A Legião Urbana lançou seu quarto álbum, intitulado As Quatro Estações, em 26 de Outubro de 1989. Ou seja, aquele mês teve o lançamento não só do melhor álbum dos Titãs (Õ Blésq Blom), mas também da obra-prima da Legião até então (e que, para mim, só seria superada pelo disco seguinte deles, V).
As Quatro Estações foi o disco da banda que teve gestação mais longa: começou ser composto mais de um ano antes, em Agosto de 1988, logo após o fim de uma turbulenta turnê - cujo momento mais crítico foi o desastroso show no Mané Garrincha, em Brasília, em Junho daquele ano. O próprio vocalista Renato Russo admitiu que as músicas demoraram "porque eu tinha que tirar Brasília do meu sistema". Durante o processo de composição e gravação a Legião ainda passou por mais um problema: a demissão do baixista Renato Rocha, cujo comportamento errático (ex.: faltando ou chegando atrasado aos ensaios; perdendo vôos e equipamentos; tendo pouca afinidade musical com o baterista Marcelo Bonfá...) chegou a tal ponto que a banda não conseguia mais trabalhar com ele.
A saída de Rocha teve um impacto estético, pois ele representava um elemento punk/hardcore que o agora trio pretendia abandonar. As Quatro Estações é o início da trilogia dos álbuns mais sofisticados da Legião Urbana: canções como "Eu Era um Lobisomem Juvenil" flertam com o rock progressivo, aproximação estilística que será reforçada no próximo álbum, V (1991), e outras, como "Feedback Song For A Dying Friend", trazem instrumentos musicais inusitados, algo que será realçado em O Descobrimento do Brasil (1993).
O disco abre com um caso inusitado de canção pop sem refrão: "Há Tempos", a qual possui uma das letras mais bonitas e elaboradas de Renato Russo. O verso inicial ("Parece cocaína / Mas é só tristeza") lembra um trecho de "Station to Station", de David Bowie ("It's not the side effects of the cocaine / I'm thinking that it must be love"); segue-se uma citação ao poema Desiderata, de Max Ehrmann ("Muitos temores nascem do cansaço e da solidão") e, no final, uma inversão otimista do "double think" do romance distópico "1984", de George Orwell ("Disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem").
"Pais e Filhos", um dos maiores sucessos da banda, é outro destaque lírico do álbum, com versos que, como bem apontou Arthur Dapieve em Renato Russo: o trovador solitário (2000), apresentam "fragmentos de cenas e conflitos familiares" - desde um suicídio ("Ela se jogou da janela do quinto andar") até uma família divorciada ("Eu moro com minha mãe / Mas meu pai vem me visitar"). O próprio Renato, no Programa Livre em 1994, mostrou seu espanto com o fato de que as pessoas cantavam alegremente o refrão ("É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã") sem reparar no seu desfecho amargo ("Porque se você parar pra pensar, / Na verdade não há"). A faixa ainda conta com um notável solo de guitarra de Dado Villa-Lobos durante o minuto final - aguçado pela catarse dos versos que o acompanham: "Sou uma gota d'água / Sou um grão de areia / Você me diz que seus pais não entendem / Mas você não entende seus pais / Você culpa seus pais por tudo / E isso é absurdo / São crianças como você / O que você vai ser / Quando você crescer?"
"Feedback Song For A Dying Friend" é, do ponto de vista sonoro, a mais excêntrica do disco, em especial na sua parte final, calcada em música indiana. A letra, escrita em inglês - e, que no encarte do álbum, ganhou uma primorosa tradução de Millôr Fernandes - tem conotações homoeróticas, e o título da faixa é uma alusão a dois artistas que foram vítimas das complicações decorrentes da AIDS: o fotógrafo Robert Mappletorphe, falecido em Março de 89, e Cazuza, que na época expôs publicamente sua enfermidade, tendo morrido no ano seguinte.
"Quando O Sol Bater Na Janela Do Teu Quarto" é mais um caso de intertextualidade - desta vez, com a Doutrina de Buda (Bukkyo Dendo Kyokai): "Tudo é dor / E toda dor vem do desejo / De não sentimos dor". Os versos expressam uma mistura de angústia ("Quem roubou nossa coragem?") com vislumbre de redenção ("Mas ainda temos chance"). Sua deliciosa sonoridade pop fez dela um dos maiores hits do álbum; não só ganhou cover do Barão Vermelho em 1999, como também sua versão acústica, presente no póstumo álbum ao vivo Como É Que Se Diz Eu Te Amo (lançado em 2001, gravado em 1994), também fez sucesso.
"Eu Era um Lobisomem Juvenil" pode até não estar entre as canções mais famosas da banda, mas é certamente um dos destaques deste álbum. A introdução instrumental é delicada e os teclados lhe dão uma sonoridade mais imponente - especialmente no refrão e na coda. Seus versos expressam uma aguda introspecção: "O que sinto muitas vezes / Faz sentido e outras vezes / Não descubro um motivo / Que me explique porque é / Que não consigo ver sentido / No que sinto, que procuro (...) O que você me falou / Me fez rir e pensar / Porque estou tão preocupado / Por estar tão preocupado assim..."
"1965 (Duas Tribos)" mantém a tradição de canções punk politizadas da Legião, à la "Geração Coca-Cola" e "Que País É Este". Como o próprio título sugere, a letra trata do período da ditadura militar; seus versos oscilam entre a descrição das mortes e torturas ("Cortaram meus braços / Cortaram minha mãos / Cortaram minhas pernas / Num dia de verão"), a crítica da corrosão dos padrões ético-morais ("Quando querem transformar / Dignidade em doença (...) Inteligência em traição (...) Estupidez em recompensa (...) Esperança em maldição") e o sarcasmo em relação à euforia do milagre econômico: "Eu tenho um autorama / Eu tenho um Hanna Barbera (...) E modelos Revell / O Brasil é o país do futuro".
"Monte Castelo" é possivelmente a canção legionária preferida dos professores de Língua Portuguesa (pelo menos era a da minha professora da 6ª série, rs), pois cita de forma intercalada um dos sonetos mais famosos de Camões ("Amor é fogo que arde sem se ver") - transcrito quase na íntegra - e uma passagem bíblica dos Coríntios ("Ainda que eu falasse a língua dos homens e [...] dos anjos, / Sem amor eu nada seria"). A propósito dessas referências eruditas que permeiam As Quatro Estações, Dado Villa-Lobos, em sua autobiografia Memórias de um Legionário (2015) - co-escrita por Felipe Demier e Romulo Mattos - afirma que "o disco virou uma miscelânea de textos de diferentes épocas e tradições culturais, e desembocou em uma questão espiritual e ecumênica".
Dado também comentou que o disco traz "outras temáticas contrastantes, como a da sexualidade", e isso ficou evidente nas duas faixas seguintes, "Maurício" e "Meninos e Meninas". A primeira, talvez a faixa menos interessante do álbum (os teclados, ao contrário de faixas anteriores, ficaram datados, e a melodia não é tão contagiante), possivelmente trata de um caso amoroso anterior de Renato. A segunda, por sua vez, é uma das melhores do catálogo legionário (inclusive foi selecionada para a coletânea Mais do Mesmo, de 1998); ela contém, além de um ótimo ritmo ressaltado pelo arranjos dos violões com a bateria, uma confissão de bissexualidade mesclada a uma confissão de religiosidade: "Acho que gosto de São Paulo / Gosto de São João / Gosto de São Francisco / E São Sebastião / E eu gosto de meninos e meninas".
"Sete Cidades" fez sucesso nas rádios, possivelmente graças ao seu arranjo pop rock (com direito a gaita!) refrão romântico: "Quando não estás aqui / Sinto falta de mim mesmo / E sinto falta do teu corpo junto ao meu". Anos depois ela foi interpretada por Sérgio Britto - o titã favorito de Renato, pois este gostava de suas letras sentimentais - em As Dez Mais (1999).
"Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar" é outro caso de música que, ofuscada num álbum tão repleto de hits, também merecia ser mais reconhecida. O riff é um dos melhores de Dado Villa-Lobos, a bateria de Marcelo Bonfá é precisa e a letra conta com mais uma citação religiosa (desta vez ao Agnus Dei, baseado numa passagem do Evangelho de João), gerando um final de disco altamente ecumênico: "Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo / Tende piedade de nós / Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo / Dai-nos a paz".
As Quatro Estações era um disco bastante aguardado, dada a crescente popularidade da Legião Urbana; já na pré-venda o LP chegou a 400 mil cópias. O sucesso prosseguiu: chegou a 700 mil em 1990 (fato destacado por uma matéria da Veja, que ressaltava como as vendas deste disco eram até três vezes maiores que as de álbuns contemporâneos de outras bandas nacionais de rock, como os Titãs, os Paralamas do Sucesso e os Engenheiros do Hawaii), e no início da década de 2000 superou, segundo a ABPD, as 2 milhões de unidades. A Legião mudou de patamar - não só comercial (mesmo após seu fim o conjunto continuou a ser uma das bandas mais bem-sucedidas do catálogo internacional de artistas da gravadora EMI), mas também no próprio cenário musical brasileiro, transcendendo o fim da popularidade do "BRock", no início da década de 90. Grande parte do mérito por essa consolidação no cancioneiro popular nacional se deve ao álbum que completa 30 anos hoje.