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15 fevereiro 2013

Fichamento - "O Humanista" (Mario Vieira de Mello)


PREFÁCIO

“O homem contemporâneo parece ter desaprendido a ler. Em nossa época de hermeneutas, de intérpretes de toda espécie, intérpretes que se sobrepõem à coisa interpretada, leituras que se sobrepõem ao texto lido (...) não há como evitar o choque de uma constatação surpreendente: a de que, apesar de todas essas sofisticações, o homem contemporâneo parece ter desaprendido a ler.” (p. 13)

CAPÍTULO I

“Maquiavel, Hobbes, Rousseau tinham, cada um deles, sua opinião sobre os instintos fundamentais do homem e inferiam dessa opinião qual deveria ser a ordem a implantar na sociedade. Essa inferência, todavia, não significava a intuição da existência de uma correspondência entre a estrutura da alma humana e da sociedade. Essa intuição foi privilégio de Platão. A correspondência, que intuíam, não era a de uma analogia, mas a de um contraste; não era uma ordem na alma humana que se refletisse na sociedade; era, ao contrário, uma desordem na alma humana que não poderia, que não deveria se refletir na sociedade.” (p. 17)

“O homem não é bom nem mau, o homem é uma possibilidade que, através da educação, poderia se transformar em ponto de referência útil a quem pretenda organizar planos de uma ordenação social. Tal é a sugestão que encontramos na obra de Platão (...). As teorias políticas que surgiram no período moderno da história só se tornaram possíveis quando desapareceu essa idéia da posição central da educação na vida espiritual do homem. São todas elas teorias que atribuem ao homem uma natureza fixa, intransformável – o homem é um animal de rapina para Hobbes, um pérfido intrigante para Maquiavel, um egoísta e um calculista para Locke e Rousseau.” (p. 19)

“A cultura clássica dos gregos se distingue de todas as outras culturas por três traços fundamentais: seu idealismo, sua filosofia e sua Paidéia, ou, em outras palavras, seu espírito educacional. (...) [A educação é] um processo de transformação em virtude do qual uma mera possibilidade passa a ser uma realidade, um ser, uma criatura que, originando-se de uma mera possibilidade de humanidade, se apresenta como um verdadeiro homem. Este é o verdadeiro sentido da palavra humanismo (...). Idealizar é desenvolver todas as potencialidades desse ser, o que só é possível estabelecendo uma harmonia entre elas.” (p. 19-20)

“Nietzsche apresentava os dois instintos como impulsos diversos mas complementares. O impulso dionisíaco era um movimento vital, torrencial, transbordante, que transcendia a individualidade humana – por ele ameaçada nos seus contornos, nos seus limites, na sua forma; o impulso apolíneo, ao contrário, era criador de formas, um sonho de imagens que resistia à violência do primeiro impulso e encaminhava suas energias para a produção de formas belas e individualizadas.  Um não podia existir sem o outro: entregue a si mesmo, o impulso dionisíaco era como uma terrível avalanche que destruía tudo na embriaguez de sua passagem descontrolada; sem contato com o impulso dionisíaco, o impulso apolíneo se estiolava, sem significação verdadeira.” (p. 29-30)

“O que faz da filosofia contemporânea uma filosofia de epígonos parece ser sobretudo o fato de que não tem consciência da necessidade de uma reflexão, de uma preocupação essencial com o problema da liberdade. Examinemos um por um todos os pensadores, todos os sistemas que se apresentam, desavisados de qualquer articulação entre si, para não falar de articulação com o passado. (...) Nenhum deles pensa que sem atacar esse problema é mais ou menos inútil atacar o outro, o problema do conhecimento.” (p. 51)

“O mundo de hoje é essencialmente anti-tradicionalista. A tradição que rejeita, entretanto, é extremamente rica e complexa; há vários de seus aspectos que poderiam se rejeitados sem que todavia houvesse uma necessidade compulsiva de que outros aspectos também o fossem. (...) Poderíamos pelo menos discernir quatro tipos de rejeição ao antigo, quatro formas de motivação para que se possa bem compreender de que modo a Idade Moderna se afirmou, se auto-definiu em face do legado que lhe deixava a Idade Média: a motivação luterana, a motivação cartesiana, a motivação voltairiana e a motivação kantiana. 
Das quatro motivações a cartesiana foi, talvez, a mais revolucionária; ela modificou profundamente a concepção do que fosse a natureza da filosofia – o amor à sabedoria foi substituído pelo desejo de certeza, ele próprio uma preliminar para a vontade de poder. O filósofo não se sentia mais envolvido por uma paixão erótica mas simplesmente possuído por um desejo de domínio, de conquista de poder. Isso transformava completamente as coisas. O que o homem era deixava de ter importância. O que o homem fazia é que agora importava.” (p. 55-56)

“O que esses epígonos [Foucault, Heidegger, Lévi-Strauss] nos oferecem em troca? Que espécie de ordem propõem a essa humanidade desconsiderada, depreciada, desdenhada? É a liberdade tudo que almejam? Liberdade de que, liberdade para que, liberdade contra que, liberdade sobre o que? Tem-se a impressão de que está faltando em tudo isso sobretudo o que – a impressão de que, se o homem contemporâneo reivindica com tanta veemência a liberdade, é simplesmente para dissimular o vácuo, o enorme vazio dentro dele. Quanto mais veemente a reivindicação, mais forte é a impressão. As experiências da arte contemporânea, por exemplo, quanto mais ousadas, mais fortemente nos transmitem essa sensação. O homem contemporâneo sofreu, na imaginação de um artista que vivia com especial intensidade os problemas de seu tempo, uma estranha metamorfose: viu-se transformado num inseto. Metamorfoses mais estranhas poderão ainda ocorrer nos nossos dias. Quanto mais liberdade reclama, mais o home contemporâneo se torna vazio. Um dos nossos romancistas poderá, quem sabe, imaginar um personagem que, ao acordar de manhã, se veja transformado numa simples bolha de sabão.” (p. 61-62)

“O pensamento de Kant, centrado de forma decisiva na problemática da ciência, não poderia ver outro tipo de razão que não fosse em termos de causalidade e de universalidade. E a única diferença que estabelecia entre a ‘razão pura’ e a ‘razão prática’ era que a primeira se definia em termos de uma causalidade necessária, ao passo que a segunda o fazia em termos de uma causalidade livre. (...)
Kant, educado num meio protestante, não poderia ficar insensível aos poderosos argumentos de Lutero. O que o reformador dizia era simplesmente que o homem não podia escolher entre o bem e o mal como escolhia entre dois objetos diversos; que para escolher o bem o homem precisaria antes passar por uma transformação moral profunda. A causa dessa transformação era, para Lutero, Deus; mas Kant, impregnado de ciência e de imanência, traduzia essa concepção em termos racionais, aludindo a uma vontade pura que seria, por conseguinte, uma causalidade livre, totalmente independente de qualquer fator empírico, contingente como a vontade sensual, à qual Erasmo atribuía uma eficácia certa.” (p. 77-79)

“O que liga a razão à liberdade é o fato de serem esses dois princípios irrevogavelmente destinados a exercer uma função essencial no processo educacional que dá forma à alma humana. Um só se afirma plenamente quando está relacionado ao outro. São na realidade entidades que se complementam. (...) em Kant eles se afirmam apenas como entidades paralelas – é por um passe de mágica, destituído de qualquer justificação, que se passa da causalidade necessária da ciência (ou da razão) para a causalidade livre da moral (a chamada liberdade).” (p. 79-80)

“Que no início da década de trinta um jovem de vinte e poucos anos de idade, inteligente, com grande sensibilidade ética e possuidor de cultura excepcional para a sua idade, tenha sido atraído pela personalidade ética de Maquiavel é o que nos mostra, como já deixei entender, a situação equívoca que resulta da concepção da política como a arte do possível, da qual Maquiavel pode ser mencionado como um dos representantes mais qualificados. Dentro de uma tal concepção poderiam também ser enquadrados homens do mais refinado cinismo, homens que poderiam alegar como unicamente possíveis ações ou decisões que nos parecessem eticamente monstruosas.
O que foi que Octavio [de Faria] viu em Maquiavel? Evidentemente não foi a astúcia, a habilidade, a precisão do diagnóstico que davam aos seus conselhos um valor inestimável. O que o Octavio parece ter visto mais do que qualquer outra coisa foi o ardor cívico, a devoção à causa pública, o entusiasmo pelo Bem da República.” (p. 89)

“O grande problema, na verdade, é reconciliar duas verdades aparentemente irreconciliáveis: o princípio de que a política é arte do possível e necessidade de que todo Estado político tenha uma base ética” (p. 93)

"Quando insistimos na necessidade do reconhecimento da importância do Estado ético não estamos recomendando a promoção de um Estado que tenha como membros cidadãos moralmente irrepreensíveis; estamos apenas recomendando a existência de um Estado no qual haja um certo equilíbrio entre as estruturas de poder e as estruturas de cultura" (p. 95)

CAPÍTULO II

“Talvez em nenhum outro texto de Heidegger se sinta, de maneira tão clara, a qualidade específica do seu discurso, que é o de falar como se fosse um Deus. Justamente por se considerar um Deus é que Heidegger só pronuncia palavras incompreensíveis. Ele é suposto ser um filósofo; é suposto, por conseguinte, ser também um educador (...). Mas Heidegger não procura educar ninguém; o que ele procura é hipnotizar seus ouvintes ou leitores. Isso fica claro, muito claro mesmo, quando o assunto de que deve tratar na suas aulas é o humanismo, o ideal educacional por excelência, o ideal através do qual a educação se transforma em iluminação espiritual, elevando o homem aos mais altos cimos da cultura. (...)
Imagine agora o leitor a impressão que tais palavras poderão produzir sobre o espírito de um aluno, desejoso de aprender alguma coisa que seja o humanismo. Só num ambiente cultural em que o pedantismo já tenha se exacerbado – a ponto de eliminar todas as possibilidades de uma assimilação gradual e fecunda de idéias básicas – só em tal ambiente poderá se pretender que as palavras acima citadas não causem o pânico mais desalentado no espírito dos jovens alunos que delas tenham sofrido o impacto.” (p. 99-100)

“Custa a crer que um pensador de reputação mundial confesse admitir a eventualidade de que a Ética possa um se tornar caduca. (...) Custo a visualizar a situação de um home predisposto ao crime que tivesse sido informado de que a ética se tornaria caduca: teria ele mais condições de resistir à sua predisposição criminosa se lhe fosse revelada a essência do homem a partir da questão relativa à verdade do Ser? (...)
Essa idéia da caducidade! Lamento não ter talento humorístico para impedir o desperdício de um material tão rico quanto o que Heidegger oferece aos que o têm. E lamento também que os filósofos em geral não tenham esse talento – falta-lhes a leveza de espírito que lhes permitiria reconhecer a comicidade de muitas das palavras e das idéias que não raramente emitem. (...)
Não há dúvida de que a seriedade, a gravidade é um dos grandes males de nossa época. Quando se vê as jovens gerações engolindo a largos goles as empulhações de um Heidegger, essas gerações justamente que se julgam rebeldes, excêntricas, não conformistas, é impossível não volver com saudade os olhos para o passado e lamentar que o bom humor sadio de um Sócrates esteja sendo esquecido. Que gravidade pedante na atitude de jovens tão rebeldes, tão excêntricos e não conformistas!” (p. 102-103)

“As gerações atuais, então, têm tendência a dramatizar, a produzir efeitos espetaculares em torno das insatisfações que existem na alma do homem de nossos dias. A verdade é que essas insatisfações são reais, e é justo que se dê a elas a atenção devida. Mas não é exagerando, dramatizando, produzindo efeitos espetaculares que poderíamos recobrar o equilíbrio que nos está faltando. Antes de mais nada o que precisaríamos fazer é nos desvencilhar desse estetismo; (...) readquirir uma atitude calma, equilibrada, realista, uma atitude a partir da qual poderíamos reexaminar com serenidade quais são, verdadeiramente, nossas dificuldades. (...)
 “Veja bem o leitor: Heidegger anuncia a superação do humanismo e a caducidade da ética; Foucault prevê o desaparecimento da imagem do homem e a obliteração da figura do autor; os norte-americanos, com sua escassa experiência filosófica e histórica, pretendem agora contribuir para o fortalecimento da consciência cultural européia  com os estímulos que receberam de epígonos do velho continente, e que julgam ser uma confirmação de suas velhas tendências a um estilo de vida estruturado em torno da idéia de poder. Tudo isso deveria ser recebido com um certo sense of humour. Julgar possível construir uma filosofia autônoma, independentemente das lições que nos haviam sido transmitidas pela filosofia clássica dos gregos, é algo que não está desprovido de alguma comicidade.” (p. 104-105)
“O romance é uma obra de arte que, como outras obras em vários domínios, pode exprimir o sentido de uma época, pode descrever a fisionomia dessa época ou exprimir-lhe a problemática; mas pode ainda atingir outro objetivo do qual os críticos literários nunca falam, e que é, talvez, o objetivo secreto que estimula tantos jovens a empregar um tão grande número de horas no intuito de alcançá-lo. Esse objetivo é conhecer a vida. É absorver, em algumas horas ou alguns dias, os ensinamentos de uma experiência de vida que não vivemos mas que, para o bom leitor, é como se realmente a tivéssemos vivido. É assim que um jovem leitor assíduo e bem orientado pelos mais velhos amadurece e adquire densidade psicológica.” (p. 111-112)

“Naturalmente nos romances de Sartre, de Camus, de Genet, não se encontrará a menor partícula desse humanismo. São romances para serem lidos com os maxilares contraídos, com um ranger de dentes, com raiva e ódio do que é a vida. Eles são realmente os anunciadores, os precursores, os formadores dessa geração que não respeita nada, que quer desmistificar o sexo, o amor, a moral, a religião – essa geração arrasada pela guerra, que se julga nietzscheana sem compreender nada de Nietzsche.” (p. 112)

“O problema da cultura moderna poderia, pois, ser equacionado do seguinte modo: deveria, para manter seu equilíbrio, estar sustentado por dois pilares – a razão e a liberdade – e esses dois pilares deveriam estar num contínuo e completo relacionamento, tal como ocorria no humanismo clássico dos gregos. O fato de que só um pilar funcione, e de que o outro não nos cause senão frustração e desentendimento, faz da situação cultural do mundo ocidental contemporâneo uma situação de crise. Há, entretanto, uma circunstância favorável: embora a razão desengajada prossiga na sua carreira triunfante, sem empecilhos que a faça recuar, a liberdade desengajada não consegue se afirmar, pelo menos no campo da filosofia (embora seja triunfante no campo político, como nos mostra a concepção de liberdade nos Estados Unidos), e dá, assim, um espaço ao humanismo, que se apresenta então como o refúgio em que estão hoje depositadas todas as esperanças num renascimento da cultura.
Por que a liberdade desengajada não consegue dar origem a uma ética que possa dar satisfação à humanidade? A explicação é simples, embora não imediatamente evidente: ao desengajar-se, a liberdade se desvincula não só da razão, que em si já é um princípio de ordem, como também de uma ordem pressuposta no universo. Uma liberdade desengajada é uma liberdade entregue a si mesma, a seu próprio arbítrio, isto é, à sua falta de arbítrio.” (p. 123)

“Consideremos uma outra vítima da campanha surda de hostilidade que a cultura vassala do Poder move hoje contra o humanismo. Voegelin é descrito nas orelhas de seus livros como um dos maiores historiadores de nossos tempos, como um dos mais profundos e estimulantes do século XX. Entretanto, se passarmos em revista o que vem produzindo a literatura filosófica contemporânea, veremos que são raríssimas as referencias feitas a ele. (...) Mas o desdém que lhe é assim manifestado ele não o retribui. Voegelin era um gentleman. Quem estudar com cuidado sua obra verá que há nela formulações que só poderiam ser interpretadas como uma crítica severa aos Estados Unidos. Mas o modo de apresentação elimina qualquer choque mais direto. (...) A posição filosófica de Voegelin é a de uma crítica radical, sem compromissos, à cultura contemporânea em todas as formas pelas quais ela se manifesta. A cultura como expressão suprema da existência humana ia desaparecendo e o seu lugar era tomado pela ideologia. A sua critica visava a cultura do mundo ocidental como um todo, mas havia coisas em seus textos que se referiam claramente à realidade da sociedade americana – como quando diz, por exemplo, nas mesmas Reflexões Autobiográficas citadas acima: ‘Com relação ao clima dominante nas ciências sociais, o filosofo na América se encontra em situação idêntica à de Soljenitzin na União de Escritores Soviéticos – a diferença importante residindo, naturalmente, no fato de que nossa União de Escritores Soviéticos não dispõe de poder governamental para eliminar scholars.’ Por isso, quando em certas ocasiões Voegelin parece excetuar os Estados Unidos do rigor de suas críticas, deveríamos, creio eu, admirar não a exatidão do filósofo mas a gratidão e as boas maneiras do gentleman que ele era.
E como seria possível excetuar os Estados Unidos da sua crítica se sua bête noire era e sempre havia sido a ideologia? A sociedade norte-americana não era nem marxista, nem fascista, nem nazista, mas era indubitavelmente uma sociedade organizada em torno das estruturas de poder. A obsessão do poder é uma ideologia tão deformadora quanto as ideologias marxista, fascista ou nazista. Voegelin, que incluiu nas suas análises da ideologia a idéia de poder sob a forma de ‘instrumentalização das paixões’, assim o fez para colocar a sociedade norte-americana sob a mira de sua análise. Através desse processo, o legislador – o legislador norte-americano – introduz o poder no mais íntimo da alma humana, fazendo-a agir não de acordo com seus instintos e emoções naturais, não de acordo com o ordenamento ético promovido pela atividade do princípio racional, mas de acordo com um interesse determinado, o interesse esclarecido em virtude do qual uma maior soma de poder lhe será conferida. O legislador norte-americano afasta com impaciência a idéia de uma ordem humanista na alma do indivíduo; o de que ele precisa é que esta alma esteja em estado de desordem para que possa ser instrumentalizada.
O anti-humanismo é, assim, se nossas deduções são corretas, um ingrediente essencial da estrutura da sociedade norte-americana; não é simplesmente o resultado da influência de atitudes intelectuais como as de um Foucault ou de um Heidegger, mas qualquer coisa sobre a qual se alicerçam realmente as estruturas sociais da nação. Como, pois, poder-se-ia conceber que um filósofo tão arraigadamente humanista como Voegelin tivesse um acolhimento que ultrapassasse os limites da cordialidade? Na verdade, a impressão que se tem é que Voegelin foi mais bem recebido do que seria de esperar nas universidades por onde andou. (...) Não creio que o caso de Voegelin seja idêntico ao de Jaeger. Jaeger era muito conhecido e provavelmente muito lido – mas era hostilizado e algumas vezes atacado por autores que não tinham competência para criticá-lo. Voegelin simplesmente não é conhecido, pelo menos não é conhecido na sua grandeza, na sua importância. Um humanista hoje não é conhecido simplesmente porque é um humanista.” (p. 129-132)

"A rationale de todas as nossas atividades não é mais a liberdade de só praticarmos o ato que seja condigno com o valor moral de nossa existência, mas a utilidade que esse ato possa oferecer, ao indivíduo e à sociedade" (p. 134)

"o que foi desrespeitado em todos esses casos não foi apenas o direito à liberdade que estamos agora reivindicando, e que, de qualquer maneira, tinha que ser respeitado; o que foi desrespeitado em todos esses não foi apenas o direito à vida que estamos reivindicando e que, de qualquer modo, tinha que ser respeitado, o que foi desrespeitado foi, principalmente, a imagem do homem que a cultura do Ocidente já havia construído e que nós próprios, que fomos testemunhas daquela tragédia ou dela tivemos notícia, também desrespeitamos" (p. 139)

“Com efeito, que fez o homem ocidental para evitar que seu racionalismo excessivo transformasse sua consciência em algo ressecado, esquemático, desprovido de imaginação e sensibilidade? Que fez ele para evitar que suas fantasias, desregramentos e libertinagens a transformasse em algo de totalmente distorcido e indisciplinado? (...) Arrogantemente ele considera que não necessita da assistência do pedagogo competente. Resolve decidir por si mesmo que doses de racionalidade e de liberdade deve empregar para estruturar a sua alma. Ele se faz autodidata. Não somente se faz autodidata mas, mais tarde, com a consciência já distorcida pelo desastroso tratamento que infligia a si próprio, pretende impor às gerações mais jovens o tratamento desastroso que havia imposto a si mesmo. Assim se formaram várias tradições filosóficas na Europa.” (p. 156)

 "Um jornalista (I.F. Stone) com veleidades de scholar denuncia Sócrates como o inimigo da democracia ateniense, o presidente de um congresso de filosofia considera A República a primeira carta do fascismo. Tudo isso parece simplesmente um prolongamento da ignorância e da impertinência do jovem estudante norte-americano. Mais tarde, quando ele já é um scholar, continua impertinente porque não deixou de ser ignorante e continua ignorante porque não deixou de ser impertinente.” (p. 161)

CAPÍTULO III

"... porque esse poder, de cuja realidade ele [Foucault] nos quer convencer, nem ao menos tem um suporte – não há um sujeito que o possua e que queira exercê-lo, Foucault abomina o sujeito, que para ele é um resquício do humanismo e da imagem do homem que ele quer abolir. O poder simplesmente é, existe. A sociedade é carcerária não porque alguém a tenha tornado tal, mas porque não há, para ela, outro modo de ser. (...) Fica-se realmente sem saber aonde Foucault quer chegar com a sua cratomania. (...)
Merquior tem, assim, razão de falar em niilismo de cátedra. Quando se observa que Foucault ganhou sua vida como professor universitário, dando lições que versam sobre matéria dessa natureza, fica-se pensando não na sociedade carcerária mas na sociedade suicida. (...) Seus livros são o murmúrio de uma época agonizante." (p. 174)

“O que distingue Nietzsche de todos os outros filósofos da época moderna e contemporânea é a sua sensibilidade com relação ao fenômeno Sócrates. Ele reagiu a esse fenômeno não como o acadêmico que era, não como o filósofo criador que se tornou mais tarde e nem como o homem culto (...) – reagiu como um psicólogo extraordinário, (...) cujos dons se exerciam sobre uma personalidade venerável, (...) que, por ser legendária, parecia estar protegida contra os olhares indiscretos da psicologia. (...) Seu enfrentamento com a natureza de Sócrates era leal e decidido. Era a partir do assombro que lhe causava a imensidade daquela figura que registrava o fato inelutável de sua decadência.” (p. 180-181)

“É justamente no plano psicológico que as afinidades entre os dois filósofos, o ateniense e o alemão, deveriam ser procuradas. A grande descoberta que fez Jaeger a respeito de Sócrates foi que ele não era propriamente um filósofo – era um caráter, um homem que quer oferecer a seus semelhantes não somente a sua inteligência, não a sua capacidade discursiva e racional – que quer lhes oferecer a plenitude do seu ser. Mas Nietzsche não está justamente nesse caso? Nietzsche não é um filósofo, é um home, um caráter que se ofereceu à humanidade de maneira trágica, espetacular.” (p. 188)

"No caso de Nietzsche, a morte de Deus não poderia, igualmente, significar a morte do ideal humanista simplesmente porque o Deus que Nietzsche havia cultuado, na sua adolescência e na primeira juventude, havia sido o Deus fideísta, que exige mais uma experiência do coração do que a adoção de uma religião ligada aos ideais da cultura clássica." (p. 195)

"Um Nietzsche recuperado seria um Nietzsche que não desconheceria o valor permanente da cultura clássica dos gregos, um Nietzsche que não reconheceria a validade ou a legitimidade do papel de Descartes como reformulador das estruturas básicas da disciplina filosófica." (p. 203)

"Mas o humanismo que queremos defender não é qualquer um, e sim o humanismo que acreditamos ter se originado de circunstâncias muito especiais, e que certamente nunca mais se reproduzirão. Faz parte, portanto, dessa nossa defesa estar atento a que o humanismo que eventualmente venha, um dia, a ser universalmente aceito seja o mesmo, tenha as mesmas características daquele que nos parece o produto de situações tão especiais" (p. 206)

"A essa racionalidade, transformada em ação consciente da cultura visando a reprodução de si mesma, deu-se o nome de educação. É o ponto terminal de uma longa evolução em virtude da qual o elemento racional, que envolvia os aspectos parciais da cultura, delas se desprende para se tornar um agente capaz de reproduzi-los" (p. 211)

"Os pré-socráticos reduziam as forças da natureza a princípios e estabeleciam entre elas um certo tipo de relação. Havia nisso, indiscutivelmente, uma intuição do que é ciência, mas esses filósofos eram, ao mesmo tempo, teólogos, e isso lhes dava a autoridade dos sábios, capazes de liderar os homens." (p. 213)

"Identificar ciência e racionalidade da cultura é tentar identificar a parte com o todo. A ciência ocidental, apesar do enorme desenvolvimento que teve, apesar da extraordinária tecnologia a que deu origem, continua a ser parte, e somente parte, da cultura ocidental- se um dia ela representar o todo, isso significaria, simplesmente, que a cultura ocidental teria desaparecido. (...) Tentar definir o que é racionalidade através da experiência de nossa própria cultura seria um petição de princípios: apoiaríamos nossa demonstração justamente sobre a tese que deveríamos demonstrar" (p. 219)

CAPÍTULO IV

“A Física de Aristóteles foi rejeitada por Descartes porque as formas nas quais a razão aristotélica estava engajada impediam o acesso às potencialidades do mundo físico. Mas a Ética de Aristóteles foi uma fonte de inspiração – lá se encontrava um modelo para a razão desengajada sob a forma de faculdade de escolha: tal é razão desiderativa ou instinto raciocinativo de Aristóteles – uma faculdade deliberativa, que escolhe, que decide, que pode optar por um valor, por um desvalor; ou mesmo por uma indecisão, por uma não opção, que não está condicionada a fins. E é justamente este tipo de racionalidade, encontrada por Aristóteles no mundo ético, que serviu de modelo para a razão não condicionada a fins da epistemologia de Descartes. Interessado em matematizar o universo para dele extrair o seu potencial de energia, e não em descrever-lhe as diversas qualidades e a ordem a que estariam articuladas, Descartes fez da razão uma faculdade neutra, instrumental na sua totalidade e não apenas na parte que se referia à ética. (p. 230-231)

“A primeira é a liberdade natural, a liberdade com que diz Rousseau ter nascido o homem; é, também, uma liberdade derivada do poder que o homem sente ter quando é capaz de possuir tanto ou mais do que o seu vizinho – é, entretanto, uma liberdade que faz do homem um escravo de si mesmo, de suas paixões, de seus instintos. A segunda é uma liberdade que, para existir, precisa ser adquirida por nós mesmos, e que independe, totalmente, de qualquer situação de poder – é uma liberdade que só se configura quando o homem se integra completamente no mundo da cultura através da educação” (p. 236-237)

“Sou assim, decididamente, um homem que acredita nas virtudes do passado. Não penso que seja um conservador porque há muita coisa do passado que me parece dever ser esquecida ou abolida. O passado não deve ser considerado um monolito, algo em que se acredita totalmente ou que se rejeita por completo. Há coisas do passado preciosas que foram rejeitadas em virtude dessa percepção do passado como um monolito.” (p. 245-246)

“Esse é talvez o principal motivo da grande atração que exerce sobre nós o turismo. Há em cada visita a um sítio ou a um monumento histórico uma confrontação. Vemos materializado, configurado da maneira mais concreta, um pedaço da história. Sentamo-nos, por exemplo, nos degraus-assentos de um teatro grego e nos pomos a sonhar. (...) O turismo é, assim, uma espécie de confrontação. Uma maneira de sabermos mais sobre nós mesmos. O que nós vemos nos vê também tanto quanto nós o vemos – e porque nos vê ficamos vendo melhor a nós mesmos.” (p. 251)

 “O modo de ser dos egípcios antigos, dos etruscos, nos faz revelações importantes sobre a natureza humana, sobre o que somos, permanentemente, através das necessidades do tempo. A vontade de sobreviver, de escapar do ciclo da natureza – nascimento, vida, morte – foi, é e continuará provavelmente sendo comum a todas as nações do mundo ocidental. (...) As religiões, os deuses e os túmulos egípcios e etruscos, tudo isso nos mostra que o homem ocidental nunca se conformou e provavelmente não se conformará jamais com a idéia de que a morte significa o fim do indivíduo. (...) A vida exclusivamente limitada a uma perspectiva do presente nos conduz a isso, à barbárie, a uma existência de animais. A mais alta tecnologia não nos faria escapar dessa alternativa. A perspectiva de um futuro tecnológico continuaria a ser a falta de perspectiva de um futuro verdadeiro.” (p. 252)

“Que há um determinismo que nos leva, inexoravelmente, a participar do ritmo febril da vida contemporânea; que só nas grandes cidades, com suas grandes massas, com a grande oferta de todo o tipo de consumo, inclusive o das artes, o das letras e dos espetáculos – que só na megalópole o homem contemporâneo se realiza é um fato que está longe de ser comprovado. (...) O que prende o homem contemporâneo à grande cidade é, em grande parte, a vaidade. Ele quer aparecer, quer ser visto; seu pretexto é que na grande cidade há mais oportunidades para fazer uma carreira. (...) Quem não sente a necessidade de parar um pouco no tempo para olhar para dentro de si mesmo e ver como andam as coisas, em que tipo de pessoa a vida o transformou, que espécie de proveito pensa tirar das coisas e das pessoas, que recursos tem se tiver que viver sozinho – quem não sente essa necessidade sentirá certamente uma outra, que é a de estar constantemente em movimento, em jantares e reuniões em que se possa relacionar com o maior número possível de indivíduos. (...) A contrapartida dessa intensa movimentação social é o isolamento, a falta de um verdadeiro contato humano, que se manifesta de uma maneira por vezes opressiva nas grandes cidades. Para os que sofrem com isso o computador é certamente uma solução. Quem mora numa cidade grande não tem vizinhos, não tem amigos que moram na rua ao lado, não tem pracinhas onde possa tomar o seu chope com os companheiros de costume. (...) Vivemos numa movimentação contínua do trabalho ao lazer, que não são, de modo algum, horas de repouso.” (p. 257-258)

“Numa grande cidade a mesa-redonda, o seminário, é o pobre arremedo do diálogo platônico. Cada um dos participantes tem seu recado a dar; as divergências ficam resolvidas porque há um mediador que decide sobre o tempo das perguntas e das respostas; nenhum participante confessa sua ignorância – exibe seu saber e espera que isso justifique sua presença no debate. A audiência escolhe seus preferidos e o mediador conclui o espetáculo, procurando não melindrar os que não se exibiram no grau que desejavam.” (p. 260)

“A amizade é (...) a relação de duas pessoas ligadas por interesses internos – interesses voltados para o desenvolvimento espiritual do homem que cada uma por si própria, e em si própria, está empenhada em promover. É quando chegamos a esse relacionamento baseado em interesses internos que a amizade se confunde com o humanismo. A mais nobre amizade é (...) quando o homem, dentro de si mesmo, consegue construir sua imagem verdadeira que ele se torna o verdadeiro amigo, o homem de cuja amizade se poderia auferir os mais nobres benefícios; quem veio ao longo do processo compartilhando das vicissitudes dessa construção estará, também, em vias de completar dentro de si a mesma imagem.” (p. 263)

“A filosofia, o amor à sabedoria, a utopia educacional platônica se identificavam com um projeto de desenvolvimento espiritual do homem que o levava ao mundo transcendente, isto é, que não encontrava limites no mundo imanente. A sofia, o projeto científico em que a filosofia cedo se transformou, não demorava muito em encontrar limites no mundo imanente – e foi assim que a utopia platônica, concebida com o propósito de nos levar ao paraíso através da porta estreita da educação, se transformou numa banalidade, numa técnica de aproveitamento de certas disposições favoráveis da natureza humana, tendo em vista a formação de sociedades com um mínimo de organização externa para se tornarem capazes de enfrentar outras sociedades que lhe disputavam o lugar no espaço histórico disponível – e capazes, também, de se manterem coesas através de uma articulação interna que lhes desse uma estrutura sólida e durável.” (p. 266)

“A dúvida metódica de Descartes não era uma dúvida autêntica – o seu método já era o embrião de uma certeza que levaria inevitavelmente à certeza da existência do sujeito. (...) Nietzsche navegava no mar da mais completa incerteza, mar desconhecido, que tinha o céu como horizonte, sem limites. (...) O método de Descartes e a falta de método em Nietzsche lembram a diferença entre o burguês e o aristocrata, a diferença entre a mesquinhez da angústia da certeza a e generosidade que se lança na aventura do imprevisto, arriscando tudo, enfrentando os perigos, mesmo os maiores, não por bravata, não por inconsciência, não por insensatez, mas porque assim o exige uma determinação, uma voz interior cujo comando é mais forte do que tudo  - a voz que faz do homem um filósofo, um amante da sabedoria, um apaixonado da verdade.” (p. 276)

“A ética de Aristóteles nem sempre nos inspira – mas aqui ela parece ser sábia no conselho: a virtude é o meio termo entre dois excessos. A humildade do filósofo contemporâneo parece tê-lo levado a extremos catastróficos. O que salva é que esse projeto niilista, terrível se fosse executado, não parece encontrar ninguém capaz de fazer dele mais do que um exercício literário. É fácil dizer: desapareça o autor, desapareça o sujeito, fique só o texto! Quem está dizendo isto está fazendo justamente o contrário: está tornando enorme, desmesuradamente grande a presença do autor, a presença do sujeito – tão grande que se torna inconveniente (...). A humildade do filósofo contemporâneo tem, entre outros defeitos, o de ser o contrário do que pretende ser. É, neste ponto, parente próximo da ciência que se pretende objetiva, respeitosa dos fatos, mas que, no fundo, tem ambições não reveladas; que começa com a idéia de conquistar o universo físico, mas que hoje pretende muito mais pretende pura e simplesmente conquistar o homem.” (p. 284-285)

“O fato nu e cru é que na Inglaterra o humanismo teve, já no século XVI, suas raízes fincadas na política. (...) Seja qual for a opinião que a filosofia inglesa tenha do humanismo, uma coisa é clara: ela não é representante da espiritualidade, da cultura do povo britânico. A Inglaterra teve um grande poeta, mas não produziu – como a Grécia produziu Platão para substituir Homero – um grande filósofo capaz de substituir Homero – um grande filósofo capaz de substituir Shakespeare. A espiritualidade, a cultura da Inglaterra se confunde com o seu humanismo e se manifesta em várias instituições como a Monarquia, o parlamento, as universidades, a igreja anglicana e os dissidentes. (...) A filosifa inglesa está longe de recolher e de elaborar dentro de si todos os elementos culturais produzidos pela sociedade.” (p. 289-290)

“Os teólogos anglicanos, os platonistas de Cambridge, John Milton, foram promotores importantes de um renascimento da filosofia clássica dos gregos na Inglaterra. (...) Ele fixou de maneira indelével os traços fundamentais do caráter inglês: nitidez de propósitos e maleabilidade nos meios de executá-los; tolerância, mas não permissividade; determinação e elegância; pouca inclinação pela retórica e os maiores êxitos na eloqüência; uma grande confiança no instinto; pouca afeição pela inteligência, embora não haja povo que tenha organizado a sua vida de modo mais conforme ao que poderia fazer um povo para quem quer ser inteligente representasse o ideal supremo.” (p. 291)

“Encarar a igreja anglicana como um mero expediente político não passa de uma explicação falsamente realista. Foi um expediente sim, mas um expediente genial porque não se tratou de uma simples manipulação. Com ele Elizabeth não induziu o seu povo a escolher caminhos perigosos que o levassem a desastres ou catástrofes. (...) Ao contrário: utilizou esse poder com uma compreensão admirável da situação em que se encontrava. (...) Transformada em religião do Estado e oferecendo um conteúdo em que, na história da crise religiosa aberta pelo aparecimento do protestantismo, se realizava, pela primeira vez na Europa, uma conciliação, uma tolerância recíproca de dois credos opostos, unidos agora numa só fé” (p. 293)

CAPÍTULO V

“A inacreditável pretensão da filosofia contemporânea só tem equivalente na inconsciência com que são postos de lado os problemas fundamentais do destino humano. A ligeireza com que se fala dos ‘aspectos éticos da vida’, o peso que se atribui às ‘condições atuais’, como se essas condições representassem uma lei máxima que não pudesse, de forma alguma, ser modificada (...) – tudo isso constitui um caos que se transfere para dentro da alma de cada indivíduo, e o transforma num agente ativíssimo e dotado da mais surpreendente eficácia na promoção de uma desordem ainda maior para servir-lhe como quadro da sua existência atormentada.” (p. 303)

“Só os gregos souberam combinar razão e liberdade numa visão profunda do ser humano, só eles compreenderam o mistério do circuito da substância humana indo do indivíduo à comunidade e da comunidade ao indivíduo. (...) o homem não representa mais a sua própria natureza como nos chamados tempos clássicos. O homem, hoje, não tem mais o amor nobre de si mesmo. Está procurando uma liberdade que não é uma vitória sobre a escravidão de seus instintos – haverá outra coisa que mereça ser chamada liberdade?” (p. 305-306)

“Quando se fala na escravidão dos instintos ele [o homem sofisticado de nossos dias] pensa logo no desejo da carne, nas proibições da igreja católica, no moralismo estreito dos padres carolas; mas a paixão sexual não é o único instinto que escraviza o homem e nem sempre é um instinto vil. Há uma grande quantidade de outros instintos tão capazes quanto o sexo de escravizar o homem – e de novo esses instintos serão vis, mas poderão constituir tendências nobres.” (p. 308)

“O que mudou não foi a complexidade das idéias, mas a complexidade das situações. O que se torna hoje necessário é perseguir a simplicidade das idéias, que continua a ser a mesma através da complexidade das situações, que aumenta cada dia mais. Nietzsche, por exemplo, é um filósofo que lida com pouquíssimas idéias – extremamente simples na verdade. O que torna sua filosofia extremamente rica e variada é a complexidade das situações que seu olhar agudo, penetrante, considera. Ele (...) é inesgotável como investigação em profundidade dos mais recônditos arcanos do ser humano, uma psicologia comparável ou talvez mesmo superior à de Dostoievski (...). O que falta aos filósofos hoje é, justamente, simplicidade nas idéias e capacidade de abordar situações complexas.” (p. 308-309)

“A vitória sobre si mesmo – uma fórmula possível para o humanismo – uma idéia aparentemente ingênua – mas quantos desdobramentos psicológicos, quantas conseqüências éticas, gnoseológicas e metodológicas podem ser extraídas desse pensamento que se supõe tão singelo.
A vitória sobre si mesmo – fórmula prenhe de tantos desenvolvimentos, de tantas complexidades – já nos mostra como se enganam aqueles que pensam que o humanismo é um ideal ultrapassado, superado pela sofisticação contemporânea. Sócrates não sugeriu essa fórmula mas esteve perto de fazê-lo – segundo ele, eram apenas os instintos, e unicamente eles, que escravizavam o homem, porém a experiência psicológica da humanidade naquela época estava em seus começos para que a virtude também fosse arrolada como causa possível da escravização. (...) Sócrates, entretanto, estava no caminho certo. E foi porque Nietzsche não se desviou deste caminho (...) que, finalmente, foi capaz de nos enriquecer com as espetaculares descobertas de origem psicológica de que está saturada sua obra.” (p. 310-311)

“Wittgenstein é, talvez indevidamente, considerado o papa da chamada filosofia analítica dos nossos tempos. Como ele, este tipo de filosofia professa o mais profundo desdém pelo humanismo, desdém que se reflete no fato de não lhe ter jamais dedicado um só segundo de atenção. Cabe a nós, entretanto, defensores do humanismo, não retribuir na mesma moeda – cabe ao humanista indagar, aprofundar, tentar compreender na medida do possível o porquê desse desdém que lhe é tão abertamente declarado.” (p. 314)

“Essa é a resposta que o humanista, representante da razão plenamente engajada, poderia dar ao desdém do representante da filosofia analítica. A sensação de lucidez é um estado de espírito que engana com freqüência. (...) Já em Descartes a sensação de certeza levava consigo uma estranha sensação de euforia. Com Kant a euforia foi tanta que se falou em uma revolução comparável à de Copérnico – acreditava-se ter chegado a um máximo de lucidez e de transparência.” (p. 317)

“O reconhecimento do estado de desordem em que vive a alma humana, a fria e calculada aceitação desse estado de desordem sem nenhum pensamento de que seria preciso fazer algo para melhorá-lo, a idéia demoníaca de aproveitar-se desse estado de desordem para realizar certos objetivos sociais que arbitrariamente são considerados estimáveis – tal é o conjunto de fatos e suas articulações que Voegelin engloba numa ação única, a que dá o nome de instrumentalização das paixões e que, no fundo, representa a tentativa de destruir a ordem moral do mundo, pondo em lugar de Deus, a única origem legítima dessa ordem, um legislador preocupado tão-somente com o bom funcionamento de uma sociedade demoníaca.” (p. 320)

“... quando a filosofia fez sua entrada no palco da História uma nova situação se configurou. O homem adquiriu a consciência de que tinha uma razão, de que tinha um espírito, e também de que (...) esse espírito (...) estava indissoluvelmente ligado a uma liberdade que nada tinha a ver com a liberdade corporal, a única que até então havia conhecido. (...) Foi, rigorosamente, a descoberta de um novo homem dentro do antigo, de um homem espiritual que jazia ignorado dentro do homem animal. É a essa descoberta que se dá o nome de humanismo. (...)
Essa descoberta extraordinária teve como precursora a descoberta pelo homem de sua própria alma – acontecimento incomparável que nos foi descrito por Nietzsche na sua Genealogia da moral. (...) Com a mesma crueldade e ferocidade com que atacava o inimigo os instintos do homem se voltaram contra ele próprio, e um processo de interiorização se iniciou em que a vítima era o próprio agressor. Assim se formou a alma que, segundo Nietzsche, fez do homem um animal doente mas, inesperadamente, um animal ‘interessante’, que introduzia no mundo um espaço novo, um espaço interior, o espaço em que coisas maravilhosas se produziam e em que o homem se tornava verdadeiramente digno da contemplação dos deuses.” (p. 327-328)

“O que há de leviandade, de irresponsabilidade mesmo, na maior parte das opiniões filosóficas que circulam como moeda válida em meios supostamente entendidos seria de desanimar o mais entusiasta otimista convencido do futuro brilhante que aguarda a humanidade. É extremamente desconcertante ver como esses filósofos irresponsáveis propõem suas idéias sem o menor escrúpulo, sem se inquietarem o mínimo que seja com as conseqüências que poderiam advir se algum grande líder político se decidisse a levá-las a sério e a passar da teoria para a prática. O que aconteceria, por exemplo, se tal líder decidisse por em prática a idéia de Foucault de abolir o homem? (...) Certamente algum ridículo mas odioso sistema de automação e computadorização da vida.” (p. 331-332)

“A indiferença de Weber pela qualidade espiritual do protestantismo, pelo teor de sua inspiração religiosa, e a mera atenção a características dessa inspiração que poderiam, eventualmente, exercer uma influência sobre a economia, são um fiel retrato de nossa época. É o que se convencionou chamar de ‘neutralidade ética’. Não causa hoje o menor espanto o fato de que um pensador, voltado para os problemas de sua sociedade e de sua época, declara-se neutro com relação a um dos aspectos mais importantes da vida humana, social ou individualmente considerada. (...) É absurdo, em qualquer circunstância – seja na vida prática, seja numa conjuntura teórica – tomar o partido da neutralidade em face da necessidade de uma decisão ética. É absurdo colocar entre parêntese essa coisa primordial que é a existência.” (p. 335-336)

“O homem comum está hoje completamente despreparado para se defender das extravagâncias da ciência (...). A ciência em si não é nem má nem boa – mas sua expansão, prejudicando o exercício de uma influência que é boa para o homem, pode, definitivamente, ser considerada uma coisa má.
Qual é a influência cujo exercício sobre o homem é prejudicado pela expansão da ciência. É naturalmente a influência exercida pelo espírito ético. (...) a tendência ética é construtiva, ela procura dar ao homem uma forma, pela imagem, pela realização de virtualidades; a tendência científica é analítica, ela não se interessa pela forma, pela imagem, pela realização de virtualidades, mas simplesmente pela descrição dos fatos que julga encontrar na consciência. Está claro que o choque desses interesses constitui um embaraço para cada um deles – mas é a tendência ética (...) a que mais sofre, a que é mais prejudicada no seu interesse construtivo” (p. 338-339)

“O que se observou então nesses séculos de expansão da ciência foi o seguinte: o saber filosófico influenciado pela revolução epistemológica procurou, cada vez mais, se libertar desse vínculo íntimo e profundo que o prendia à realidade ética do homem. Cada vez mais, esse saber filosófico procurou se distanciar do que era a sua antiga natureza para se transformar num saber científico. A Ética passou a constituir um departamento de importância secundária no currículo filosófico. De toda maneira, ela perdeu o direito de tomar parte nos grandes debates que decidiam da orientação que deveria ser dada ao esforço filosófico. Ficava num canto obscuro, assistindo aos debates, e quando as decisões eram tomadas seguia obediente as instruções que lhe eram transmitidas.” (p. 341)

“Os colonos [britânicos] se julgavam um povo especialmente talhado para o exercício da liberdade – espaços vastos, não entulhados pela tradição cultural, uma situação análoga à de Israel quando se viu liberada da tradição cosmológica das culturas mesopotâmicas. A analogia, entretanto, não ultrapassava certos limites porque as colônias não haviam descoberto uma nova fonte de inspiração, um mundo transcendente – a Nova Israel não descobrira um novo deus, apenas se livrara dos deuses antigos; cabia-lhe, então, encontrar algo em torno do qual pudesse organizar a sociedade em formação, algo que pudesse substituir os deuses antigos que abandonara – algo que não podia deixar de ser o que foi efetivamente – a própria idéia de liberdade.
Uma sociedade que se organiza em torno da idéia de liberdade está se arriscando a ter um futuro incerto, porque a liberdade não é dona de si mesma e pode, de repente, revelar-se serva de senhores de índole tirânica. (...) A nova nação havia seguido o conselho de Locke e decidira separar a Igreja do Estado. Já aqui se havia optado por um tipo de liberdade que não era derivada das estruturas de cultura. A liberdade religiosa na nação recentemente formada significava uma ausência total de compromisso com qualquer tipo de elaboração cultural – significava uma liberdade total, selvagem, feroz, em face de qualquer compromisso cultural; e foi essa liberdade, uma liberdade derivada das estruturas de poder, que se escolheu como eixo em torno do qual deveriam girar todas as aspirações, todos os impulsos que veriam a constituir a força e o destino do povo americano.” (p. 343-344)

“A opinião de Rorty não faz, aliás, mais do que repetir um ponto de vista generalizado entre os filósofos e scholars norte-americanos: a convicção de que Platão não tem autoridade para julgar o regime político democrático, nem o de Atenas, nem muito menos o dos Estados Unidos. (...) Se o ideal democrático norte-americano é a última instância, a partir do qual todos os valores do espírito deverão ser julgados, então poderemos ter a menor dúvida de que estamos diante de uma sociedade fechada.” (p. 350)

“... na filosofia norte-americana (de que Rorty é um excelente representante) a idéia que vigora é sempre a idéia de que cabe à vida política fornecer os elementos de inspiração para a vida espiritual, a idéia de que o poder deve ter sempre reconhecida sua prioridade sobre a cultura. O que constitui um problema da maior importância para a cultura espiritual do século XIX europeu – a dilaceração espiritual resultante do conflito existente entre a tradição ética e a tradição estética (o conflito que atormentou entre outros, Dostoievski, Kierkegaard, Tolstoi, Gogol e Nietzsche) – tem uma solução fácil, segundo o norte-americano, numa transposição para o plano intelectual de uma virtude cívica, isto é, uma tolerância, ironia e disposição para deixar as diferentes esferas de cultura gerarem seus ideais intrínsecos sem preocupações com uma base comum, com a unificação de tais ideais.” (p. 355)

“O Foucault francês é o que conserva plenamente esse nietzscheanismo – é um Foucault que tem um projeto de autonomia privada, (...) um anarquista. Rorty lamenta a existência desse Foucault francês. (...) Para Rorty, projetos de autonomia levam a pensamentos desumanos. (...) Rorty pensa que às questões – Qual é a sua posição? Quais são os seus valores? – Foucault deveria responder o seguinte: “Estou ao lado de vocês como concidadão, mas como filósofo estou sozinho, perseguindo projetos de minha própria invenção que não são da conta de ninguém. Não estou oferecendo bases filosóficas para estar ao lado de  vocês nos negócios públicos, pois meu projeto filosófico é privado e não oferece nem motivo nem justificação para minhas ações políticas’.
Não creio que seja um exagero considerar essa sugestão de Rorty uma declaração de guerra insensata não só à filosofia clássica como à filosofia em geral. Imaginar que o projeto filosófico de um pensador possa ser uma ocupação privada, que não é da conta de ninguém mais a não ser ele, é uma dessas coisas que não se pode ler ou ouvir se espanto. Então filosofar é como colecionar selos? (...) Então o filósofo não se caracteriza pela sua universalidade? Então o filósofo não é um guia, um mestre, um orientador da humanidade? Então não é seu dever mais estrito procurar convencer o próximo daquelas verdades de que ele próprio está convencido, usando naturalmente para isso argumentos que lhe pareçam verdadeiros? Se a filosofia não é isso e só isso, então confesso que já não estou em condições de entender mais nada.” (p. 356-358)

“Em Platão a razão é hegemônica e ética. Em Aristóteles ela continuar a ser ética mas não é mais hegemônica – os instintos e as paixões podem contrariá-la e ignorá-la. Nos Estóicos ela é ética mas não é hegemônica – é tirânica, não levando em nenhuma conta a existência das paixões, que considera simplesmente erros, ilusões. Essa razão tirânica dos Estóicos tem algo de cego, de obstinado, que a torna próxima da razão cartesiana – a diferença é que ela representa um princípio de ordem, de cultura, ao passo que a razão instrumental cartesiana representa simplesmente um princípio de poder.” (p. 363)

“Dizer que numa teoria da justiça como eqüidade tal inversão se justifica é nada mais que uma petição de princípios. O que é que justifica o fato de se tomar por base uma teoria da justiça como eqüidade? Rawls fala muito numa ‘posição original’, mas a ‘origem’ dessa posição original não nos é dada. (...) A ‘posição original’ de Rawls é uma posição de Poder.” (p. 365-366)

“No nosso século, em que a idéia de poder tem fascinado a mente dos homens, em que se tem até pretendido que o ato básico da moralidade – o domínio das paixões pela razão humana – seja uma manifestação de poder; no nosso século o fenômeno da cultura anda seriamente ameaçado. (...) A defesa da cultura, portanto, da verdadeira cultura, deveria ser a preocupação essencial, o objetivo quase que exclusivo do pensador responsável. E a defesa do humanismo, do verdadeiro humanismo, noção coincidente, deveria também ser seu corolário.” (p. 370-371)

 

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