PREFÁCIO
“O homem contemporâneo parece ter
desaprendido a ler. Em nossa época de hermeneutas, de intérpretes de toda
espécie, intérpretes que se sobrepõem à coisa interpretada, leituras que se
sobrepõem ao texto lido (...) não há como evitar o choque de uma constatação
surpreendente: a de que, apesar de todas essas sofisticações, o homem
contemporâneo parece ter desaprendido a ler.” (p. 13)
CAPÍTULO
I
“Maquiavel, Hobbes, Rousseau tinham, cada
um deles, sua opinião sobre os instintos fundamentais do homem e inferiam dessa
opinião qual deveria ser a ordem a implantar na sociedade. Essa inferência,
todavia, não significava a intuição da existência de uma correspondência entre
a estrutura da alma humana e da sociedade. Essa intuição foi privilégio de Platão.
A correspondência, que intuíam, não era a de uma analogia, mas a de um
contraste; não era uma ordem na alma humana que se refletisse na sociedade;
era, ao contrário, uma desordem na alma humana que não poderia, que não deveria
se refletir na sociedade.” (p. 17)
“O homem não é bom nem mau, o homem é uma
possibilidade que, através da educação, poderia se transformar em ponto de
referência útil a quem pretenda organizar planos de uma ordenação social. Tal é
a sugestão que encontramos na obra de Platão (...). As teorias políticas que
surgiram no período moderno da história só se tornaram possíveis quando
desapareceu essa idéia da posição central da educação na vida espiritual do
homem. São todas elas teorias que atribuem ao homem uma natureza fixa, intransformável
– o homem é um animal de rapina para Hobbes, um pérfido intrigante para
Maquiavel, um egoísta e um calculista para Locke e Rousseau.” (p. 19)
“A cultura clássica dos gregos se
distingue de todas as outras culturas por três traços fundamentais: seu
idealismo, sua filosofia e sua Paidéia, ou, em outras palavras, seu espírito
educacional. (...) [A educação é] um processo de transformação em virtude do
qual uma mera possibilidade passa a ser uma realidade, um ser, uma criatura
que, originando-se de uma mera possibilidade de humanidade, se apresenta como
um verdadeiro homem. Este é o verdadeiro sentido da palavra humanismo (...).
Idealizar é desenvolver todas as
potencialidades desse ser, o que só é possível estabelecendo uma harmonia entre
elas.” (p. 19-20)
“Nietzsche apresentava os dois instintos
como impulsos diversos mas complementares. O impulso dionisíaco era um
movimento vital, torrencial, transbordante, que transcendia a individualidade
humana – por ele ameaçada nos seus contornos, nos seus limites, na sua forma; o
impulso apolíneo, ao contrário, era criador de formas, um sonho de imagens que
resistia à violência do primeiro impulso e encaminhava suas energias para a
produção de formas belas e individualizadas.
Um não podia existir sem o outro: entregue a si mesmo, o impulso
dionisíaco era como uma terrível avalanche que destruía tudo na embriaguez de
sua passagem descontrolada; sem contato com o impulso dionisíaco, o impulso
apolíneo se estiolava, sem significação verdadeira.” (p. 29-30)
“O que faz da filosofia contemporânea uma
filosofia de epígonos parece ser sobretudo o fato de que não tem consciência da
necessidade de uma reflexão, de uma preocupação essencial com o problema da
liberdade. Examinemos um por um todos os pensadores, todos os sistemas que se
apresentam, desavisados de qualquer articulação entre si, para não falar de
articulação com o passado. (...) Nenhum deles pensa que sem atacar esse
problema é mais ou menos inútil atacar o outro, o problema do conhecimento.”
(p. 51)
“O mundo de hoje é essencialmente
anti-tradicionalista. A tradição que rejeita, entretanto, é extremamente rica e
complexa; há vários de seus aspectos que poderiam se rejeitados sem que todavia
houvesse uma necessidade compulsiva de que outros aspectos também o fossem.
(...) Poderíamos pelo menos discernir quatro tipos de rejeição ao antigo,
quatro formas de motivação para que se possa bem compreender de que modo a
Idade Moderna se afirmou, se auto-definiu em face do legado que lhe deixava a
Idade Média: a motivação luterana, a motivação cartesiana, a motivação
voltairiana e a motivação kantiana.
Das quatro motivações a cartesiana foi,
talvez, a mais revolucionária; ela modificou profundamente a concepção do que
fosse a natureza da filosofia – o amor à sabedoria foi substituído pelo desejo
de certeza, ele próprio uma preliminar para a vontade de poder. O filósofo não
se sentia mais envolvido por uma paixão erótica mas simplesmente possuído por
um desejo de domínio, de conquista de poder. Isso transformava completamente as
coisas. O que o homem era deixava de ter importância. O que o homem fazia é que
agora importava.” (p. 55-56)
“O que esses epígonos [Foucault,
Heidegger, Lévi-Strauss] nos oferecem em troca? Que espécie de ordem propõem a
essa humanidade desconsiderada, depreciada, desdenhada? É a liberdade tudo que
almejam? Liberdade de que, liberdade para que, liberdade contra que, liberdade
sobre o que? Tem-se a impressão de que está faltando em tudo isso sobretudo o que – a impressão de que, se o homem
contemporâneo reivindica com tanta veemência a liberdade, é simplesmente para
dissimular o vácuo, o enorme vazio dentro dele. Quanto mais veemente a
reivindicação, mais forte é a impressão. As experiências da arte contemporânea,
por exemplo, quanto mais ousadas, mais fortemente nos transmitem essa sensação.
O homem contemporâneo sofreu, na imaginação de um artista que vivia com
especial intensidade os problemas de seu tempo, uma estranha metamorfose:
viu-se transformado num inseto. Metamorfoses mais estranhas poderão ainda
ocorrer nos nossos dias. Quanto mais liberdade reclama, mais o home
contemporâneo se torna vazio. Um dos nossos romancistas poderá, quem sabe,
imaginar um personagem que, ao acordar de manhã, se veja transformado numa
simples bolha de sabão.” (p. 61-62)
“O pensamento de Kant, centrado de forma
decisiva na problemática da ciência, não poderia ver outro tipo de razão que
não fosse em termos de causalidade e de universalidade. E a única diferença que
estabelecia entre a ‘razão pura’ e a ‘razão prática’ era que a primeira se
definia em termos de uma causalidade necessária, ao passo que a segunda o fazia
em termos de uma causalidade livre. (...)
Kant, educado num meio protestante, não
poderia ficar insensível aos poderosos argumentos de Lutero. O que o reformador
dizia era simplesmente que o homem não podia escolher entre o bem e o mal como
escolhia entre dois objetos diversos; que para escolher o bem o homem
precisaria antes passar por uma transformação moral profunda. A causa dessa
transformação era, para Lutero, Deus; mas Kant, impregnado de ciência e de
imanência, traduzia essa concepção em termos racionais, aludindo a uma vontade
pura que seria, por conseguinte, uma causalidade livre, totalmente independente
de qualquer fator empírico, contingente como a vontade sensual, à qual Erasmo
atribuía uma eficácia certa.” (p. 77-79)
“O que liga a razão à liberdade é o fato
de serem esses dois princípios irrevogavelmente destinados a exercer uma função
essencial no processo educacional que dá forma à alma humana. Um só se afirma
plenamente quando está relacionado ao outro. São na realidade entidades que se
complementam. (...) em Kant eles se afirmam apenas como entidades paralelas – é
por um passe de mágica, destituído de qualquer justificação, que se passa da
causalidade necessária da ciência (ou da razão) para a causalidade livre da
moral (a chamada liberdade).” (p. 79-80)
“Que no início da década de trinta um
jovem de vinte e poucos anos de idade, inteligente, com grande sensibilidade
ética e possuidor de cultura excepcional para a sua idade, tenha sido atraído
pela personalidade ética de Maquiavel é o que nos mostra, como já deixei
entender, a situação equívoca que resulta da concepção da política como a arte
do possível, da qual Maquiavel pode ser mencionado como um dos representantes
mais qualificados. Dentro de uma tal concepção poderiam também ser enquadrados
homens do mais refinado cinismo, homens que poderiam alegar como unicamente
possíveis ações ou decisões que nos parecessem eticamente monstruosas.
O que foi que Octavio [de Faria] viu em Maquiavel?
Evidentemente não foi a astúcia, a habilidade, a precisão do diagnóstico que
davam aos seus conselhos um valor inestimável. O que o Octavio parece ter visto
mais do que qualquer outra coisa foi o ardor cívico, a devoção à causa pública,
o entusiasmo pelo Bem da República.” (p. 89)
“O grande problema, na verdade, é
reconciliar duas verdades aparentemente irreconciliáveis: o princípio de que a
política é arte do possível e necessidade de que todo Estado político tenha uma
base ética” (p. 93)
"Quando insistimos na necessidade do
reconhecimento da importância do Estado ético não estamos recomendando a
promoção de um Estado que tenha como membros cidadãos moralmente irrepreensíveis;
estamos apenas recomendando a existência de um Estado no qual haja um certo
equilíbrio entre as estruturas de poder e as estruturas de cultura" (p. 95)
CAPÍTULO
II
“Talvez em nenhum outro texto de
Heidegger se sinta, de maneira tão clara, a qualidade específica do seu
discurso, que é o de falar como se fosse um Deus. Justamente por se considerar
um Deus é que Heidegger só pronuncia palavras incompreensíveis. Ele é suposto
ser um filósofo; é suposto, por conseguinte, ser também um educador (...). Mas
Heidegger não procura educar ninguém; o que ele procura é hipnotizar seus
ouvintes ou leitores. Isso fica claro, muito claro mesmo, quando o assunto de
que deve tratar na suas aulas é o humanismo, o ideal educacional por
excelência, o ideal através do qual a educação se transforma em iluminação
espiritual, elevando o homem aos mais altos cimos da cultura. (...)
Imagine agora o leitor a impressão que
tais palavras poderão produzir sobre o espírito de um aluno, desejoso de
aprender alguma coisa que seja o humanismo. Só num ambiente cultural em que o
pedantismo já tenha se exacerbado – a ponto de eliminar todas as possibilidades
de uma assimilação gradual e fecunda de idéias básicas – só em tal ambiente
poderá se pretender que as palavras acima citadas não causem o pânico mais
desalentado no espírito dos jovens alunos que delas tenham sofrido o impacto.”
(p. 99-100)
“Custa a crer que um pensador de
reputação mundial confesse admitir a eventualidade de que a Ética possa um se
tornar caduca. (...) Custo a visualizar a situação de um home predisposto ao
crime que tivesse sido informado de que a ética se tornaria caduca: teria ele
mais condições de resistir à sua predisposição criminosa se lhe fosse revelada
a essência do homem a partir da questão relativa à verdade do Ser? (...)
Essa idéia da caducidade! Lamento não ter
talento humorístico para impedir o desperdício de um material tão rico quanto o
que Heidegger oferece aos que o têm. E lamento também que os filósofos em geral
não tenham esse talento – falta-lhes a leveza de espírito que lhes permitiria
reconhecer a comicidade de muitas das palavras e das idéias que não raramente
emitem. (...)
Não há dúvida de que a seriedade, a
gravidade é um dos grandes males de nossa época. Quando se vê as jovens
gerações engolindo a largos goles as empulhações de um Heidegger, essas
gerações justamente que se julgam rebeldes, excêntricas, não conformistas, é
impossível não volver com saudade os olhos para o passado e lamentar que o bom
humor sadio de um Sócrates esteja sendo esquecido. Que gravidade pedante na
atitude de jovens tão rebeldes, tão excêntricos e não conformistas!” (p.
102-103)
“As gerações atuais, então, têm tendência
a dramatizar, a produzir efeitos espetaculares em torno das insatisfações que
existem na alma do homem de nossos dias. A verdade é que essas insatisfações
são reais, e é justo que se dê a elas a atenção devida. Mas não é exagerando,
dramatizando, produzindo efeitos espetaculares que poderíamos recobrar o
equilíbrio que nos está faltando. Antes de mais nada o que precisaríamos fazer
é nos desvencilhar desse estetismo; (...) readquirir uma atitude calma,
equilibrada, realista, uma atitude a partir da qual poderíamos reexaminar com
serenidade quais são, verdadeiramente, nossas dificuldades. (...)
“Veja
bem o leitor: Heidegger anuncia a superação do humanismo e a caducidade da
ética; Foucault prevê o desaparecimento da imagem do homem e a obliteração da
figura do autor; os norte-americanos, com sua escassa experiência filosófica e
histórica, pretendem agora contribuir para o fortalecimento da consciência
cultural européia com os estímulos que
receberam de epígonos do velho continente, e que julgam ser uma confirmação de
suas velhas tendências a um estilo de vida estruturado em torno da idéia de
poder. Tudo isso deveria ser recebido com um certo sense of humour. Julgar possível construir uma filosofia autônoma,
independentemente das lições que nos haviam sido transmitidas pela filosofia
clássica dos gregos, é algo que não está desprovido de alguma comicidade.” (p.
104-105)
“O romance é uma obra de arte que, como
outras obras em vários domínios, pode exprimir o sentido de uma época, pode
descrever a fisionomia dessa época ou exprimir-lhe a problemática; mas pode
ainda atingir outro objetivo do qual os críticos literários nunca falam, e que
é, talvez, o objetivo secreto que estimula tantos jovens a empregar um tão
grande número de horas no intuito de alcançá-lo. Esse objetivo é conhecer a
vida. É absorver, em algumas horas ou alguns dias, os ensinamentos de uma
experiência de vida que não vivemos mas que, para o bom leitor, é como se
realmente a tivéssemos vivido. É assim que um jovem leitor assíduo e bem
orientado pelos mais velhos amadurece e adquire densidade psicológica.” (p.
111-112)
“Naturalmente nos romances de Sartre, de
Camus, de Genet, não se encontrará a menor partícula desse humanismo. São
romances para serem lidos com os maxilares contraídos, com um ranger de dentes,
com raiva e ódio do que é a vida. Eles são realmente os anunciadores, os
precursores, os formadores dessa geração que não respeita nada, que quer
desmistificar o sexo, o amor, a moral, a religião – essa geração arrasada pela
guerra, que se julga nietzscheana sem compreender nada de Nietzsche.” (p. 112)
“O problema da cultura moderna poderia,
pois, ser equacionado do seguinte modo: deveria, para manter seu equilíbrio,
estar sustentado por dois pilares – a razão e a liberdade – e esses dois
pilares deveriam estar num contínuo e completo relacionamento, tal como ocorria
no humanismo clássico dos gregos. O fato de que só um pilar funcione, e de que
o outro não nos cause senão frustração e desentendimento, faz da situação
cultural do mundo ocidental contemporâneo uma situação de crise. Há,
entretanto, uma circunstância favorável: embora a razão desengajada prossiga na
sua carreira triunfante, sem empecilhos que a faça recuar, a liberdade
desengajada não consegue se afirmar, pelo menos no campo da filosofia (embora
seja triunfante no campo político, como nos mostra a concepção de liberdade nos
Estados Unidos), e dá, assim, um espaço ao humanismo, que se apresenta então
como o refúgio em que estão hoje depositadas todas as esperanças num renascimento
da cultura.
Por que a liberdade desengajada não
consegue dar origem a uma ética que possa dar satisfação à humanidade? A explicação
é simples, embora não imediatamente evidente: ao desengajar-se, a liberdade se
desvincula não só da razão, que em si já é um princípio de ordem, como também
de uma ordem pressuposta no universo. Uma liberdade desengajada é uma liberdade
entregue a si mesma, a seu próprio arbítrio, isto é, à sua falta de arbítrio.”
(p. 123)
“Consideremos uma outra vítima da
campanha surda de hostilidade que a cultura vassala do Poder move hoje contra o
humanismo. Voegelin é descrito nas orelhas de seus livros como um dos maiores
historiadores de nossos tempos, como um dos mais profundos e estimulantes do
século XX. Entretanto, se passarmos em revista o que vem produzindo a
literatura filosófica contemporânea, veremos que são raríssimas as referencias
feitas a ele. (...) Mas o desdém que lhe é assim manifestado ele não o
retribui. Voegelin era um gentleman. Quem estudar com cuidado sua obra verá que
há nela formulações que só poderiam ser interpretadas como uma crítica severa
aos Estados Unidos. Mas o modo de apresentação elimina qualquer choque mais
direto. (...) A posição filosófica de Voegelin é a de uma crítica radical, sem
compromissos, à cultura contemporânea em todas as formas pelas quais ela se
manifesta. A cultura como expressão suprema da existência humana ia
desaparecendo e o seu lugar era tomado pela ideologia. A sua critica visava a
cultura do mundo ocidental como um todo, mas havia coisas em seus textos que se
referiam claramente à realidade da sociedade americana – como quando diz, por
exemplo, nas mesmas Reflexões Autobiográficas citadas acima: ‘Com relação ao
clima dominante nas ciências sociais, o filosofo na América se encontra em
situação idêntica à de Soljenitzin na União de Escritores Soviéticos – a
diferença importante residindo, naturalmente, no fato de que nossa União de Escritores
Soviéticos não dispõe de poder governamental para eliminar scholars.’ Por isso, quando em certas ocasiões Voegelin parece
excetuar os Estados Unidos do rigor de suas críticas, deveríamos, creio eu,
admirar não a exatidão do filósofo mas a gratidão e as boas maneiras do gentleman que ele era.
E como seria possível excetuar os Estados
Unidos da sua crítica se sua bête noire
era e sempre havia sido a ideologia? A sociedade norte-americana não era nem
marxista, nem fascista, nem nazista, mas era indubitavelmente uma sociedade
organizada em torno das estruturas de poder. A obsessão do poder é uma
ideologia tão deformadora quanto as ideologias marxista, fascista ou nazista.
Voegelin, que incluiu nas suas análises da ideologia a idéia de poder sob a
forma de ‘instrumentalização das paixões’, assim o fez para colocar a sociedade
norte-americana sob a mira de sua análise. Através desse processo, o legislador
– o legislador norte-americano – introduz o poder no mais íntimo da alma
humana, fazendo-a agir não de acordo com seus instintos e emoções naturais, não
de acordo com o ordenamento ético promovido pela atividade do princípio
racional, mas de acordo com um interesse determinado, o interesse esclarecido
em virtude do qual uma maior soma de poder lhe será conferida. O legislador
norte-americano afasta com impaciência a idéia de uma ordem humanista na alma
do indivíduo; o de que ele precisa é que esta alma esteja em estado de desordem
para que possa ser instrumentalizada.
O anti-humanismo é, assim, se nossas deduções
são corretas, um ingrediente essencial da estrutura da sociedade
norte-americana; não é simplesmente o resultado da influência de atitudes
intelectuais como as de um Foucault ou de um Heidegger, mas qualquer coisa
sobre a qual se alicerçam realmente as estruturas sociais da nação. Como, pois,
poder-se-ia conceber que um filósofo tão arraigadamente humanista como Voegelin
tivesse um acolhimento que ultrapassasse os limites da cordialidade? Na
verdade, a impressão que se tem é que Voegelin foi mais bem recebido do que
seria de esperar nas universidades por onde andou. (...) Não creio que o caso
de Voegelin seja idêntico ao de Jaeger. Jaeger era muito conhecido e provavelmente
muito lido – mas era hostilizado e algumas vezes atacado por autores que não
tinham competência para criticá-lo. Voegelin simplesmente não é conhecido, pelo
menos não é conhecido na sua grandeza, na sua importância. Um humanista hoje
não é conhecido simplesmente porque é um humanista.” (p. 129-132)
"A rationale de todas as nossas atividades não é mais a liberdade de
só praticarmos o ato que seja condigno com o valor moral de nossa existência,
mas a utilidade que esse ato possa oferecer, ao indivíduo e à sociedade"
(p. 134)
"o que foi desrespeitado em todos
esses casos não foi apenas o direito à liberdade que estamos agora
reivindicando, e que, de qualquer maneira, tinha que ser respeitado; o que foi
desrespeitado em todos esses não foi apenas o direito à vida que estamos
reivindicando e que, de qualquer modo, tinha que ser respeitado, o que foi
desrespeitado foi, principalmente, a imagem do homem que a cultura do Ocidente
já havia construído e que nós próprios, que fomos testemunhas daquela tragédia
ou dela tivemos notícia, também desrespeitamos" (p. 139)
“Com efeito, que fez o homem ocidental
para evitar que seu racionalismo excessivo transformasse sua consciência em algo
ressecado, esquemático, desprovido de imaginação e sensibilidade? Que fez ele para
evitar que suas fantasias, desregramentos e libertinagens a transformasse em algo
de totalmente distorcido e indisciplinado? (...) Arrogantemente ele considera
que não necessita da assistência do pedagogo competente. Resolve decidir por si
mesmo que doses de racionalidade e de liberdade deve empregar para estruturar a
sua alma. Ele se faz autodidata. Não somente se faz autodidata mas, mais tarde,
com a consciência já distorcida pelo desastroso tratamento que infligia a si
próprio, pretende impor às gerações mais jovens o tratamento desastroso que
havia imposto a si mesmo. Assim se formaram várias tradições filosóficas na
Europa.” (p. 156)
"Um jornalista (I.F. Stone) com
veleidades de scholar denuncia
Sócrates como o inimigo da democracia ateniense, o presidente de um congresso
de filosofia considera A República a primeira carta do fascismo. Tudo isso
parece simplesmente um prolongamento da ignorância e da impertinência do jovem
estudante norte-americano. Mais tarde, quando ele já é um scholar, continua impertinente porque não deixou de ser ignorante e
continua ignorante porque não deixou de ser impertinente.” (p. 161)
CAPÍTULO
III
"... porque esse poder, de cuja
realidade ele [Foucault] nos quer convencer, nem ao menos tem um suporte – não
há um sujeito que o possua e que queira exercê-lo, Foucault abomina o sujeito,
que para ele é um resquício do humanismo e da imagem do homem que ele quer abolir.
O poder simplesmente é, existe. A sociedade é carcerária não porque alguém a
tenha tornado tal, mas porque não há, para ela, outro modo de ser. (...)
Fica-se realmente sem saber aonde Foucault quer chegar com a sua cratomania.
(...)
Merquior tem, assim, razão de falar em
niilismo de cátedra. Quando se observa que Foucault ganhou sua vida como
professor universitário, dando lições que versam sobre matéria dessa natureza,
fica-se pensando não na sociedade carcerária mas na sociedade suicida. (...)
Seus livros são o murmúrio de uma época agonizante." (p. 174)
“O que distingue Nietzsche de todos os
outros filósofos da época moderna e contemporânea é a sua sensibilidade com
relação ao fenômeno Sócrates. Ele reagiu a esse fenômeno não como o acadêmico
que era, não como o filósofo criador que se tornou mais tarde e nem como o
homem culto (...) – reagiu como um psicólogo extraordinário, (...) cujos dons
se exerciam sobre uma personalidade venerável, (...) que, por ser legendária,
parecia estar protegida contra os olhares indiscretos da psicologia. (...) Seu
enfrentamento com a natureza de Sócrates era leal e decidido. Era a partir do
assombro que lhe causava a imensidade daquela figura que registrava o fato
inelutável de sua decadência.” (p. 180-181)
“É justamente no plano psicológico que as
afinidades entre os dois filósofos, o ateniense e o alemão, deveriam ser
procuradas. A grande descoberta que fez Jaeger a respeito de Sócrates foi que
ele não era propriamente um filósofo – era um caráter, um homem que quer
oferecer a seus semelhantes não somente a sua inteligência, não a sua
capacidade discursiva e racional – que quer lhes oferecer a plenitude do seu
ser. Mas Nietzsche não está justamente nesse caso? Nietzsche não é um filósofo,
é um home, um caráter que se ofereceu à humanidade de maneira trágica,
espetacular.” (p. 188)
"No caso de Nietzsche, a morte de
Deus não poderia, igualmente, significar a morte do ideal humanista
simplesmente porque o Deus que Nietzsche havia cultuado, na sua adolescência e
na primeira juventude, havia sido o Deus fideísta, que exige mais uma
experiência do coração do que a adoção de uma religião ligada aos ideais da
cultura clássica." (p. 195)
"Um Nietzsche recuperado seria um
Nietzsche que não desconheceria o valor permanente da cultura clássica dos
gregos, um Nietzsche que não reconheceria a validade ou a legitimidade do papel
de Descartes como reformulador das estruturas básicas da disciplina filosófica."
(p. 203)
"Mas o humanismo que queremos
defender não é qualquer um, e sim o humanismo que acreditamos ter se originado
de circunstâncias muito especiais, e que certamente nunca mais se reproduzirão.
Faz parte, portanto, dessa nossa defesa estar atento a que o humanismo que
eventualmente venha, um dia, a ser universalmente aceito seja o mesmo, tenha as
mesmas características daquele que nos parece o produto de situações tão
especiais" (p. 206)
"A essa racionalidade, transformada
em ação consciente da cultura visando a reprodução de si mesma, deu-se o nome
de educação. É o ponto terminal de uma longa evolução em virtude da qual o
elemento racional, que envolvia os aspectos parciais da cultura, delas se
desprende para se tornar um agente capaz de reproduzi-los" (p. 211)
"Os pré-socráticos reduziam as
forças da natureza a princípios e estabeleciam entre elas um certo tipo de
relação. Havia nisso, indiscutivelmente, uma intuição do que é ciência, mas
esses filósofos eram, ao mesmo tempo, teólogos, e isso lhes dava a autoridade
dos sábios, capazes de liderar os homens." (p. 213)
"Identificar ciência e racionalidade
da cultura é tentar identificar a parte com o todo. A ciência ocidental, apesar
do enorme desenvolvimento que teve, apesar da extraordinária tecnologia a que
deu origem, continua a ser parte, e somente parte, da cultura ocidental- se um
dia ela representar o todo, isso significaria, simplesmente, que a cultura
ocidental teria desaparecido. (...) Tentar definir o que é racionalidade
através da experiência de nossa própria cultura seria um petição de princípios:
apoiaríamos nossa demonstração justamente sobre a tese que deveríamos
demonstrar" (p. 219)
CAPÍTULO
IV
“A Física
de Aristóteles foi rejeitada por Descartes porque as formas nas quais a
razão aristotélica estava engajada impediam o acesso às potencialidades do
mundo físico. Mas a Ética de Aristóteles
foi uma fonte de inspiração – lá se encontrava um modelo para a razão
desengajada sob a forma de faculdade de escolha: tal é razão desiderativa ou
instinto raciocinativo de Aristóteles – uma faculdade deliberativa, que
escolhe, que decide, que pode optar por um valor, por um desvalor; ou mesmo por
uma indecisão, por uma não opção, que não está condicionada a fins. E é
justamente este tipo de racionalidade, encontrada por Aristóteles no mundo
ético, que serviu de modelo para a razão não condicionada a fins da
epistemologia de Descartes. Interessado em matematizar o universo para dele
extrair o seu potencial de energia, e não em descrever-lhe as diversas
qualidades e a ordem a que estariam articuladas, Descartes fez da razão uma
faculdade neutra, instrumental na sua totalidade e não apenas na parte que se
referia à ética. (p. 230-231)
“A primeira é a liberdade natural, a
liberdade com que diz Rousseau ter nascido o homem; é, também, uma liberdade
derivada do poder que o homem sente ter quando é capaz de possuir tanto ou mais
do que o seu vizinho – é, entretanto, uma liberdade que faz do homem um escravo
de si mesmo, de suas paixões, de seus instintos. A segunda é uma liberdade que,
para existir, precisa ser adquirida por nós mesmos, e que independe,
totalmente, de qualquer situação de poder – é uma liberdade que só se configura
quando o homem se integra completamente no mundo da cultura através da educação”
(p. 236-237)
“Sou assim, decididamente, um homem que
acredita nas virtudes do passado. Não penso que seja um conservador porque há
muita coisa do passado que me parece dever ser esquecida ou abolida. O passado
não deve ser considerado um monolito, algo em que se acredita totalmente ou que
se rejeita por completo. Há coisas do passado preciosas que foram rejeitadas em
virtude dessa percepção do passado como um monolito.” (p. 245-246)
“Esse é talvez o principal motivo da
grande atração que exerce sobre nós o turismo. Há em cada visita a um sítio ou
a um monumento histórico uma confrontação. Vemos materializado, configurado da
maneira mais concreta, um pedaço da história. Sentamo-nos, por exemplo, nos
degraus-assentos de um teatro grego e nos pomos a sonhar. (...) O turismo é,
assim, uma espécie de confrontação. Uma maneira de sabermos mais sobre nós
mesmos. O que nós vemos nos vê também tanto quanto nós o vemos – e porque nos
vê ficamos vendo melhor a nós mesmos.” (p. 251)
“O
modo de ser dos egípcios antigos, dos etruscos, nos faz revelações importantes
sobre a natureza humana, sobre o que somos, permanentemente, através das
necessidades do tempo. A vontade de sobreviver, de escapar do ciclo da natureza
– nascimento, vida, morte – foi, é e continuará provavelmente sendo comum a
todas as nações do mundo ocidental. (...) As religiões, os deuses e os túmulos
egípcios e etruscos, tudo isso nos mostra que o homem ocidental nunca se
conformou e provavelmente não se conformará jamais com a idéia de que a morte
significa o fim do indivíduo. (...) A vida exclusivamente limitada a uma
perspectiva do presente nos conduz a isso, à barbárie, a uma existência de
animais. A mais alta tecnologia não nos faria escapar dessa alternativa. A
perspectiva de um futuro tecnológico continuaria a ser a falta de perspectiva
de um futuro verdadeiro.” (p. 252)
“Que há um determinismo que nos leva,
inexoravelmente, a participar do ritmo febril da vida contemporânea; que só nas
grandes cidades, com suas grandes massas, com a grande oferta de todo o tipo de
consumo, inclusive o das artes, o das letras e dos espetáculos – que só na
megalópole o homem contemporâneo se realiza é um fato que está longe de ser
comprovado. (...) O que prende o homem contemporâneo à grande cidade é, em
grande parte, a vaidade. Ele quer aparecer, quer ser visto; seu pretexto é que
na grande cidade há mais oportunidades para fazer uma carreira. (...) Quem não
sente a necessidade de parar um pouco no tempo para olhar para dentro de si
mesmo e ver como andam as coisas, em que tipo de pessoa a vida o transformou,
que espécie de proveito pensa tirar das coisas e das pessoas, que recursos tem
se tiver que viver sozinho – quem não sente essa necessidade sentirá certamente
uma outra, que é a de estar constantemente em movimento, em jantares e reuniões
em que se possa relacionar com o maior número possível de indivíduos. (...) A
contrapartida dessa intensa movimentação social é o isolamento, a falta de um
verdadeiro contato humano, que se manifesta de uma maneira por vezes opressiva
nas grandes cidades. Para os que sofrem com isso o computador é certamente uma
solução. Quem mora numa cidade grande não tem vizinhos, não tem amigos que
moram na rua ao lado, não tem pracinhas onde possa tomar o seu chope com os
companheiros de costume. (...) Vivemos numa movimentação contínua do trabalho
ao lazer, que não são, de modo algum, horas de repouso.” (p. 257-258)
“Numa grande cidade a mesa-redonda, o
seminário, é o pobre arremedo do diálogo platônico. Cada um dos participantes
tem seu recado a dar; as divergências ficam resolvidas porque há um mediador
que decide sobre o tempo das perguntas e das respostas; nenhum participante
confessa sua ignorância – exibe seu saber e espera que isso justifique sua
presença no debate. A audiência escolhe seus preferidos e o mediador conclui o
espetáculo, procurando não melindrar os que não se exibiram no grau que
desejavam.” (p. 260)
“A amizade é (...) a relação de duas
pessoas ligadas por interesses internos – interesses voltados para o
desenvolvimento espiritual do homem que cada uma por si própria, e em si própria,
está empenhada em promover. É quando chegamos a esse relacionamento baseado em
interesses internos que a amizade se confunde com o humanismo. A mais nobre
amizade é (...) quando o homem, dentro de si mesmo, consegue construir sua
imagem verdadeira que ele se torna o verdadeiro amigo, o homem de cuja amizade
se poderia auferir os mais nobres benefícios; quem veio ao longo do processo
compartilhando das vicissitudes dessa construção estará, também, em vias de
completar dentro de si a mesma imagem.” (p. 263)
“A filosofia, o amor à sabedoria, a
utopia educacional platônica se identificavam com um projeto de desenvolvimento
espiritual do homem que o levava ao mundo transcendente, isto é, que não
encontrava limites no mundo imanente. A sofia, o projeto científico em que a
filosofia cedo se transformou, não demorava muito em encontrar limites no mundo
imanente – e foi assim que a utopia platônica, concebida com o propósito de nos
levar ao paraíso através da porta estreita da educação, se transformou numa
banalidade, numa técnica de aproveitamento de certas disposições favoráveis da
natureza humana, tendo em vista a formação de sociedades com um mínimo de
organização externa para se tornarem capazes de enfrentar outras sociedades que
lhe disputavam o lugar no espaço histórico disponível – e capazes, também, de
se manterem coesas através de uma articulação interna que lhes desse uma
estrutura sólida e durável.” (p. 266)
“A dúvida metódica de Descartes não era
uma dúvida autêntica – o seu método já era o embrião de uma certeza que levaria
inevitavelmente à certeza da existência do sujeito. (...) Nietzsche navegava no
mar da mais completa incerteza, mar desconhecido, que tinha o céu como
horizonte, sem limites. (...) O método de Descartes e a falta de método em
Nietzsche lembram a diferença entre o burguês e o aristocrata, a diferença
entre a mesquinhez da angústia da certeza a e generosidade que se lança na aventura
do imprevisto, arriscando tudo, enfrentando os perigos, mesmo os maiores, não
por bravata, não por inconsciência, não por insensatez, mas porque assim o
exige uma determinação, uma voz interior cujo comando é mais forte do que
tudo - a voz que faz do homem um
filósofo, um amante da sabedoria, um apaixonado da verdade.” (p. 276)
“A ética de Aristóteles nem sempre nos
inspira – mas aqui ela parece ser sábia no conselho: a virtude é o meio termo
entre dois excessos. A humildade do filósofo contemporâneo parece tê-lo levado
a extremos catastróficos. O que salva é que esse projeto niilista, terrível se
fosse executado, não parece encontrar ninguém capaz de fazer dele mais do que
um exercício literário. É fácil dizer: desapareça o autor, desapareça o
sujeito, fique só o texto! Quem está dizendo isto está fazendo justamente o
contrário: está tornando enorme, desmesuradamente grande a presença do autor, a
presença do sujeito – tão grande que se torna inconveniente (...). A humildade
do filósofo contemporâneo tem, entre outros defeitos, o de ser o contrário do
que pretende ser. É, neste ponto, parente próximo da ciência que se pretende
objetiva, respeitosa dos fatos, mas que, no fundo, tem ambições não reveladas;
que começa com a idéia de conquistar o universo físico, mas que hoje pretende
muito mais pretende pura e simplesmente conquistar o homem.” (p. 284-285)
“O fato nu e cru é que na Inglaterra o
humanismo teve, já no século XVI, suas raízes fincadas na política. (...) Seja
qual for a opinião que a filosofia inglesa tenha do humanismo, uma coisa é
clara: ela não é representante da espiritualidade, da cultura do povo
britânico. A Inglaterra teve um grande poeta, mas não produziu – como a Grécia
produziu Platão para substituir Homero – um grande filósofo capaz de substituir
Homero – um grande filósofo capaz de substituir Shakespeare. A espiritualidade,
a cultura da Inglaterra se confunde com o seu humanismo e se manifesta em
várias instituições como a Monarquia, o parlamento, as universidades, a igreja
anglicana e os dissidentes. (...) A filosifa inglesa está longe de recolher e
de elaborar dentro de si todos os elementos culturais produzidos pela sociedade.”
(p. 289-290)
“Os teólogos anglicanos, os platonistas
de Cambridge, John Milton, foram promotores importantes de um renascimento da
filosofia clássica dos gregos na Inglaterra. (...) Ele fixou de maneira
indelével os traços fundamentais do caráter inglês: nitidez de propósitos e
maleabilidade nos meios de executá-los; tolerância, mas não permissividade;
determinação e elegância; pouca inclinação pela retórica e os maiores êxitos na
eloqüência; uma grande confiança no instinto; pouca afeição pela inteligência,
embora não haja povo que tenha organizado a sua vida de modo mais conforme ao
que poderia fazer um povo para quem quer ser inteligente representasse o ideal
supremo.” (p. 291)
“Encarar a igreja anglicana como um mero
expediente político não passa de uma explicação falsamente realista. Foi um
expediente sim, mas um expediente genial porque não se tratou de uma simples
manipulação. Com ele Elizabeth não induziu o seu povo a escolher caminhos
perigosos que o levassem a desastres ou catástrofes. (...) Ao contrário:
utilizou esse poder com uma compreensão admirável da situação em que se
encontrava. (...) Transformada em religião do Estado e oferecendo um conteúdo em
que, na história da crise religiosa aberta pelo aparecimento do protestantismo,
se realizava, pela primeira vez na Europa, uma conciliação, uma tolerância
recíproca de dois credos opostos, unidos agora numa só fé” (p. 293)
CAPÍTULO
V
“A inacreditável pretensão da filosofia
contemporânea só tem equivalente na inconsciência com que são postos de lado os
problemas fundamentais do destino humano. A ligeireza com que se fala dos ‘aspectos
éticos da vida’, o peso que se atribui às ‘condições atuais’, como se essas
condições representassem uma lei máxima que não pudesse, de forma alguma, ser
modificada (...) – tudo isso constitui um caos que se transfere para dentro da
alma de cada indivíduo, e o transforma num agente ativíssimo e dotado da mais
surpreendente eficácia na promoção de uma desordem ainda maior para servir-lhe
como quadro da sua existência atormentada.” (p. 303)
“Só os gregos souberam combinar razão e
liberdade numa visão profunda do ser humano, só eles compreenderam o mistério
do circuito da substância humana indo do indivíduo à comunidade e da comunidade
ao indivíduo. (...) o homem não representa mais a sua própria natureza como nos
chamados tempos clássicos. O homem, hoje, não tem mais o amor nobre de si
mesmo. Está procurando uma liberdade que não é uma vitória sobre a escravidão
de seus instintos – haverá outra coisa que mereça ser chamada liberdade?” (p.
305-306)
“Quando se fala na escravidão dos
instintos ele [o homem sofisticado de nossos dias] pensa logo no desejo da
carne, nas proibições da igreja católica, no moralismo estreito dos padres carolas;
mas a paixão sexual não é o único instinto que escraviza o homem e nem sempre é
um instinto vil. Há uma grande quantidade de outros instintos tão capazes
quanto o sexo de escravizar o homem – e de novo esses instintos serão vis, mas
poderão constituir tendências nobres.” (p. 308)
“O que mudou não foi a complexidade das
idéias, mas a complexidade das situações. O que se torna hoje necessário é
perseguir a simplicidade das idéias, que continua a ser a mesma através da
complexidade das situações, que aumenta cada dia mais. Nietzsche, por exemplo,
é um filósofo que lida com pouquíssimas idéias – extremamente simples na
verdade. O que torna sua filosofia extremamente rica e variada é a complexidade
das situações que seu olhar agudo, penetrante, considera. Ele (...) é
inesgotável como investigação em profundidade dos mais recônditos arcanos do
ser humano, uma psicologia comparável ou talvez mesmo superior à de Dostoievski
(...). O que falta aos filósofos hoje é, justamente, simplicidade nas idéias e
capacidade de abordar situações complexas.” (p. 308-309)
“A vitória sobre si mesmo – uma fórmula
possível para o humanismo – uma idéia aparentemente ingênua – mas quantos
desdobramentos psicológicos, quantas conseqüências éticas, gnoseológicas e
metodológicas podem ser extraídas desse pensamento que se supõe tão singelo.
A vitória sobre si mesmo – fórmula prenhe
de tantos desenvolvimentos, de tantas complexidades – já nos mostra como se enganam
aqueles que pensam que o humanismo é um ideal ultrapassado, superado pela
sofisticação contemporânea. Sócrates não sugeriu essa fórmula mas esteve perto
de fazê-lo – segundo ele, eram apenas os instintos, e unicamente eles, que
escravizavam o homem, porém a experiência psicológica da humanidade naquela
época estava em seus começos para que a virtude também fosse arrolada como
causa possível da escravização. (...) Sócrates, entretanto, estava no caminho
certo. E foi porque Nietzsche não se desviou deste caminho (...) que,
finalmente, foi capaz de nos enriquecer com as espetaculares descobertas de
origem psicológica de que está saturada sua obra.” (p. 310-311)
“Wittgenstein é, talvez indevidamente,
considerado o papa da chamada filosofia analítica dos nossos tempos. Como ele,
este tipo de filosofia professa o mais profundo desdém pelo humanismo, desdém
que se reflete no fato de não lhe ter jamais dedicado um só segundo de atenção.
Cabe a nós, entretanto, defensores do humanismo, não retribuir na mesma moeda –
cabe ao humanista indagar, aprofundar, tentar compreender na medida do possível
o porquê desse desdém que lhe é tão abertamente declarado.” (p. 314)
“Essa é a resposta que o humanista,
representante da razão plenamente engajada, poderia dar ao desdém do representante
da filosofia analítica. A sensação de lucidez é um estado de espírito que
engana com freqüência. (...) Já em Descartes a sensação de certeza levava
consigo uma estranha sensação de euforia. Com Kant a euforia foi tanta que se
falou em uma revolução comparável à de Copérnico – acreditava-se ter chegado a
um máximo de lucidez e de transparência.” (p. 317)
“O reconhecimento do estado de desordem
em que vive a alma humana, a fria e calculada aceitação desse estado de
desordem sem nenhum pensamento de que seria preciso fazer algo para melhorá-lo,
a idéia demoníaca de aproveitar-se desse estado de desordem para realizar
certos objetivos sociais que arbitrariamente são considerados estimáveis – tal é
o conjunto de fatos e suas articulações que Voegelin engloba numa ação única, a
que dá o nome de instrumentalização das paixões e que, no fundo, representa a
tentativa de destruir a ordem moral do mundo, pondo em lugar de Deus, a única origem
legítima dessa ordem, um legislador preocupado tão-somente com o bom funcionamento
de uma sociedade demoníaca.” (p. 320)
“... quando a filosofia fez sua entrada
no palco da História uma nova situação se configurou. O homem adquiriu a
consciência de que tinha uma razão, de que tinha um espírito, e também de que
(...) esse espírito (...) estava indissoluvelmente ligado a uma liberdade que
nada tinha a ver com a liberdade corporal, a única que até então havia
conhecido. (...) Foi, rigorosamente, a descoberta de um novo homem dentro do
antigo, de um homem espiritual que jazia ignorado dentro do homem animal. É a
essa descoberta que se dá o nome de humanismo. (...)
Essa descoberta extraordinária teve como
precursora a descoberta pelo homem de sua própria alma – acontecimento incomparável
que nos foi descrito por Nietzsche na sua Genealogia
da moral. (...) Com a mesma crueldade e ferocidade com que atacava o
inimigo os instintos do homem se voltaram contra ele próprio, e um processo de
interiorização se iniciou em que a vítima era o próprio agressor. Assim se
formou a alma que, segundo Nietzsche, fez do homem um animal doente mas,
inesperadamente, um animal ‘interessante’, que introduzia no mundo um espaço
novo, um espaço interior, o espaço em que coisas maravilhosas se produziam e em
que o homem se tornava verdadeiramente digno da contemplação dos deuses.” (p.
327-328)
“O que há de leviandade, de
irresponsabilidade mesmo, na maior parte das opiniões filosóficas que circulam
como moeda válida em meios supostamente entendidos seria de desanimar o mais
entusiasta otimista convencido do futuro brilhante que aguarda a humanidade. É
extremamente desconcertante ver como esses filósofos irresponsáveis propõem
suas idéias sem o menor escrúpulo, sem se inquietarem o mínimo que seja com as
conseqüências que poderiam advir se algum grande líder político se decidisse a
levá-las a sério e a passar da teoria para a prática. O que aconteceria, por
exemplo, se tal líder decidisse por em prática a idéia de Foucault de abolir o
homem? (...) Certamente algum ridículo mas odioso sistema de automação e
computadorização da vida.” (p. 331-332)
“A indiferença de Weber pela qualidade
espiritual do protestantismo, pelo teor de sua inspiração religiosa, e a mera
atenção a características dessa inspiração que poderiam, eventualmente, exercer
uma influência sobre a economia, são um fiel retrato de nossa época. É o que se
convencionou chamar de ‘neutralidade ética’. Não causa hoje o menor espanto o
fato de que um pensador, voltado para os problemas de sua sociedade e de sua
época, declara-se neutro com relação a um dos aspectos mais importantes da vida
humana, social ou individualmente considerada. (...) É absurdo, em qualquer
circunstância – seja na vida prática, seja numa conjuntura teórica – tomar o
partido da neutralidade em face da necessidade de uma decisão ética. É absurdo
colocar entre parêntese essa coisa primordial que é a existência.” (p. 335-336)
“O homem comum está hoje completamente despreparado
para se defender das extravagâncias da ciência (...). A ciência em si não é nem
má nem boa – mas sua expansão, prejudicando o exercício de uma influência que é
boa para o homem, pode, definitivamente, ser considerada uma coisa má.
Qual é a influência cujo exercício sobre
o homem é prejudicado pela expansão da ciência. É naturalmente a influência
exercida pelo espírito ético. (...) a tendência ética é construtiva, ela
procura dar ao homem uma forma, pela imagem, pela realização de virtualidades;
a tendência científica é analítica, ela não se interessa pela forma, pela
imagem, pela realização de virtualidades, mas simplesmente pela descrição dos
fatos que julga encontrar na consciência. Está claro que o choque desses
interesses constitui um embaraço para cada um deles – mas é a tendência ética
(...) a que mais sofre, a que é mais prejudicada no seu interesse construtivo”
(p. 338-339)
“O que se observou então nesses séculos
de expansão da ciência foi o seguinte: o saber filosófico influenciado pela
revolução epistemológica procurou, cada vez mais, se libertar desse vínculo
íntimo e profundo que o prendia à realidade ética do homem. Cada vez mais, esse
saber filosófico procurou se distanciar do que era a sua antiga natureza para
se transformar num saber científico. A Ética passou a constituir um
departamento de importância secundária no currículo filosófico. De toda
maneira, ela perdeu o direito de tomar parte nos grandes debates que decidiam
da orientação que deveria ser dada ao esforço filosófico. Ficava num canto
obscuro, assistindo aos debates, e quando as decisões eram tomadas seguia
obediente as instruções que lhe eram transmitidas.” (p. 341)
“Os colonos [britânicos] se julgavam um
povo especialmente talhado para o exercício da liberdade – espaços vastos, não
entulhados pela tradição cultural, uma situação análoga à de Israel quando se
viu liberada da tradição cosmológica das culturas mesopotâmicas. A analogia,
entretanto, não ultrapassava certos limites porque as colônias não haviam
descoberto uma nova fonte de inspiração, um mundo transcendente – a Nova Israel
não descobrira um novo deus, apenas se livrara dos deuses antigos; cabia-lhe,
então, encontrar algo em torno do qual pudesse organizar a sociedade em
formação, algo que pudesse substituir os deuses antigos que abandonara – algo que
não podia deixar de ser o que foi efetivamente – a própria idéia de liberdade.
Uma sociedade que se organiza em torno da
idéia de liberdade está se arriscando a ter um futuro incerto, porque a
liberdade não é dona de si mesma e pode, de repente, revelar-se serva de senhores
de índole tirânica. (...) A nova nação havia seguido o conselho de Locke e
decidira separar a Igreja do Estado. Já aqui se havia optado por um tipo de
liberdade que não era derivada das estruturas de cultura. A liberdade religiosa
na nação recentemente formada significava uma ausência total de compromisso com
qualquer tipo de elaboração cultural – significava uma liberdade total, selvagem,
feroz, em face de qualquer compromisso cultural; e foi essa liberdade, uma
liberdade derivada das estruturas de poder, que se escolheu como eixo em torno
do qual deveriam girar todas as aspirações, todos os impulsos que veriam a
constituir a força e o destino do povo americano.” (p. 343-344)
“A opinião de Rorty não faz, aliás, mais
do que repetir um ponto de vista generalizado entre os filósofos e scholars norte-americanos: a convicção
de que Platão não tem autoridade para julgar o regime político democrático, nem
o de Atenas, nem muito menos o dos Estados Unidos. (...) Se o ideal democrático
norte-americano é a última instância, a partir do qual todos os valores do
espírito deverão ser julgados, então poderemos ter a menor dúvida de que
estamos diante de uma sociedade fechada.” (p. 350)
“... na filosofia norte-americana (de que
Rorty é um excelente representante) a idéia que vigora é sempre a idéia de que
cabe à vida política fornecer os elementos de inspiração para a vida espiritual,
a idéia de que o poder deve ter sempre reconhecida sua prioridade sobre a
cultura. O que constitui um problema da maior importância para a cultura
espiritual do século XIX europeu – a dilaceração espiritual resultante do
conflito existente entre a tradição ética e a tradição estética (o conflito que
atormentou entre outros, Dostoievski, Kierkegaard, Tolstoi, Gogol e Nietzsche) –
tem uma solução fácil, segundo o norte-americano, numa transposição para o
plano intelectual de uma virtude cívica, isto é, uma tolerância, ironia e
disposição para deixar as diferentes esferas de cultura gerarem seus ideais
intrínsecos sem preocupações com uma base comum, com a unificação de tais
ideais.” (p. 355)
“O Foucault francês é o que conserva
plenamente esse nietzscheanismo – é um Foucault que tem um projeto de autonomia
privada, (...) um anarquista. Rorty lamenta a existência desse Foucault
francês. (...) Para Rorty, projetos de autonomia levam a pensamentos desumanos.
(...) Rorty pensa que às questões – Qual é a sua posição? Quais são os seus
valores? – Foucault deveria responder o seguinte: “Estou ao lado de vocês como
concidadão, mas como filósofo estou sozinho, perseguindo projetos de minha
própria invenção que não são da conta de ninguém. Não estou oferecendo bases
filosóficas para estar ao lado de vocês
nos negócios públicos, pois meu projeto filosófico é privado e não oferece nem
motivo nem justificação para minhas ações políticas’.
Não creio que seja um exagero considerar
essa sugestão de Rorty uma declaração de guerra insensata não só à filosofia
clássica como à filosofia em geral. Imaginar que o projeto filosófico de um
pensador possa ser uma ocupação privada, que não é da conta de ninguém mais a
não ser ele, é uma dessas coisas que não se pode ler ou ouvir se espanto. Então
filosofar é como colecionar selos? (...) Então o filósofo não se caracteriza
pela sua universalidade? Então o filósofo não é um guia, um mestre, um
orientador da humanidade? Então não é seu dever mais estrito procurar convencer
o próximo daquelas verdades de que ele próprio está convencido, usando
naturalmente para isso argumentos que lhe pareçam verdadeiros? Se a filosofia
não é isso e só isso, então confesso
que já não estou em condições de entender mais nada.” (p. 356-358)
“Em Platão a razão é hegemônica e ética.
Em Aristóteles ela continuar a ser ética mas não é mais hegemônica – os instintos
e as paixões podem contrariá-la e ignorá-la. Nos Estóicos ela é ética mas não é
hegemônica – é tirânica, não levando em nenhuma conta a existência das paixões,
que considera simplesmente erros, ilusões. Essa razão tirânica dos Estóicos tem
algo de cego, de obstinado, que a torna próxima da razão cartesiana – a diferença
é que ela representa um princípio de ordem, de cultura, ao passo que a razão
instrumental cartesiana representa simplesmente um princípio de poder.” (p.
363)
“Dizer que numa teoria da justiça como
eqüidade tal inversão se justifica é nada mais que uma petição de princípios. O
que é que justifica o fato de se tomar por base uma teoria da justiça como
eqüidade? Rawls fala muito numa ‘posição original’, mas a ‘origem’ dessa
posição original não nos é dada. (...) A ‘posição original’ de Rawls é uma posição
de Poder.” (p. 365-366)
“No nosso século, em que a idéia de poder
tem fascinado a mente dos homens, em que se tem até pretendido que o ato básico
da moralidade – o domínio das paixões pela razão humana – seja uma manifestação
de poder; no nosso século o fenômeno da cultura anda seriamente ameaçado. (...)
A defesa da cultura, portanto, da verdadeira cultura, deveria ser a preocupação
essencial, o objetivo quase que exclusivo do pensador responsável. E a defesa do
humanismo, do verdadeiro humanismo, noção coincidente, deveria também ser seu
corolário.” (p. 370-371)