire), dos Kinks (a propósito, hoje publiquei uma resenha dele no Album of the Year); Hot Rats, de Frank Zappa (que mistura rock instrumental com jazz-fusion); e um dos melhores discos não só da década de 1960, mas de todos os tempos: In the Court of the Crimson King, a estréia de uma banda formada apenas nove meses antes: o King Crimson, um quinteto composto por Robert Fripp (guitarra), Michael Giles (bateria), Greg Lake (vocais e baixo), Ian McDonald (backing vocals, mellotron, flauta, sax e vibrafone) e Peter Sinfield (letras).
1969 foi um annus mirabilis na trajetória dos Crims: 
- Em Janeiro, a banda fez seu primeiro ensaio no porão de um "road cafe"; 
- Em Abril, fizeram seus primeiros shows na Inglaterra;
- Em Julho, tocaram para cerca de meio milhão de pessoas em um festival no Hyde Park, como banda de abertura dos Rolling Stones (e de certa forma roubando a cena deles);
- Em Agosto, gravaram o seu disco de estréia, sendo eles próprios os produtores do álbum, após terem desavenças estéticas com Tony Clarke, produtor dos Moody Blues; 
- Em Outubro, lançaram In the Court of the Crimson King, que estreou direto no 5º lugar na Inglaterra (atrás apenas de grandes sucessos comerciais como Abbey Road, dos Beatles, e a coletânea Through the Past Darkly, dos próprios Rolling Stones), alcançou cinco meses depois o 28º lugar nos Estados Unidos e também um surpreendente 1º lugar entre os discos internacionais no Japão (superando até Abbey Road)
- No fim do mesmo mês, começaram uma extensa turnê pelos EUA, que teve uma ótima recepção; 
- Em Dezembro, durante a turnê americana, a banda se desintegrou, pois McDonald tinha divergências artísticas com Fripp (o primeiro queria que o King Crimson adotasse uma direção mais folk e romântica e com temáticas menos pesadas e sombrias, e o segundo priorizava a verve experimental), Giles não queria manter a rotina cansativa das turnês (chegou a defender que virassem uma banda de estúdio, como os Beatles, mas Fripp não se interessou por isso) e Lake foi convidado por Keith Emerson para formar o supergrupo Emerson, Lake & Palmer.
Ou seja, em menos de um ano a primeira formação crimsoniana passou por um início promissor, uma ascensão meteórica (foi um dos discos mais elogiados de 69, mesmo tendo sido lançado na mesma época de Abbey Road e Led Zeppelin II; além disso, conseguiu Disco de Ouro tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos) e um desfecho abrupto. Robert Fripp e Peter Sinfield mantiveram a banda viva, sendo que o primeiro foi o único integrante constante em todas as formações posteriores (já Sinfield sairia em 71, e dois anos depois começaria a compor letras para o Emerson, Lake & Palmer).

In the Court of the Crimson King é considerado um clássico, dentre outros motivos, por ter lançado as bases definitivas do rock progressivo, desde o apelo conceitual (a temática apocalíptica de três das cinco faixas) até o ecletismo, incorporando outros estilos musicais - inclusive música clássica/erudita - e saindo da ortodoxia do rock baseado no blues. Cabe ressaltar que quatro de suas canções estão entre as mais populares e influentes de toda a carreira da banda, e a outra ("Moonchild"), por mais que divida opiniões até hoje, foi importante por seu espírito vanguardista e por antecipar as improvisações ("blows") que se tornarão recorrentes nos álbuns seguintes. 

Eis uma análise faixa-a-faixa do debut crimsoniano:

21st Century Schizoid Man
Sete minutos de revolução sonora. Esta faixa combina elementos de heavy metal (aliás, foi uma das canções pioneiras no gênero), jazz (sua parte intermediária consiste em quase 4 minutos de uma insana e frenética improvisação) e rock progressivo (estrutura complexa, com muitas mudanças de ritmo, camadas sonoras e elevada "musicianship"). Na parte musical tudo é no mínimo espetacular: a guitarra feroz de Robert Fripp, os vocais distorcidos e o baixo contundente de Greg Lake, o sax histérico de Ian McDonald e a performance visceral de Michael Giles na bateria (experimente escutar uma versão da faixa com a bateria isolada dos demais instrumentos). Cabe notar que ela foi gravada ao vivo, num take só. 
A letra também merece destaque, contendo fortes tonalidade distópicas ("Neurosurgeons scream for more (...) Poets starving, children bleed"), criticando desde a Guerra do Vietnã ("Innocents raped with napalm fire") até o consumismo desenfreado ("Nothing he's got he really needs"). A propósito, a célebre e perturbadora capa de In the Court... retrata justamente o "schizoid man" descrito na letra.
Fripp manteve esta faixa no repertório até 1974 (ano do fim da primeira encarnação da banda), em 1996 e de 2014 em diante, talvez porque fosse o único elo do primeiro álbum com todas as demais encarnações do King Crimson: o sucessor In the Wake of Poseidon (1970) - no qual foi inserida a sua irmã caçula, "Pictures of a City" -, a fase jazzística de Lizard (1970) e Islands (1971) e a sonoridade mais pesada de Larks' Tongues in Aspic (1973), Starless and Bible Black (1974) e Red (1974).
"21st Century Schizoid Man" é, ao lado de “Starless”, a melhor canção do King Crimson, e curiosamente ambas se complementam: uma abriu o leque de possibilidades estéticas da banda e a outra o apresentou em sua forma definitiva. 

I Talk To The Wind
Um dos momentos mais belos do álbum é justamente a transição entre o caos de “21st Century...” e a serenidade de “I Talk To The Wind”, pois é nela que se percebe que estamos diante de uma banda eclética e talentosa.  Aliás, provavelmente foi durante esses poucos segundos que o King Crimson me conquistou, 8 anos atrás.
A performance de Ian McDonald na flauta é magistral, e mostra bem o tipo de sonoridade pastoral que ele queria – mas não pôde – desenvolver no King Crimson, e que acabou realizando no ótimo álbum solo McDonald and Giles (1971).

Epitaph
Outra transição notável é entre a faixa anterior e esta, com os tambores anunciando o início de uma canção tão épica em sua sonoridade quanto trágica em sua letra. Mais uma vez Sinfield evoca uma visão pessimista e decadentista: "The wall on which the prophets wrote / Is cracking at the seams (...) When every man is torn apart / With nightmares and with dreams / Will no one lay the laurel wreath / When silence drowns the screams".
Esta é uma das canções em que o uso do mellotron é mais proeminente, criando uma atmosfera lúgubre, como se estivesse retratando a agonizante queda de um Império. A guitarra acústica adiciona certa delicadeza à melodia, e os vocais de Greg Lake são majestosos.
A propósito, "Epitaph" contém os meus versos favoritos de uma letra do King Crimson: “Knowledge is a deadly friend / If no one sets the rules / The fate of all mankind / I see is in the hands of fools".

Moonchild
Os 3 primeiros minutos parecem sugerir uma canção melódica e delicada, na linha de "I Talk to the Wind", mas os 9 minutos finais vão por um caminho inusitado, cheio de improvisações instrumentais, envolvendo desde vibrafone até percussão.
É possível afirmar que "Moonchild" lança a semente para as intrigantes, desconcertantes - e, mesmo assim, por vezes belas - improvisações que marcarão álbuns posteriores, como Larks' Tongues in Aspic (1973).

The Court of the Crimson King
Das cinco canções do disco esta é a mais paradigmática para o rock progressivo, desde o uso abundante do mellotron (desta vez com uma tonalidade mais expansiva) até a letra profundamente alegórica e rebuscada (vide versos como "The pattern juggler lifts his hand / The orchestra begin / As slowly turns the grinding wheel / In the court of the crimson king"). Pode-se rastrear seu legado em bandas como Yes, Genesis, Pink Floyd, Camel e em qualquer outra que tentou construir uma canção sinfônica (ou simplesmente longa e ambiciosa) desde então. 
A faixa-título consegue transmitir elegância e melancolia ao mesmo tempo, e seu poderoso refrão é um dos momentos mais catárticos da discografia crimsoniana - e que ainda por cima é realçado quando ela é tocada ao vivo, criando uma sensação ecumênica (que felizmente pude experimentar no Rock in Rio - festival do qual farei uma resenha em breve).
Do ponto de vista da sonoridade, novamente temos a bela flauta de McDonald e o desempenho avassalador de Giles na bateria. A canção ainda conta com uma coda, que surge lentamente após o suposto clímax e desfecho; mesmo em seus dois minutos finais a canção (e o álbum) nos guarda um último momento sublime, ao retomar de forma ainda mais intensa a melodia principal. 

O rock nunca mais seria o mesmo depois de In the Court of the Crimson King; a elevação artística e o potencial de alta cultura de um estilo musical que começara estritamente popular e comercial já encontrava uma primeira demonstração cabal nos meses finais da década de 60, e o legado da primeira (e maior) obra-prima do King Crimson continua encantando ouvintes exatas cinco décadas depois.

 

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