SAUDADES DO CARNAVAL: INTRODUÇÃO À CRISE DA CULTURA
(José Guilherme Merquior, 1972)
Roteiro da nossa questão
p.
11-12: Introdução
A
cultura ocidental moderna atravessa uma tríplice e profunda crise: da sociedade (falta de coesão entre os grupos sociais e isolamento do indíviduo), da espécie (modificações impostas pela técnica afetaram o próprio equilíbrio biológico do ser humano e do seu habitat) e do espírito (intelligentsia e juventude crescentemente descontentes em relação ao quadro
de valores, direitos e deveres da civilização “prometéica”, i.e., da produção em série e do consumo de massa).
“É
natural que a moléstia da cultura se
manifeste como hiato no poder de auto-cultivo
do homem e apareça como carência de ideais formativos.
Estas
páginas desejam abordam o problema da cultura precisamente (...) pelo ângulo
dos ideais educativos vivenciados, perdidos ou ensaiados pelo etos ocidental.
(...) Nosso objetivo consiste em indicar (...) as linhas mestras do destino das
paidéias no contexto racionalizado da cultura moderna.”
Capítulo I – Formação da
Paidéia Humanista
p.
18: O conceito de humanismo
“O
humanismo possuía pelo menos uma preocupação genuinamente filosófica,
continuamente avivada pelas cátedras de moral: a discussão do propósito da vida
humana e do lugar do homem no universo. Como os seus queridos antigos, os
humanistas acreditavam que as ‘humanidades’ eram o equipamento intelectual
digno do homem bem formado, do ser humano capaz de auto-realização; e esse
pressuposto já indica que o cultivo das humanidades era naturalmente
acompanhado pelo culto do homem.”
p.
22-23: Humanismo vs. ciência natural
“Historiadores
da ciência (...) registraram a alergia (...) do humanismo à pesquisa exata; e
essa é, de fato, a verdadeira separação: entre humanismo e ciência moderna, e não, como se quis fazer crer,
entre humanismo e ‘ciência’ (por oposição a humanidades) tout court. Enquanto o ideal da ciência não se converteu ao módulo
galileano, entre humanismo e ciência não houve oposição essencial. (...) Se é
verdade que, ordinariamente, a especulação humanista, mais voltada para a
sabedoria do que para o saber, para a sophia
do que para a mathesis, tende a
encarar toda ciência como pura matéria-prima de uma crítica axiológica, de uma
discussão moral, a própria convicção ética central do humanismo – o tema da
excelência do homem – atuou como fermento para a investigação objetiva do real,
na medida em que aquela mesma curiosidade pela nostra res, mola da antropologia humanista, pressupunha
necessariamente a extensão da análise científica ao domínio psicossociológico.”
“[Em]
sua condição de afluente da razão dialética e tópica, ou do discurso imagé, o humanismo partilhava da inadequação de todo o pensamento medieval e
renascentista ao substrato epistemológico da ciência moderna. O núcleo da
ciência moderna é uma teoria matemática
da experiência, uma síntese de orientação empírica e autonomia da razão
calculante (...). A mensuração e a
redução matemática das qualidades sensíveis são a lei da ciência moderna.”
p.
30: O ideal heróico
“O
eixo da autoconsciência renascentista, desse sentimento que tiveram os
humanistas do valor e da originalidade da sua época, foi o culto da excelência
do homem, fonte do impulso de idealização da humanidade. Nessa antropolatria é
que estava a motivação profunda do amor antiquário à cultura clássica, e nesse
ideal heróico de divinização do antropos é que se concentra a paidéia
renascentista, a energia anagógica e educativa do Renascimento.”
p.
33-34: Resumo do capítulo
“Depois
da ruína dos ideais formativos da polis antiga, o aparecimento do etos heróico
no humanismo renascentista constituiu a primeira paidéia profana (mas nem por
isso irreligiosa) do Ocidente, o primeiro modelo antropocêntrico de formação da
personalidade do caráter. Elevando o culto da virtù a paradigma de uma
espiritualidade a um só tempo autodesenvolvida e eticamente aprimorada,
consciente da própria grandeza e atenta aos valores comunitários, o humanismo
clássico proporcionou à Europa uma combinação inédita do senso aristocrático da
individualidade de elite com a consciência moral cristã. A fênix da paidéia
antiga, da educação serenamente orgulhosa do homem que se forma livremente,
renasceu em pleno anelo de repurificação do cristianismo.”
“[No]
entanto, a paidéia do humanismo heróico se alimentou desde cedo de um
sentimento bem pouco cristão: o sentimento de valorização ontológica do ser humano, o reconhecimento elitista da
personalidade de eleição. O que a paidéia humanista pedia ao homem, ao tipo
humano superior, é que ele liberasse a excelência contida em sua própria
natureza; que atualizasse a sua preciosa virtualidade. A elevação heróica
repousava na consciência de uma nobreza
natural – de um aristocratismo ontológico. O humanismo poderia ter assinado
aquela profunda sentença de Ortega y Gasset: ‘herói é quem quer ser o que é.’”
Capítulo II –
Racionalização da Cultura e Religiosidade Moderna
p.
40-42: Racionalização da vida
“Com
efeito, o lançamento do processo de racionalização é fenômeno do século XVII; a
história da cultura não hesita em atribuir-lhe precisamente o papel de elemento
definidor dos ‘tempos modernos’, responsável, em última análise, pela cesura que
separa o bloco pós-Antiguidade (Idade Média + Renascença) da Idade Moderna
propriamente dita”
“[O]
processo de racionalização não ‘tomou de assalto’ as várias esferas
institucionais, submetendo-se súbita e abertamente ao império do agir
instrumental; em vez disso, a racionalização contaminou lentamente as esferas
institucionais do âmbito ‘interativo’ (Habermas), minando desde dentro a velha
observância dos modos de ação não-instrumental.”
“[A]
ascese intramundana é uma ética religiosa; logo, um modo de ação
social orientado pela crença em valores absolutos. (...) [Ela] exibe, como
Weber mostrou no seu clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,
afinidades eletivas com a organização da existência e das relações sociais
operada pela economia capitalista a partir do século XVII. Essa espécie de
organização da vida e da sociedade é, desde então, o suporte da racionalização,
ou seja, da supremacia do agir instrumental no conjunto das esferas
institucionais.”
“Uma modalidade de ação social animada pela
crença em valores absolutos gerou, desta forma, o império da modalidade ação
social dominada por critérios instrumentais”
p.
51-54: Ascese intramundana
“Em
que reside o caráter particular da religiosidade ocidental? A emenda do Fausto
ao Gênese é uma resposta epigramática a essa pergunta; pois a religião do
Ocidente parece uma confirmação incessante de que ‘no princípio era a Ação’.”
“[O]
ascetismo intramundano é, antes de tudo, um dos vários ‘caminhos’
soteriológicos, uma das várias estradas que levam à salvação. Segundo [Weber], duas são as vias básicas do êxtase
soteriológico: a experiência da possessão
(...) e o treino metódico da estrutura
global da personalidade, que repousa numa interiorização e numa intensificação crônica do sentimento religioso.”
“[As]
chamadas ‘grandes civilizações’ religiosas de fundo salvacionista (o taoísmo, o
‘dharma’ hindu, o budismo, o zoroastrismo, o profetismo hebreu, o cristianismo e
o Islão) optaram por estratégias de reestruturação da personalidade.”
“[As]
técnicas de aperfeiçoamento da
personalidade (...) constituem éticas
rigoristas, intimamente associadas às imagens de uma ordem eterna e de uma
divindade ética brandidas pelo profetismo. (...) Essas práticas aperfeiçoadoras
de reestruturação da personalidade exigem, naturalmente, uma ruptura com o habitus da vida ‘natural’.”
A
ascese é a experiência de sentir-se instrumento de Deus.
“O
núcleo filosófico da ascese intramundana enquanto eixo da religiosidade
ocidental é o conceito radical da transcendência
divina. Para o asiático, o mundo e a essência da realidade são
consubstanciais: desde sempre, o universo ofereceu-se ao homem, eterno e
necessário, senão em sua aparência, ao menos em sua substância. Para o
judeu-cristão, porém, o mundo é um paradoxo invencível, porque é a criação
inessencial e imperfeita de um Deus perfeito, onipotente e radicalmente
estranho à sua criatura.”
“Dada
essa ambivalência crucial da atitude do
Ocidente em face do mundano, é fácil compreender que aquela urgente
autojustificação, caminho soteriológico próprio ao ocidental, ganhe
constantemente a forma de uma imersão nos negócios do mundo, conduzido pela
vontade de dominá-lo para purificá-lo.”
Capítulo III – O Antigo ‘Etos’
Cristão
p.
60: Resumo parcial da obra
“Nossa
tese é que: 1º, nesse ajustamento, que
submeteu o etos puritano ao domínio da racionalização instrumental, habita o
que há de problemático no relançamento moderno da ascese cristã; e que 2º,
nele e com ele (...) ocorreu uma fratura
decisiva no princípio mesmo da ascese cristã enquanto ideal soberano da
religiosidade ocidental, fratura essa que se confunde (...) com a dissipação do
élan formativo, da energia cultural do cristianismo, ao menos como força
autônoma (...) atuante no seio da cultura do Ocidente.”
p.
61-66: Gnosticismo
“Em
síntese, poderíamos afirmar que a desfiguração do cristianismo pela ascese
puritana consistiu na atrofia de um dos aspectos essenciais da ascese cristã: a sua capacidade de eticização da vida espiritual. Mas a
importância dessa mutilação só ressalta plenamente quando se visualiza com
clareza a substância exata da dimensão atrofiada; e o entendimento da eticidade
radical da consciência cristã só se perfaz quando se confronta o cristianismo
primitivo com sua vizinhança religiosa, e, muito especialmente, com a ideologia
que lhe legou o Leitmotiv da rejeição
do mundo: a gnose.”
“O
núcleo dos mitos gnósticos é a biografia da alma: sua origem no reino da luz
celeste, seu exílio funesto na terra e na prisão do corpo, sua libertação e seu
retorno final à pátria luminosa. A alma humana é uma ‘centelha’, filha de uma
luz primordial supraterrena – o Primeiro Homem. Essa luz caiu outrora em poder
das forças demoníacas das trevas, que, depois de despedaçá-la, se serviram dos
seus fragmentos para cimentar a matéria caótica com que construíram o nosso
mundo. Este não passa de um simulacro do claro universo divino, invejadíssimo
pelos seres da treva. A fim de impedir a fuga das almas-luz desse mau cosmos, e
a sua volta para o berço natal, os demônios do escuro tratam de narcotizá-las.
Alguns homens, porém, conseguem preservar a consciência do seu desterro e a
nostalgia do além. Comovida por seus sofrimentos, a divindade suprema acabou
por libertá-los, enviando à terra uma forma luminosa – seu filho – envolvido
numa aparência terrena, a fim de iludir os habitantes da sombra. Esse emissário
divino reúne as almas aspirantes à luz, desperta as adormecidas, revela-lhes o
conhecimento (gnosis) do destino da
alma, e lhes ensina as fórmulas sagradas de que precisarão para vencer, em sua
viagem de retorno, a severa vigilância das potências cósmicas. Quando todas as
almas-centelhas tiverem, depois da morte, subido ao céu e reintegrado o corpo
do Primeiro Homem, o cosmos remergulhará no caos e as trevas ficarão para
sempre entregues a si próprias.
Os
elementos definidores do credo gnóstico transparecem claramente do mito. A
separação radical – anti-helênica – entre a alma e o mundo terreno, a aparição
de um espírito (pneuma) completamente
estranho à alma natural, orgânica (psique),
que o gnosticismo condena por estar presa à matéria; e a depreciação não menos
extremada do cosmos. (...) O mundo é a negação do espírito, a paisagem do Mal;
carne, mundo, e diabo são três faces da conspiração contra o homem e sua pureza
originária. Por isso mesmo, enquanto habitante da terra, o homem não pode
redimir-se. A sua redenção transcende o seu poder, ela é necessariamente uma
mensagem do além, e o redimido é por definição um eleito, um chamado (...). A divinização do homem, conjugada com a
desvalorização do mundo, é a medula da gnose; medula que contém
virtualmente a antropolatria humanística e a legitimação do sectarismo dos
‘perfeitos’ e ‘esclarecidos’ de todo gênero, guias ‘naturais’ do resto dos
humanos.”
“Para
a gnose, a Revelação nos transmite o conhecimento (gnosis) de uma certeza: a de que nossa existência neste mundo é um
mau destino, uma fatalidade nociva; libertando-se do (...) exílio para a alma,
reencontramos nossa natureza nobre, não-terrena. Mas a crença cristã não é
conhecimento, e sim fé (pistis); e por isso não alude à certeza de uma
perfeição natural, (...) mas à esperança de um aperfeiçoamento histórico, a ser
conquistado, dia a dia, em nossa vida terrena.”
“Mas
a gnose, embora superada e corrigida pelo autêntico cristianismo, nem por isso
deixaria de acompanhar, como ‘desvio’ inscrito na natureza mesma da fé cristã,
o seu desenvolvimento histórico. (...) [A] crença escatológica na chegada (parousia) do Messias, no descobrir-se (apocalypsis) do Senhor, no fim dos
tempos, em suma: no advento do Reino de Deus. O sentimento da iminência dessa
ordem regeneradora (...) persegue o cristianismo desde as suas origens, e desde então se manifesta num tipo especial
de conformação social da idéia cristã – a seita.”
Três
tipos de conformação social autônoma da idéia cristã: a Igreja, a seita e a
mística. “A Igreja é o instituto de
salvação e de graça, apto a acolher massas e a adaptar-se ao mundo”, pelo fato
de o clero ser guardião dos sacramentos. “A seita
é a ‘livre reunião de cristãos rígidos e conscientes’, que se congregam como
pessoas regeneradas e se mantêm separados do mundo em pequenos grupos, na
preparação e na espera da iminência do reino de Deus. Enfim, a mística é redução à interioridade e à
imediatez das idéias consolidadas no culto e na doutrina, (...) transformando a
vida religiosa em processo íntimo e pessoal”.
“A
‘boa nova’ de Jesus olhava essencialmente para
a frente, para o Reino que se aproximava – e na tensão dessa expectativa
escatológica, propendia à formação sectária; mas a crença apostólica olhava
essencialmente para trás, para o
milagre da intervenção divina na pessoa e na vida de Jesus – e com essa
consciência da posse objetiva da
salvação, tendia à organização eclesiástica
da dispensa dos sacramentos, veículos desse tesouro soteriológico – inclusive
no grau de acomodação que ela supunha com o mundo social existente.”
“O
que é importante vincar (...) é que o sectarismo
messiânico foi, desde o início, uma virtualidade inerente ao cristianismo –
um desdobramento permanentemente possível da sua atuação.”
p.
82-83: Resumo do capítulo
“O
sentimento quiliástico da iminência
do Reino foi substituído, como húmus
psicológico da crença no Cristo, pela
ascese intramundana enquadrada pelo ideal da caridade ativa e da eticidade da
existência.” Com isso, o cristianismo restaurou o senso da dignidade do
agir e do engajar-se, em contraste com a apologia da vida contemplativa que
havia na moral aristotélica e no pensamento estóico.
Capítulo IV – O ‘Status’ Sociológico das Paidéias
p.
93-95: Sociologia do conhecimento, ideologia e utopia
“A
sociologia do conhecimento não nos instrui apenas sobre o status (...) da ética cristã, enquanto manifestação ideológica, no seio do processo social
global; ela também nos ajuda a compreender a configuração específica dos
modelos formativos em sua relação com a sociedade. Em poucas palavras, as duas
paidéias que consideramos até aqui – a ética cristã pré-moderna e o etos
clássico-heróico da Renascença – são impulsos ideológicos de natureza utópica; ambos se articulam a partir do
prospecto de uma comunidade ideal.”
“O
reconhecimento sociológico do papel das utopias remonta a Comte, para quem
todas as realizações humanas, das pequenas às maiores, supõem um modelo
interior, ‘sempre superior (...) à realidade que ele precede e prepara’, e para
quem cada grande mutação política se alimenta de uma utopia prévia, inspirada
ao ‘gênio estético’ da humanidade por um ‘instinto confuso da sua situação e de
suas necessidades’.”
p.
95-97: Mitos
“As
mitopoéticas individuais são tentativas de reencontrar o sentido da existência
fora da comunhão perdida; tentativas em que o mito, separado da sociedade, vai
cedendo às pressões do inconsciente, evoluindo para a projeção da libido do
indivíduo desintegrado.”
“As
culturas compactas viam na sociedade um micro-cosmos: um reflexo em menor
escala da ordem divina da physis. A cultura diferenciada da polis helênica, ao
contrário, verá na sociedade um macroanthropos – uma projeção da ordem do
espírito humano. A plena conscientização teórica dessa política antropomórfica
se encontra na República, ou seja, na mais ambiciosa resposta filosófica à
crise desintegradora da cultura grega”.
Roger
Bastide define a utopia como “sincretismo do mito e da História”.
“A
verdade é que a sociedade industrial regurgita de mitos degradados, de mitos
‘ideológicos’, no sentido marxista. Karl Polanyi apontou um dos mais
falaciosos: o mito do crescimento inconsciente como portador de panacéias para
os males da civilização. Desde Balzac ou Tocqueville a Freud ou Thomas Mann, o
olhar crítico denunciou a inconfessa volúpia mitológica do mui ‘cientificista’
século XIX (o cientificismo não sendo, aliás, senão a mitificação da ciência).”
Capítulo V – Metamorfose da
Consciência Cristã e do Ideal Heróico nos Tempos Modernos
p.
102: A soberba puritana
“O
que (...) é importante para o nosso exame é o apenas o fato de que a ‘superbia’ puritana, enquanto suporte
psicológico do ativismo moderno, parece ter quebrado – ao deslocar o
impulso eticizante e caritativo do cristianismo – a própria energia religiosa do espírito ocidental.”
“O
resultado última dessa neognose seiscentista, fundamento espiritual dos tempos
modernos, foi a irrupção no Ocidente de uma cultura destituída não da fé na
transcendência de Deus (...), mas sim do
apego a qualquer princípio ético transcendente: uma sociedade habitada por
um tipo humano sem participação autêntica
numa ordem moral transegológica; pois o reverso da auto-suficiência do
puritano é a personalidade puramente apetitiva e egoística do homem moderno e contemporâneo.”
A
psicologia racionalista de Hobbes é solidária da desorientação ética da cultura
moderna.
p.
109: A contribuição de racionalistas e empiristas para a sabotagem progressiva
de todos os modos de atuação social regidos por valores absolutos
“Racionalismo
seiscentista e empirismo éclairé –
Descartes e Hobbes, Locke e Hume – foram instrumentos da mesma e unitária
demolição iluminista dos resíduos da religiosidade ocidental desfigurada pela
gnose puritana – demolição cujos efeitos mergulham até hoje na maior
perplexidade.”
p.
114-115: O século XIX e a decadência da religiosidade
“Só no Oitocentos é que os impulsos
religiosos e, principalmente, soteriológicos, ou assumem uma coloração
nitidamente ‘ideológica’ no sentido pejorativo (...) ou se deslocam para o terreno das idéias profanas, de ambições
científicas, como os vários socialismos.”
“Com o rebaixamento final da religiosidade
confessa a pára-choque ou clorofórmio aplicado à exploração social, os
movimentos soteriológicos emigraram para a margem das filosofias secularizadas.
Aí, o utopismo socialista não tardará a ser suplantado pelo catastrofismo
messiânico de Marx, denunciador do ‘ópio do povo’ religioso.”
p.
117-118: Contraste entre o etos humanístico da Renascença e no séculos
subseqüentes
“[O]
ideal heróico da Renascença não era só estilização evasionista. Seu impulso
transfigurador não valia só como máscara nietzscheana das misérias da
existência, mas também como encarnação da megalopsiquia antiga, reencontrada
por uma síntese única de exaltação humanística e self-control cristão – síntese essa com que a Renascença madura
depurara o voluntarismo amoral da virtù
sem recair na prostração espiritual do ocaso do mundo gótico. Por isso é que o
ideal clássico-heróico pôde vigorar como energia educativa, como paidéia.
“Da
sua versão seiscentista (...) seria arriscado dizer o mesmo. Na educação do ‘honnête homme’, a
estilização heróica parece perder seu fundo ético (...). A ética humanista
que chega a 1800 já é apenas um fantasma: um pretexto literário para estudos
antiquários, antisseticamente empreendidos pelo século anti-heróico a prudência
e da pudicícia burguesas. Não um
humanismo de formação, mas sim um humanismo de consumo – a ex-paidéia de
consumo de uma cultura repressiva, enfim afirmada em seu poder. Nietzsche se
deu por ponto de honra o desmascaramento dessa farsa: a piedosa, inofensiva
educação ‘humanística.”
p.
120-121: Motivos do insucesso do etos humanista-heróico
“A
estreiteza de sua base social e o acanhamento ético de sua produção intelectual
permitem compreender porque o humanismo estético da segunda Renascença ficou
tão longe da penetração e do poder de galvanização pública da Reforma. (...) J.
Huizinga (...) denunciou no pensamento renascimental seu alheamento à vivência
altruística do senso de responsabilidade coletiva. (...) Do ponto de vista do
relançamento da ética social, o humanismo foi um período de imobilismo – imobilismo
de resto coincidente com a estagnação econômica que predominou nos séculos XIV
e XV. Ora, esse baixo índice de
‘existencialidade’ do etos heróico foi, certamente, a grande causa de sua
efemeridade.”
p.
122: Maneirismo e barroco
“Entretanto,
é no barroco que a erosão do ideal heróico e da sua linguagem – o estilo
clássico, avança de forma irreversível. Do ponto de vista da sua episteme
visual, a arte maneirista ainda partilha o solo renascentista; (...) por mais
que esmere em sabotar sua lógica interna, ele ainda respira a atmosfera da
Renascença; do ‘disegno’ antropocêntrico,
do espaço colocado sob a lei da figura; maneirismo e classicismo são
inimigos íntimos. Ora o barroco passará dessa ‘arte do homem’ (...) para uma arte do mundo.”
“A
episteme visual barroco não é, como a do bloco Renascença/maneirismo, uma visão
háptica, e sim óptica; nem foi à toa que essa visão ótica da arte do mundo encontrou seu ápice no pincel de
Velásquez, pintor-mor da pouco humanista Espanha. O espaço cósmico da pintura
barroco (...) está para o espaço antropocêntrico da Renascença e da maniera assim como a exaltação humanista
do espírito humano para o sóbrio cogito de Descartes, que nivela o homem à
extensão do cosmos ou ao universo impessoal da pensée. O chamado ‘classicismo’ do Seiscentos não é nenhuma exceção
a essa índole geral do barroco.”
p.
124: A ética seiscentista
“A
ética experimenta o mesmo declive dissociador. O livro de bom-viver clássico –
o Cortegiano de Castiglione –
comparte a crença humanista na excelência, na nobreza intrínseca do homem: mas
a etiqueta seiscentista já sabe que a elevação moral é um edifício superposto
aos impulsos naturais; o ‘discreto’ não se exprime; antes, se controla. O nobre já não é um aprimoramento do
natural, e sim a sua negação – freqüentemente, a sua máscara. A doutrina da
dissimulação do jesuíta Gracián, príncipe dos moralistas-professores de
maneiras, atrairá a atenção de Nietzsche. (...) A teoria da hipocrisia é uma
invenção da psicologia do Seiscentos.”
Capítulo VI – Genealogia da
Solidão
p.
139: Vulnerabilização das condutas não-instrumentais (em particular, as
religiosas) ante o impacto da racionalização
“Naturalmente,
não é à toa que nossa sumária evocação do enfraquecimento das condutas
não-instrumentais em termos de alteração dos papéis incide nos papéis prático-econômicos
e, em especial, no do empresário: pois o empresário, herói da economia política
até Schumpeter, é o tipo humano que ocupa a cena cultural deixava vazia pelo homo religiosus.”
p.
143-145: Consciência-interesse e reivindicação permanente
“Revitalizando
a vocação intramundana da religiosidade ocidental, o calvinismo estimulou
substancialmente os mores do
capitalismo; mas a mística do protestantismo liberal, largando, com a
visão-do-mundo tradicional e teocrática de Lutero, a subordinação da experiência
religiosa a um conteúdo transcendente, assimilou
a religiosidade moderna à estrutura psicológica da consciência-interesse,
desprovida de todo impulso de autoformação ética, de participação numa ordem
comportamental paradigmática. A partir da Revolução Industrial e da extensão
considerável da gama de possibilidades oferecidas ao indivíduo, essa estrutura
psicológica seria acicatada pelo ‘princípio da reivindicação permanente’. (...)
A cultura industrial cria reivindicações, tanto pela natureza da sua economia,
de produção ilimitada, quanto pelo ‘efeito de demonstração’ que o nível de vida
das classes superiores e das nações opulentas provoca nas camadas populares e
nos países menos ricos”.
“Enquanto ‘sistema secundário’ (Freyer), a cultura industrial (...) busca no demônio do progresso infinito e
da expansão sem limites a força de
implantação que os sistemas culturais tradicionais possuíam simplesmente em
virtude de que seu princípio formativo se baseava num amálgama de situações,
direitos e costumes preexistentes.”
p.
146-147: O romantismo
“Para
Mannheim, o romantismo, antítese da razão iluminista, foi uma estratégia de
resgate das atitudes e modos de vida de origem, em última análise, religiosa,
reprimidos pela marcha do racionalismo capitalista – mas uma rememoração do
‘irracional’ levada a efeito no plano da
reflexão. O romantismo não foi uma cultura tradicional, e sim um movimento
cultural tradicionalista. O sufixo
revela bem o lado programático, consciente e refletido de sua tentativa de
reviver – contra o mundo desenfeitiçado, dessacralizado dos tempos modernos,
abertamente exaltado pela Ilustração - o tradicional, apelidado de irracional.”
p.
154-155: Genealogia da solidão
“O
desdobramento da personalidade moderna, do antropos liberto da tradição comunitária,
corresponde a uma genealogia da solidão.
Nela, é possível discernir ao menos três grandes ‘gerações’: a da superbia puritana, a da subjetivação da
religiosidade, e a do homem da massa, sujeito passivo do consumo autoritário.”
“Essa
solidão é, para os advogados da cultura estabelecida, o preço do individualismo
(...). O isolamento seria o reverso da autovalorização do homem moderno, em sua
vocação de liberdade tanto política quanto social e cultural; e o lamento sobre
a comunhão perdida seria secreta nostalgia da opressão. No entanto, a tese é
para lá de discutível. Desde Tocqueville e Burckhardt temos consciência de que
o apogeu da solidão na sociedade de massa não coincide, de jeito algum, com a
vitória do individualismo, e sim com a maré invasora dos conformismos de todo
gênero, da coletivização negativa. O
homem-ilha do mundo moderno não é um indivíduo valorizado, nem auto-valorizado.”
Capítulo VII – Saudades do
Carnaval
p.
158: Cristianismo e valorização ontológica do indivíduo
“[O]
cristianismo (...) atribuiu sempre a maior importância à consciência
individual; mas isso representava uma
valorização da individualidade ética, não do fato ontológico da individualidade.
A consciência do indivíduo possui, para a intimidade com a angústia em que
repousa a genuína soteriologia cristã, um valor imenso; mas a realidade do indivíduo, não: pois sobre
ela pesa o terrível efeito do dogma da transcendência do Criador e da
contingência radical da sua criatura, efeito a cujo império somente o gnóstico,
acreditando-se parcela da divindade, escapava – mas escapava mediante a
deseticização da crença no Além.”
p.
162: A politização do socratismo
“Diante
dessa degenerescência moral e física, o entranhado apego de Platão à cidade se
converteu em motor da sua filosofia. O ensinamento não doutrinário de Sócrates
assinalara a autonomização da ética; a filosofia platônica transferirá o
impulso da retificação do agir para o plano diretamente político – o plano da
reforma global da sociedade através de um novo regime de governo.”
“Nessa
resoluta politização do socratismo (...) Platão conservou a medula do
racionalismo socrático, (...) a idéia de que a Arete é basicamente uma técnica
existencial racional. Mas o impacto da decadência de Atenas (...) dramatizou de tal modo a politização do
socratismo, que a sua investigação ética se tornou (...) um exercício de
caráter religioso.”
p.
167, 170: O elitismo de Platão
“A
elite governante da República é, do ponto de vista ético, virtuosa; mas a população
governada pode, no máximo, ser mantida numa medíocre boa conduta, insuflada
pela propaganda estatal de uma ‘religião das massas’ destinada a frear os
ímpetos individualísticos de uma humanidade inferior, dominada por paixões
apetitivas, e não pela purificante contemplação do Bem.”
“Racionalismo
para uns poucos, magia para as massas – Platão talvez tivesse gostado da frase
de Burckhardt. (...) [A] sua república ideal não parte do homem empírico;
nega-o, ou melhor, sujeita-o sem hesitação ao comando de uma aristocrática
seita puritana, em tudo e por tudo separada da existência ordinária.”
“[O]
eros platônico une tão-só os governantes, e não, como o futuro ágape cristão, a
sociedade inteira. (...) [O] pensamento regenerador de Platão, fundamentalmente
elitista, está em consonância com a
epistemologia aristocrática do mundo antigo. À aristocracia carismática dos
xamãs-filósofos incumbe a cura da polis e a salvaguarda da cultura helênica.”
p.
170, 173-174: Igualitarismo da Culpa cristão é cúmplice da crise da modernidade?
“Penetrado
do igualitarismo da Culpa, o ascetismo cristão baniu o sentimento individual de
participação na realidade divina. (...) Nisso,
o etos cristão foi (...) cúmplice objetivo
da desvalia do indivíduo experimentada pelo homem moderno, e intensificada
na sociedade de massa.”
“Não
convém esquecer que o cristianismo se formou e se impôs quando, nas mãos do
imperialismo romano, já se consumara a agonia da polis antiga, ferozmente
localista. Em matéria de universalismo
abstrato, o direito romano foi um precursor do ‘sistema secundário’; e a sua
universalidade está para o localismo da polis helênica assim como a
catolicidade do cristianismo para a índole tribal, gentílica, da velha religião
hebraica. Ora, a cultura cristã, cultura ‘global’, cresceu num universo
extremamente móvel. A fase decisiva de sua expansão, o século III, foi um
período de desintegração acelerada do Império; a sua época de maior fecundidade
cultural coincide, pelo menos inicialmente, com o tempo das contínuas invasões.”
“De
olhos postos na Jerusalém celeste, a fé cristã permanecia vaga e, portanto,
amplamente moldável, em relação à órbita do terreno (...). Desde a Idade Média,
a ‘flutuação’ da Igreja universal relativamente a qualquer particularização
político-social distingue a sociedade cristã da muçulmana. (...) [Nesta,] a
santificação do social atua como zelo conservador.”
“O
cristianismo aboliu o sentimento autenticamente trágico da vida, atributo
típico da mente clássica. (...) Baseado na idéia de uma divindade onipotente,
mas salvadora, a religião cristã
obscureceu a antiga consciência do sofrimento injusto, obra selvagem do
capricho ou vingança dos deuses.”
p.
176-178: O idiossincrático Shakespeare
“A
especialidade de Shakespeare está em situar a simpatia no infortúnio da
condição humana em si, mesmo levada ao limite da deficiência moral.”
“T.S.
Eliot afirmou certa vez que Shakespeare estava ‘andando em direção ao caos’;
seria mais exato dizer que sua obra nasceu no interregno entre a vitalidade do
etos cristão, liquidador da visão trágica, e as ulteriores escatologias racionalizadas”.
“Quando o recuo da moral cristã devolveu
ao Ocidente algo da consciência trágica da vida, o ‘desencantamento do mundo’
operado pela racionalização da cultura transformou a tragicidade em sabor
grotesco. O drama shakespeariano foi a primeira, insuplantada apreensão dessa
metamorfose.”
p.
179: Plasticidade do cristianismo
“[O]
cristianismo soube conviver com tradições político-religiosas que atenuavam
substancialmente o sentimento da desimportância do indivíduo. (...) [O] paradigma
da megalopsiquia renascentista reúne a têmpera ética do altruísmo cristão ao
senso de excepcionalidade do indivíduo superior. Nesse sentido, do humanismo renascentista defluiu um
elitismo cristão.”
p.
182-183: Spinoza e Leibniz
O
fundo elitista da reflexão de Spinoza. “A Ética
não tem esse título por acaso; a metafísica spinozana culmina numa teoria
da beatitude. E a felicidade está, para o neo-estóico Spinoza, no júbilo que
proporciona a inteligência do real. Sócrates acreditara que o compreender leva
ao agir bem; Spinoza crê que ele deságua no sentir-se
bem. Ora, essa capacidade intelectual em que repousa a felicidade, somente alguns espíritos a possuem.
(...) A intuição mística, a visão panteística, é apanágio das almas fortes”
A
ética de Leibniz “é a do tradicionalismo cristão, para o qual não basta
compreender a realidade: deve-se também aceitá-la de bom coração, como obra de
Deus que é. O ‘melhor dos mundos possíveis’ não pede só compreensão: pede
afeto. (...) Mas as mônadas ativas não são entidades de elite; são democráticos
pontos de vista sobre o cosmos, partes igualitárias na partitura da polifonia
universal. Leibniz não só reantropocentriza a metafísica (...) como deselitiza
a moral barroca; ele aproxima a ética filosófica, com o mesmo gesto, do
anti-elitismo cristão e do igualitarismo moderno. Foi o cortesão Leibniz, e não
o republicano Spinoza, que prefigurou o democratismo ético da modernidade.”
p.
183: Goethe, o último renascentista
“O
‘renascentista’ Goethe, que tomava Spinoza por Giordano Bruno, fundiu a
monadologia de Leibniz com o imanentismo da Ética: seu ego cósmico é uma ativa
mônada panteísta. Mas o ego faústico de Weimar é, também, a (...) personalidade
superior e selvagem, que a racionalização iluminista sentira às vezes (...)
irromper sob o seu abstrato igualitarismo. No culto mumificante do ‘favorito
dos deuses’, o espírito vitoriano tentou conter e aprisionar a lembrança fatal
do sentimento da individualidade carismática, fonte de liberdade e de cultura.
(...) Goethe, (...) como a própria Renascença, fora capaz de aprimorar sua
concepção dos instintos vitais pelo metro da Bildung que educa sem hipocrisia e civiliza sem supérflua
repressão.”
p.
185-186, 191-192: Cristianismo e carnaval
“Mas
por que a depreciação antielitista do ego – o igualitarismo da Culpa, a
ontologia anti-individualista do cristianismo – permaneceu, enquanto matriz de
uma moral ressentida, um simples
potencial? Por que a experiência
cristã (...) da desimportância do
indivíduo não assumiu a forma virulenta do ressentimento moderno? (...) [A]
resposta se encontra na estrutura da consciência cultural de tipo tradicional
(...) [que era] dualista: ela justapunha ao universo litúrgico oficial, ligado
à Igreja e ao Estado, o mundo livre da festa popular de inspiração
carnavalesca. Até o século XVII, o
universo religioso do Ocidente obedeceu a um regime de alternância: de um
lado, reinava a forma sublimada de religiosidade (...); de outro lado, uma
forma subversiva (mas autorizada e
institucionalizada) de celebração (...). Na
festa orgiástica – saturnais, carnaval -, a sociedade viva o reconhecimento da sua própria contestação.”
“A
longa alternância de sublimação ética e válvula orgiástica, com que o
cristianismo antigo temperou a adulteração do princípio da caridade em penoso
acatamento de dominações repressivas, permitiu que a ascese cristã
transcendesse o ressentimento. (...) O tremendo elitismo ético do cristianismo – o árduo requisito da salvação pelo viver-em-angústia
– se combinava com uma sabedoria arcaica: (...) inscrever em seu desempenho a
denúncia de sua própria repressividade e o alívio periódico das suas cargas.”
p.
194-196: Nietzsche e o Cristianismo
“Nietzsche
se mostra inclusive – e aqui talvez situe a fronteira da sua compreensão, não
já do cristianismo, mas do fenômeno religioso em geral – disposto a admitir que
certa dose de moralidade sã possa coexistir com as alienações religiosas.”
“Entretanto,
no interregno moral (...) da ‘morte de Deus’, torna-se possível – e louvável –
a prática de um experimentalismo
ético. O tema do super-homem não tardará a conferir a esse cheque em branco à
disponibilidade relativista o sabor de um absoluto – o absoluto de uma nova
mensagem de redenção.”
“Vê-se,
portanto, que o autor de Zaratustra é
capaz de nuançar seu ataque à religião com agudas observações sobre aspectos
não (ou menos) negativos do seu fundo psicológico e do seu desenvolvimento
histórico. Uma coisa, porém, Nietzsche não aceita: o valor da experiência
religiosa do transcendente como matriz de autênticas paidéias, de morais
formativas do homem e da sociedade. (...) Nietzsche despreza a funcionalidade ético-social da crença no
transcendente. É certo que a conclamação do super-homem alude a uma espécie de
transcendência sem transcendente: o transcender-se da humanidade para que ela
seja capaz de assumir plenamente as conseqüências positivas da ‘morte de Deus’;
pois a queda de Deus não é senão a premissa de uma livre, infinita e plenamente
responsável auto-superação do homem.
A humanidade superior, liberta da alienação religiosa, nunca estará ‘pronta’;
será sempre uma conquista.”
p.
202: Heidegger mal-interpretado pelos frankfurtianos
“Heidegger
converteu o próprio núcleo da filosofia,
tornada interrogação sobre o Ser e desdobrada em ‘questão da técnica’, em crítica da cultura ocidental. Com
isso, Heidegger ampliou consideravelmente o tema do confronto crítico da
cultura/experiência religiosa. É com pesar que desistimos, nestas páginas, de
abordar essa ampliação. De passagem, notemos tão-somente que não admira que as
interpretações mais engenhosamente injustas de sua obra partam – como a Negative Dialektik de Th. W. Adorno –
de marxistas neo-hegelianos radicalmente surdos à problemática não só do
divino, mas até do sacro.”
p.
204: Crítica ao super-homem de Nietzsche
“O
advento do super-homem é concebido em termos da agressividade vontade-de-poder.
Esse antropos ideal é um prodígio de auto-estima e segurança; eticamente,
porém, trata-se de um anão: é um avatar do homem-lobo de Hobbes, que funda os
seus valores numa antropologia diretamente derivada de Darwin.”
p.
207-208: A esperança está na cultura hippie?
“Em
alguns aspectos, o proto-etos ‘hippie’
representa uma tentativa interessantíssima (não importa quanto
inconsciente) de recuperar a
megalopsiquia do ideal heróico – a síntese de personalidade e
magnanimidade, de valorização do indivíduo e de consciência moral. O modelo
existencial que inspira as comunidades hippies
abriga potencialmente um misto de auto-afirmação renascentista, de
valorização oriental da existência e de eticidade cristã. Por mais hesitante e
impuro que ainda seja esse movimento, por mais difícil que ainda seja separar,
dentro dele, o recurso ao evasionismo psiquedélico da contestação criador, o
fato é que ele constitui a primeira articulação prática de uma alternativa para
o deserto de valores e a existência mecânica do homem moderno. O que está em
esboço é uma revolução cultural de enorme importância – e que por isso mesmo
foge à compreensão tanto dos que depositam suas esperanças de vitória sobre os
males do sistema secundário na resistência
dispersa dos tradicionalismos e localismos – na mera guerrilha cultural dos ‘partidários
do ontem’ (Freyer) – quanto, aos que (como a maioria parte dos marxistas)
permanecem hipnotizados pelo ingênuo utopismo da técnica e pelo mito
soteriológico da revolução político-social, obstinando-se em ignorar o estado
patológico do conjunto da cultura
moderna (liberal ou socialista).
Todavia,
“não só a consistência ideológica, mas até o sentido comunitário e o exercício
de autocontrole da personalidade ainda estão gritantemente ausentes de muitas
dessas experiências de ruptura. O fascínio maléfico da droga – (...) que só faz
levar ao paroxismo a solidão do homem moderno – ainda disputa os outsiders à
recriação do estilo de existência. De maneira geral, a práxis de contestação existencial (não a da contestação
política, ideologicamente anacrônica – leninismo requentado, trotskismo
alucinado, maoísmo estratosférico e infantilismo geral – que predominou em maio
de 1968) oscila perigosamente entre o evasionismo determinado da repressão contemporânea, que é tomar distância para
a construção de melhores modos de vida, e o escapismo absoluto da renúncia total ao aperfeiçoamento de si e do mundo.”
p.
211: Eros e Alto Renascimento
“O reconhecimento de eros surgia como forma
adequadíssima de uma revalorização da individualidade ontológica, isto é,
daquilo que, precisamente, o igualitarismo da culpa havia seqüestrado.”
p.
216: O lado positivo da autonomia da esfera política
“[U]ma
das características estruturais do processo social contemporâneo nas sociedades
desenvolvidas (...) é a (re) autonomização
da esfera política; isso é também de muito bom augúrio para as círculos
resolvidos a barrar na prática o avanço das tendências negativas da cultura
moderna. A urgência de uma aliança entre crítica da cultura e a participação
política fala por si mesma.”
p.
220-221: Epílogo inconclusivo
“Krisis quer dizer separação. Diante de
nossos olhos, a cultura moderna está se destacando de si própria. Refletir
sobre isso já é uma viagem atordoante (...). No instante em que ela se
mundializa, que sorte tocará à cultura do Ocidente em crise e (talvez) mutação?
Aqui o pensamento recua na ponta dos pés; um sóbrio instinto lhe murmura que só
o exame crítico do passado consola dessa incerteza invencível. (...) Somente debruçado deste estudo – que não é só
mental – o homem contemporâneo chegará, ou não, a compor um dia, talvez sem
sentir, o epitáfio da moléstia dos tempos modernos. No entanto, talvez sejamos
realmente loucos.”
Capítulo VIII - Situação do
Brasil na crise da cultura
p.
228-229: a contribuição de Mário Vieira de Mello e seus limites
“Mário
Vieira de Mello distingue dois grandes elementos na paidéia das elites nacionais:
primeiro, a educação jesuítica; segundo, a influência do romantismo francês.
(...) M. Vieira de Mello deplora o irracionalismo da volubilidade romântica,
responsabilizando-a pela falta de princípios éticos transcendentais na formação
das elites brasileiras. (...) Para o autor (...), romantismo não é só um
movimento artístico-literário, mas antes uma tendência cultural, análogo às
grandes correntes configuradoras do Ocidente moderno: o esteticismo da Renascença,
a religiosidade da Reforma, o racionalismo cartesiano. O romantismo francês,
modelo dos romantismos latinos, reata com a primeira dessas correntes, em
reação contra a última.”
“Não
desejamos refutar a idéia de que a tônica da produção intelectual brasileira é,
desde a Independência, um espírito culturalmente esteticista (...); ao
contrário, tendemos a acreditar, instruídos por radiografias antropológicas do
porte de Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil, na concordância profunda
entre nossos camaleonismo ideológico e as nossas origens socioculturais. Mas
isto não nos impede de resistir à imagem puramente negativa (...) desse
espírito esteticista (...). M. Vieira de Mello poderia ter levado em conta que
o camaleonismo da intelligentsia brasileira, exercendo-se em perpétua imitação
de paradigmas europeus, revestiu-se várias vezes de um conteúdo parodístico; e que esse (...) resultou,
nesses casos, em iluminação crítica da situação periférica da sociedade
latino-americana em relação à marcha da cultura ocidental. Machado de Assis
(...) é um expoente peregrino desse espírito de paródia com que a cultura
brasileira caricaturou os valores ocidentais, ao mesmo tempo em que punha a nu
suas próprias taras. E o modernismo não é (...) apenas um regionalismo estético
negativo; é uma valiosa conscientização
antropofágica da secreta essência parodística de nossa cultura oficial”.
p.
231: O substrato religioso brasileiro
“O
verdadeiro substrato religioso do povo brasileiro é conhecimento orgiástico. O
catolicismo das classes altas – além de ser um catolicismo avacalhado –
confirma constantemente aquelas afinidades apontadas por Weber entre a confissão
romana e a moral mágica (...). Na religião popular, dominam os ritos de
possessão, em forma ‘selvagem’ (pura no candomblé baiano, impura na macumba
meridional) ou ‘decorosa’ (espiritismo).”
p.
232-235: O espiritismo como meio termo entre a ética rigorista e a moral mágica
“[O]
complexo espírita, que soma milhões de adeptos, é a religião de maior
crescimento no país.”
“Religião
confessional e soteriológica, o espiritismo problematiza a vida corrente,
instaurando entre o mundo profano e os valores da crença uma tensão que
estimula as disposições de ajustar o primeiro aos segundos. Nessa inclinação
retificadora, o espiritismo abriga impulsos messiânicos. (...) Mas é um
quiliasmo bem pouco aguerrido (...), sem cristalizações agressivas na forma de
reivindicações sociais concretas.”
“Os
espíritas combinam a fé na metempsicose (Karma) com a crença na liberdade de
opção do indivíduo; ao nível da consciência popular, o espiritismo interpreta
os males da existência presente como efeitos de erros passados, vícios ‘da
outra encarnação’ e, ao mesmo tempo,
proporciona ao fiel a sensação de que uma reforma espiritual, trazendo-lhe a
felicidade, está ao seu alcance.”
“Por
isso mesmo, a religiosidade mediúnica, reforçada pela caridade ativa (...),
atua como resposta à desorientação trazida pelos períodos de bruscas mudanças
sociais e culturais. (...) O otimismo do Karma serve de horizonte compensatório
para as frustrações ou carências nas camadas populares e pequeno-burguesas, ‘perturbadas’
– para usar um termo bem espírita – pela dinâmica desagregadora da modernização
social. (...) Comparado ao candomblé e ao catolicismo ‘mágico’, expiatório, o
espiritismo é uma ética rigorista; comparado com o puritanismo cristão, portador
histórico da racionalização da cultura, trata-se de uma soteriologia amável,
aliviadora e desangustiante”
p.
236: A resistência de válvulas não-racionalizadas no Brasil
“No
Brasil, a fraca implantação de éticas rigoristas ortodoxas atenuou significativamente
os resultados repressivos, antielitistas (...) do cristianismo de sublimação. A
vitalidade do comportamento orgiástico nos assegurou válvulas a um só tempo
democráticas e individualistas, libertárias e elitistas. (...) O Brasil se
adentrou na cultura moderna vacinado contra o seu anticarnavalismo (...). Pouco
inclinado ao construtivismo social das seitas ascéticas e ao revolucionarismo
das seitas quiliásticas, o brasileiro cultiva, em compensação, toda uma gama de
evasões libertárias. Ele é, por isso mesmo, a um só tempo conservador e
anarquista, conformista e insubmisso.”
p.
239-240, 242-243: Suspensão de juízo sobre ditadura, mas alerta quanto à
polarização ideológica
“O
projeto de regimes fortes, de ascendência militar, (...) visa a uma aceleração
decisiva do desenvolvimento econômico, eliminando a distância entre essas
nações e o mundo desenvolvido. (...) Não compete a este ensaio pronunciar-se
sobre a viabilidade ou não desse projeto político-social. O exemplo da Alemanha
bismarckiana ou do Japão da mesma época prova, porém, que ‘revoluções’ no
sentido (...) em que falamos, por exemplo, de Revolução Industrial (...) podem
efetuar-se sem prévia ou simultânea ocorrência de uma revolução (...) no
sentido aristotélico, isto é, político
(...). Os dois casos históricos de revolução conservadora são igualmente
probantes no terreno da modernização social. (...) O hábito de considerar todos
os regimes conservadores como zeladores imobilistas de um simples congelamento
da sociedade não resiste ao confronto da experiência.”
“Tanto
o moralismo agressivo de certa classe média conservadora quanto a austeridade
propugnada por alguns programas de esquerda abrigam legitimações
comportamentais muito pouco tolerantes em relação ao espírito anárquico,
libertino e libertário do nosso etos clássico. Será mesmo que as duas
estratégicas antagônicas que, com o eclipse do liberalismo político e o
naufrágio do populismo, se disputam o amanhã brasileiro: a revolução pelo alto,
e a revolução maoísta – confluiriam numa afinidade fundamental com a moral
repreensiva da velha cultura industrial?”
“A
verdadeira maldição do subdesenvolvimento é a indigência do espírito.”
“Na realidade, porém, o perigo que se nos
depara é bem menor – e mais sutil. É apenas o risco de que a estreiteza de
vistas de certa classe média, atiçada por um ufanismo tacanho, viesse a jogar a
cultura brasileira num sensível descompasso em relação aos impulsos da
renovação cultural do Ocidente (...). Em seu cosmopolitismo alienado, nossas
antigas elites souberam ao menos conservar-se permeáveis à evolução cultural
ocidental. Seria triste que o Brasil (...) abdicasse desse passado no exato
instante em que o futuro lhe confere tanto sentido. (...) [S]ó nos restaria
rezar para que o gênio da avacalhação – esse saci verde-amarelo – nos restituísse
a nós mesmos, à nossa autêntica ‘inautenticidade’ ética.”
Capítulo IX – Sociologia e
Crítica dos Valores
p.
245: Justificativa do método da exposição precedente
“Não
será (...) arbitrário empregar a indagação sociológica numa discussão de
valores? Não é este procedimento incompatível com a imparcialidade da ciência?
Ou será que a objetividade sociológica, sem perder o título de saber
científico, pode legitimamente desdobrar-se em prelúdio analítico à
controvérsia dos valores?”
p.
252-254: Gadamer e Habermas
“Com
a hermenêutica, a teoria da intersubjetividade não só conserva seu foco
lingüístico, como amplia – por meio da problemática tradição-tradução – a consciência
da necessária interação de todo
comunicar lingüístico. Além disso, mantém vivo o reconhecimento de que os jogos
lingüísticos são ‘formas de vida’ tanto quanto sistemas simbólicos. Logo,
enquanto estágio mais completo da teoria da intersubjetividade, a hermenêutica
concretiza a compreensão do significado do subjetivo do agir social mediante
uma correta interpretação das experiências de estabelecimento ou destruição do
consenso, das quais derivam a permanência e a mudança das normas institucionais
de uma sociedade.”
“O
único defeito de que Habermas acusa a hermenêutica de Gadamer é o de não
registrar a função ideológica da linguagem. (...) Por trás dos jogos
lingüísticos em que se perfaz a interação dos socii, atuam as contraintes do trabalho e da dominação; e ‘a
linguagem é também meio de domínio e
poder social’.”
A
solução habermasiana para este problema é a psicanálise, “hermenêutica da
repressão”, capaz de identificar o inconsciente na linguagem. “Mas uma teoria da intersubjetividade que se
dá como psicossociologia da repressão é, automaticamente, uma crítica de
valores.”
p.
260: Conclusão
“À
perspectiva de uma sociologia como ‘teoria crítica do presente’ (Habermas)
muitos sociólogos reagem negativamente. Há, porém, reações e reações”. A que
merece consideração é aquela que alega a neutralidade axiológica (Wertfreiheit)
“precisamente para defender essa dignidade [reflexiva da análise sociológica]
do assalto escuso da propaganda ideológica e, em especial, do mito da ciência-panacéia
para os males do mundo.” Sendo assim, “a verdadeira conversão da sociologia em
teoria crítica exige não só o respeito como a assimilação desses escrúpulos;
pois só a resoluta preservação da estrita autonomia do pensamento científico o
qualifica para crítica axiológica. Mas a autonomia das ciências sociais não
significa isolamento ante os problemas da sociedade e da cultura (...). Hoje, a
isenção perante os valores, que uma vez fora reflexão crítica, não passa de
mutilação do olhar científico e redução do âmbito da sua objetividade.”