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Kaio

 

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16 outubro 2019

Palavras pra esquecer versos que repito, palavras pra dizer de novo o que foi dito

Em 16 de Outubro de 1989, chegou às lojas o álbum que considero a obra-prima dos Titãs: Õ Blésq Blom. É o disco mais eclético e experimental do octeto paulista, combinando elementos de música regional, punk, post-punk, pop rock, MPB, funk, eletrônica, country e reggae. As letras estão entre as melhores que os Titãs já escreveram: há crítica social ("Miséria"), lirismo ("Flores" e "Palavras"), inventário de patologias fisiológicas e anímicas ("O Pulso"), angústia existencial ("Medo" e "Deus e o Diabo"), intertextualidade ("32 Dentes"), e humor metalinguístico ("Racio Símio", "O Camelo e o Dromedário" e "Faculdade").
As origens de Õ Blésq Blom remontam à passagem da banda pelo Nordeste em meados de 1989, no fim da turnê de Go Back (álbum ao vivo lançado em 1988). Em Recife, na praia da Boa Viagem, eles conheceram os repentistas Mauro e Quitéria. Ficaram tão encantados com a música deles que Paulo Miklos correu para o hotel para buscar um gravador, e alguns trechos registrados em fita cassete serviram de abertura e encerramento para o futuro LP (além de um trecho da faixa “Miséria”). O próprio título do disco é tirado do inusitado dialeto criado por Mauro: segundo conta Ricardo Alexandre em Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos anos 80 (2002), ele era estivador e durante muitos anos conviveu com estrangeiros no cais do porto de Recife, de forma que o dialeto de suas canções mistura palavras em idiomas como inglês, grego, espanhol e italiano. “Õ blésq blom” significaria algo como “Os primeiros homens que pisaram sobre a Terra”.
Gravado no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, entre Julho e Setembro de 1989, este é o álbum mais sofisticado dos Titãs até então; o contraste com a produção crua dos três primeiros LPs, inclusive Cabeça Dinossauro (1986), é nítido, embora o lado A de Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas (1987) já antecipe sua sonoridade mais limpa e seus experimentos com funk e eletrônica. Na época foi chamado de “o vinil mais bem produzido que este país já viu” (José Augusto Lemos, da revista Bizz – a qual, aliás, elegeu Õ Blésq Blom como o melhor disco brasileiro de 1989, tanto na votação dos críticos quanto na dos leitores). Ele ainda soa moderno, e mesmo a bateria eletrônica não o deixou datado; pode-se dizer que o 5º LP titânico é o ápice de Liminha como produtor e dos Titãs como banda de estúdio.
Após dois anos quase ininterruptos na estrada, o conjunto estava em sua fase mais prolífica: 30 músicas foram escritas para o álbum, das quais 10 foram selecionadas (além das vinhetas com Mauro e Quitéria e "Natureza Morta", que é uma espécie de introdução a "Flores"). Dentre as sobras de Õ Blésq Blom, algumas chegaram a ser lançadas posteriormente:“Nem 5 Minutos Guardados”, “A Melhor Forma” e “Não Vou Lutar” – Acústico MTV (1997); “Era Uma Vez” e “Senhora e Senhor” – Volume Dois (1998); “Eu Prefiro Correr”, “Saber Sangrar”, “Estrelas”, “Minha Namorada”, “Aqui É Legal” e “Porta Principal” – E-Collection (2000). Com exceção das ótimas "Nem 5 Minutos Guardados" e "Não Vou Lutar", é possível dizer que a banda realmente foi criteriosa na escolha das faixas que entraram no álbum.

Vamos a uma análise das faixas de Õ Blésq Blom:



- “Miséria”: é, ao lado de “Comida”, a melhor crítica social escrita pelos Titãs. Ela também se assemelha - e supera - à sua antecessora no contraste entre o contagiante ritmo funkeado com os delicados temas sociopolíticos de que trata: "Miséria é miséria em qualquer canto / Riquezas são diferentes (...) Fracos, doentes, aflitos, carentes (...) A morte não causa mais espanto". Segundo o livro de Ricardo Alexandre, ninguém menos do que Caetano Veloso elogiou a música na época: “Os Titãs chegaram ao topo da MPB”.
- “Racio Símio”: a banda mostra sua faceta mais excêntrica com uma letra desconexa que faz paródia – por vezes bem cáustica – de ditos populares: "Quem esporra sempre alcança (...) Só os chatos não disfarçam / Os sonhos despedaçam / A razão é sempre do freguês (...) Quem come prego sabe o ** que tem". A propósito, "Racio Símio" era o título original do álbum, e inspirou o nome deste blog. Em seu Guia Politicamente Incorreto dos anos 80 pelo Rock (2017), Lobão cita esta faixa, ao lado de “Flores”, como um dos exemplos de “letras sensacionais” de um disco que “transborda criatividade”.
- “O Camelo e o Dromedário”: se a faixa anterior já era esquisita, esta vai ainda mais longe, com uma letra inusitada sobre as diferenças entre os dois ruminantes típicos de regiões desérticas, sob um delicioso ritmo de reggae. Paulo Miklos arrasa nos vocais predominantemente “falados”, como se cantasse um rap; vide versos hilários como: "Será que, por ter duas corcovas, o camelo passa mais tempo sem beber água? / Ou, pelo contrário, com um peso maior, beba mais água que o dromedário? / Será que o bom dromedário com sua única corcova tem por cima mais espaço? / E ficaria assim nosso amigo camelo exposto a um maior cansaço?".
- “Palavras”: em um disco marcado pela metalinguagem, esta é a faixa que traz esse elemento da forma mais lírica e pungente: "Palavras não têm cor / Palavras não tem culpa / Palavras de amor / Pra pedir desculpas / Palavras doentias / Páginas rasgadas / Palavras não se curam / Certas ou erradas". Destaque também para a bateria de Charles Gavin.
- “Medo”: curta, acelerada e nervosa canção que contém uma das letras mais intrigantes de Arnaldo Antunes: "Precisa perder o medo do sexo / Precisa perder o medo da morte / Precisa perder o medo da música". É a faixa do LP mais similar ao punk rock de Cabeça Dinossauro e do lado B de Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas.


- “Flores”: o maior hit do álbum. Seu videoclipe foi premiado no VMA da MTV de 1990 (na categoria Escolha da Audiência Internacional – Brasil) – e a viagem para Nova York serviu para a banda gravar o clipe de “Deus e o Diabo”. A letra de "Flores" pode ser interpretada em pelo menos dois níveis: o relato de um suicida numa perspectiva post mortem ("Os pulsos os punhos cortados / O resto do meu corpo inteiro / Há flores cobrindo o telhado / E embaixo do meu travesseiro"); e uma reflexão sobre o caráter efêmero e contingente da vida ("As flores de plástico não morrem"). Devo discordar de Caetano (e de certa forma concordar com Marisa Monte, que fez um dueto dela com Branco Mello na versão do Acústico): esta é a canção do álbum mais próxima da MPB.



- “O Pulso”: mais um momento excêntrico, com a enumeração de 48 doenças, inclusive as da alma (rancor, estupidez, hipocondria, ciúmes, cleptomania, hipocrisia, culpa). A despeito de todas as enfermidades listadas, o ser humano ainda sobrevive: "O pulso ainda pulsa"; por outro lado, há um limite: "O corpo ainda é pouco". Arthur Dapieve, em BRock – O Rock Brasileiro dos anos 80 (1995), interpreta esta faixa como uma “versão patológica” de “Nome aos Bois”, canção de Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas que citava vários ditadores e personalidades controversas. Para além da inusitada letra, vale elogiar a linha de baixo de Nando Reis e os teclados de Sérgio Britto. "O Pulso" é a música mais associada a Arnaldo do catálogo titânico; não por acaso, foi ele quem a cantou no Acústico.
- “32 Dentes”: os Titãs resolvem embarcar no country, em uma das melhores performances vocais de Branco Mello (que a cantava de um jeito ainda mais enlouquecido ao vivo). O riff inicial lembra “The Hungry Wolf” (X); aliás, é o segundo álbum seguido em que uma canção composta por Branco Mello, Tony Bellotto e Marcelo Fromer se inspira nessa banda punk californiana (o caso anterior foi “Armas pra Lutar”, cuja abertura remete a “Your Phone’s Off The Hook But You’re Not”). A supramencionada intertextualidade é com “Traumas” (Roberto Carlos): "Meu pai um dia me falou / Pra que eu nunca mentisse / Mas ele [também] se esqueceu / De me dizer a verdade").
- “Faculdade”: um funk que brinca com a polissemia de algumas palavras (faculdade, propriedade, utilidade, identidade). O sax de Miklos cria uma permanente tensão que finalmente se consuma nos segundos finais.
- “Deus e o Diabo”: uma das letras mais filosóficas dos Titãs – e olha que Arnaldo Antunes não está entre seus compositores! É interessante notar que Õ Blésq Blom é o álbum com mais contribuições líricas de Paulo Miklos e Nando Reis (inclusive esta faixa, que compuseram junto com Sérgio Britto), os dois titãs com maior inclinação para a MPB; vide suas carreiras solo. Assim como em "Miséria", há uma parceria nos vocais de Britto e Miklos, mas em "Deus e o Diabo" ela adquire o interessante contorno de inverterem os papéis de Deus e do diabo, os quais podem ser vistos como alegorias de estados emocionais, algo sugerido pelo refrão: "O que há de errado com meu coração?". Esta é a faixa mais eletrônica de Õ Blésq Blom (há até o sample de uma britadeira); segundo a biografia da banda A Vida Até Parece Uma Festa (2002), de Hérica Marmo e Luiz André Alzer, não surpreendentemente ela desagradou os guitarristas Fromer e Bellotto, pois quase não participaram de sua gravação. Controvérsias à parte, "Deus e o Diabo" é umas das minhas preferidas do álbum; eis o clipe dela:



Õ Blésq Blom foi aclamado pela crítica e teve boas vendas (220 mil cópias até o fim de 1990). O seu principal legado estético foi sobre o mangue beat (estilo de bandas como Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A), pela mistura de rock com ritmos regionais. O próprio Chico Science disse anos depois a Paulo Miklos que, no show dos Titãs em Recife na turnê do álbum, ele e outros fundadores do movimento estavam na primeira fila.

 

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