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29 março 2013

Fichamento - Saudades do Carnaval (Merquior)



SAUDADES DO CARNAVAL: INTRODUÇÃO À CRISE DA CULTURA 
(José Guilherme Merquior, 1972)

Roteiro da nossa questão

p. 11-12: Introdução
A cultura ocidental moderna atravessa uma tríplice e profunda crise: da sociedade (falta de coesão entre os grupos sociais e isolamento do indíviduo), da espécie (modificações impostas pela técnica afetaram o próprio equilíbrio biológico do ser humano e do seu habitat) e do espírito (intelligentsia e juventude crescentemente descontentes em relação ao quadro de valores, direitos e deveres da civilização “prometéica”, i.e., da produção em série e do consumo de massa).
“É natural que a moléstia da cultura se manifeste como hiato no poder de auto-cultivo do homem e apareça como carência de ideais formativos.
Estas páginas desejam abordam o problema da cultura precisamente (...) pelo ângulo dos ideais educativos vivenciados, perdidos ou ensaiados pelo etos ocidental. (...) Nosso objetivo consiste em indicar (...) as linhas mestras do destino das paidéias no contexto racionalizado da cultura moderna.”

Capítulo I – Formação da Paidéia Humanista

p. 18: O conceito de humanismo
“O humanismo possuía pelo menos uma preocupação genuinamente filosófica, continuamente avivada pelas cátedras de moral: a discussão do propósito da vida humana e do lugar do homem no universo. Como os seus queridos antigos, os humanistas acreditavam que as ‘humanidades’ eram o equipamento intelectual digno do homem bem formado, do ser humano capaz de auto-realização; e esse pressuposto já indica que o cultivo das humanidades era naturalmente acompanhado pelo culto do homem.”

p. 22-23: Humanismo vs. ciência natural
“Historiadores da ciência (...) registraram a alergia (...) do humanismo à pesquisa exata; e essa é, de fato, a verdadeira separação: entre humanismo e ciência moderna, e não, como se quis fazer crer, entre humanismo e ‘ciência’ (por oposição a humanidades) tout court. Enquanto o ideal da ciência não se converteu ao módulo galileano, entre humanismo e ciência não houve oposição essencial. (...) Se é verdade que, ordinariamente, a especulação humanista, mais voltada para a sabedoria do que para o saber, para a sophia do que para a mathesis, tende a encarar toda ciência como pura matéria-prima de uma crítica axiológica, de uma discussão moral, a própria convicção ética central do humanismo – o tema da excelência do homem – atuou como fermento para a investigação objetiva do real, na medida em que aquela mesma curiosidade pela nostra res, mola da antropologia humanista, pressupunha necessariamente a extensão da análise científica ao domínio psicossociológico.”
“[Em] sua condição de afluente da razão dialética e tópica, ou do discurso imagé, o humanismo partilhava da inadequação de todo o pensamento medieval e renascentista ao substrato epistemológico da ciência moderna. O núcleo da ciência moderna é uma teoria matemática da experiência, uma síntese de orientação empírica e autonomia da razão calculante (...). A mensuração e a redução matemática das qualidades sensíveis são a lei da ciência moderna.”

p. 30: O ideal heróico
“O eixo da autoconsciência renascentista, desse sentimento que tiveram os humanistas do valor e da originalidade da sua época, foi o culto da excelência do homem, fonte do impulso de idealização da humanidade. Nessa antropolatria é que estava a motivação profunda do amor antiquário à cultura clássica, e nesse ideal heróico de divinização do antropos é que se concentra a paidéia renascentista, a energia anagógica e educativa do Renascimento.”

p. 33-34: Resumo do capítulo
“Depois da ruína dos ideais formativos da polis antiga, o aparecimento do etos heróico no humanismo renascentista constituiu a primeira paidéia profana (mas nem por isso irreligiosa) do Ocidente, o primeiro modelo antropocêntrico de formação da personalidade do caráter. Elevando o culto da virtù a paradigma de uma espiritualidade a um só tempo autodesenvolvida e eticamente aprimorada, consciente da própria grandeza e atenta aos valores comunitários, o humanismo clássico proporcionou à Europa uma combinação inédita do senso aristocrático da individualidade de elite com a consciência moral cristã. A fênix da paidéia antiga, da educação serenamente orgulhosa do homem que se forma livremente, renasceu em pleno anelo de repurificação do cristianismo.”
“[No] entanto, a paidéia do humanismo heróico se alimentou desde cedo de um sentimento bem pouco cristão: o sentimento de valorização ontológica do ser humano, o reconhecimento elitista da personalidade de eleição. O que a paidéia humanista pedia ao homem, ao tipo humano superior, é que ele liberasse a excelência contida em sua própria natureza; que atualizasse a sua preciosa virtualidade. A elevação heróica repousava na consciência de uma nobreza natural – de um aristocratismo ontológico. O humanismo poderia ter assinado aquela profunda sentença de Ortega y Gasset: ‘herói é quem quer ser o que é.’”

Capítulo II – Racionalização da Cultura e Religiosidade Moderna

p. 40-42: Racionalização da vida
“Com efeito, o lançamento do processo de racionalização é fenômeno do século XVII; a história da cultura não hesita em atribuir-lhe precisamente o papel de elemento definidor dos ‘tempos modernos’, responsável, em última análise, pela cesura que separa o bloco pós-Antiguidade (Idade Média + Renascença) da Idade Moderna propriamente dita”
“[O] processo de racionalização não ‘tomou de assalto’ as várias esferas institucionais, submetendo-se súbita e abertamente ao império do agir instrumental; em vez disso, a racionalização contaminou lentamente as esferas institucionais do âmbito ‘interativo’ (Habermas), minando desde dentro a velha observância dos modos de ação não-instrumental.”
“[A] ascese intramundana é uma ética religiosa; logo, um modo de ação social orientado pela crença em valores absolutos. (...) [Ela] exibe, como Weber mostrou no seu clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, afinidades eletivas com a organização da existência e das relações sociais operada pela economia capitalista a partir do século XVII. Essa espécie de organização da vida e da sociedade é, desde então, o suporte da racionalização, ou seja, da supremacia do agir instrumental no conjunto das esferas institucionais.”
Uma modalidade de ação social animada pela crença em valores absolutos gerou, desta forma, o império da modalidade ação social dominada por critérios instrumentais

p. 51-54: Ascese intramundana
“Em que reside o caráter particular da religiosidade ocidental? A emenda do Fausto ao Gênese é uma resposta epigramática a essa pergunta; pois a religião do Ocidente parece uma confirmação incessante de que ‘no princípio era a Ação’.”
“[O] ascetismo intramundano é, antes de tudo, um dos vários ‘caminhos’ soteriológicos, uma das várias estradas que levam à salvação. Segundo [Weber], duas são as vias básicas do êxtase soteriológico: a experiência da possessão (...) e o treino metódico da estrutura global da personalidade, que repousa numa interiorização e numa intensificação crônica do sentimento religioso.”
“[As] chamadas ‘grandes civilizações’ religiosas de fundo salvacionista (o taoísmo, o ‘dharma’ hindu, o budismo, o zoroastrismo, o profetismo hebreu, o cristianismo e o Islão) optaram por estratégias de reestruturação da personalidade.”
“[As] técnicas de aperfeiçoamento da personalidade (...) constituem éticas rigoristas, intimamente associadas às imagens de uma ordem eterna e de uma divindade ética brandidas pelo profetismo. (...) Essas práticas aperfeiçoadoras de reestruturação da personalidade exigem, naturalmente, uma ruptura com o habitus da vida ‘natural’.”
A ascese é a experiência de sentir-se instrumento de Deus.
“O núcleo filosófico da ascese intramundana enquanto eixo da religiosidade ocidental é o conceito radical da transcendência divina. Para o asiático, o mundo e a essência da realidade são consubstanciais: desde sempre, o universo ofereceu-se ao homem, eterno e necessário, senão em sua aparência, ao menos em sua substância. Para o judeu-cristão, porém, o mundo é um paradoxo invencível, porque é a criação inessencial e imperfeita de um Deus perfeito, onipotente e radicalmente estranho à sua criatura.”
“Dada essa ambivalência crucial da atitude do Ocidente em face do mundano, é fácil compreender que aquela urgente autojustificação, caminho soteriológico próprio ao ocidental, ganhe constantemente a forma de uma imersão nos negócios do mundo, conduzido pela vontade de dominá-lo para purificá-lo.”

Capítulo III – O Antigo ‘Etos’ Cristão

p. 60: Resumo parcial da obra
“Nossa tese é que: 1º, nesse ajustamento, que submeteu o etos puritano ao domínio da racionalização instrumental, habita o que há de problemático no relançamento moderno da ascese cristã; e que 2º, nele e com ele (...) ocorreu uma fratura decisiva no princípio mesmo da ascese cristã enquanto ideal soberano da religiosidade ocidental, fratura essa que se confunde (...) com a dissipação do élan formativo, da energia cultural do cristianismo, ao menos como força autônoma (...) atuante no seio da cultura do Ocidente.”

p. 61-66: Gnosticismo
“Em síntese, poderíamos afirmar que a desfiguração do cristianismo pela ascese puritana consistiu na atrofia de um dos aspectos essenciais da ascese cristã: a sua capacidade de eticização da vida espiritual. Mas a importância dessa mutilação só ressalta plenamente quando se visualiza com clareza a substância exata da dimensão atrofiada; e o entendimento da eticidade radical da consciência cristã só se perfaz quando se confronta o cristianismo primitivo com sua vizinhança religiosa, e, muito especialmente, com a ideologia que lhe legou o Leitmotiv da rejeição do mundo: a gnose.”
“O núcleo dos mitos gnósticos é a biografia da alma: sua origem no reino da luz celeste, seu exílio funesto na terra e na prisão do corpo, sua libertação e seu retorno final à pátria luminosa. A alma humana é uma ‘centelha’, filha de uma luz primordial supraterrena – o Primeiro Homem. Essa luz caiu outrora em poder das forças demoníacas das trevas, que, depois de despedaçá-la, se serviram dos seus fragmentos para cimentar a matéria caótica com que construíram o nosso mundo. Este não passa de um simulacro do claro universo divino, invejadíssimo pelos seres da treva. A fim de impedir a fuga das almas-luz desse mau cosmos, e a sua volta para o berço natal, os demônios do escuro tratam de narcotizá-las. Alguns homens, porém, conseguem preservar a consciência do seu desterro e a nostalgia do além. Comovida por seus sofrimentos, a divindade suprema acabou por libertá-los, enviando à terra uma forma luminosa – seu filho – envolvido numa aparência terrena, a fim de iludir os habitantes da sombra. Esse emissário divino reúne as almas aspirantes à luz, desperta as adormecidas, revela-lhes o conhecimento (gnosis) do destino da alma, e lhes ensina as fórmulas sagradas de que precisarão para vencer, em sua viagem de retorno, a severa vigilância das potências cósmicas. Quando todas as almas-centelhas tiverem, depois da morte, subido ao céu e reintegrado o corpo do Primeiro Homem, o cosmos remergulhará no caos e as trevas ficarão para sempre entregues a si próprias.
Os elementos definidores do credo gnóstico transparecem claramente do mito. A separação radical – anti-helênica – entre a alma e o mundo terreno, a aparição de um espírito (pneuma) completamente estranho à alma natural, orgânica (psique), que o gnosticismo condena por estar presa à matéria; e a depreciação não menos extremada do cosmos. (...) O mundo é a negação do espírito, a paisagem do Mal; carne, mundo, e diabo são três faces da conspiração contra o homem e sua pureza originária. Por isso mesmo, enquanto habitante da terra, o homem não pode redimir-se. A sua redenção transcende o seu poder, ela é necessariamente uma mensagem do além, e o redimido é por definição um eleito, um chamado (...). A divinização do homem, conjugada com a desvalorização do mundo, é a medula da gnose; medula que contém virtualmente a antropolatria humanística e a legitimação do sectarismo dos ‘perfeitos’ e ‘esclarecidos’ de todo gênero, guias ‘naturais’ do resto dos humanos.”
“Para a gnose, a Revelação nos transmite o conhecimento (gnosis) de uma certeza: a de que nossa existência neste mundo é um mau destino, uma fatalidade nociva; libertando-se do (...) exílio para a alma, reencontramos nossa natureza nobre, não-terrena. Mas a crença cristã não é conhecimento, e sim fé (pistis); e por isso não alude à certeza de uma perfeição natural, (...) mas à esperança de um aperfeiçoamento histórico, a ser conquistado, dia a dia, em nossa vida terrena.”
“Mas a gnose, embora superada e corrigida pelo autêntico cristianismo, nem por isso deixaria de acompanhar, como ‘desvio’ inscrito na natureza mesma da fé cristã, o seu desenvolvimento histórico. (...) [A] crença escatológica na chegada (parousia) do Messias, no descobrir-se (apocalypsis) do Senhor, no fim dos tempos, em suma: no advento do Reino de Deus. O sentimento da iminência dessa ordem regeneradora (...) persegue o cristianismo desde as suas origens, e desde então se manifesta num tipo especial de conformação social da idéia cristã – a seita.”
Três tipos de conformação social autônoma da idéia cristã: a Igreja, a seita e a mística. “A Igreja é o instituto de salvação e de graça, apto a acolher massas e a adaptar-se ao mundo”, pelo fato de o clero ser guardião dos sacramentos. “A seita é a ‘livre reunião de cristãos rígidos e conscientes’, que se congregam como pessoas regeneradas e se mantêm separados do mundo em pequenos grupos, na preparação e na espera da iminência do reino de Deus. Enfim, a mística é redução à interioridade e à imediatez das idéias consolidadas no culto e na doutrina, (...) transformando a vida religiosa em processo íntimo e pessoal”.
“A ‘boa nova’ de Jesus olhava essencialmente para a frente, para o Reino que se aproximava – e na tensão dessa expectativa escatológica, propendia à formação sectária; mas a crença apostólica olhava essencialmente para trás, para o milagre da intervenção divina na pessoa e na vida de Jesus – e com essa consciência da posse objetiva da salvação, tendia à organização eclesiástica da dispensa dos sacramentos, veículos desse tesouro soteriológico – inclusive no grau de acomodação que ela supunha com o mundo social existente.”
“O que é importante vincar (...) é que o sectarismo messiânico foi, desde o início, uma virtualidade inerente ao cristianismo – um desdobramento permanentemente possível da sua atuação.”

p. 82-83: Resumo do capítulo
“O sentimento quiliástico da iminência do Reino foi substituído, como húmus psicológico da crença no Cristo, pela ascese intramundana enquadrada pelo ideal da caridade ativa e da eticidade da existência.” Com isso, o cristianismo restaurou o senso da dignidade do agir e do engajar-se, em contraste com a apologia da vida contemplativa que havia na moral aristotélica e no pensamento estóico.

Capítulo  IV – O ‘Status’ Sociológico das Paidéias

p. 93-95: Sociologia do conhecimento, ideologia e utopia
“A sociologia do conhecimento não nos instrui apenas sobre o status (...) da ética cristã, enquanto manifestação ideológica, no seio do processo social global; ela também nos ajuda a compreender a configuração específica dos modelos formativos em sua relação com a sociedade. Em poucas palavras, as duas paidéias que consideramos até aqui – a ética cristã pré-moderna e o etos clássico-heróico da Renascença – são impulsos ideológicos de natureza utópica; ambos se articulam a partir do prospecto de uma comunidade ideal.”
“O reconhecimento sociológico do papel das utopias remonta a Comte, para quem todas as realizações humanas, das pequenas às maiores, supõem um modelo interior, ‘sempre superior (...) à realidade que ele precede e prepara’, e para quem cada grande mutação política se alimenta de uma utopia prévia, inspirada ao ‘gênio estético’ da humanidade por um ‘instinto confuso da sua situação e de suas necessidades’.”

p. 95-97: Mitos
“As mitopoéticas individuais são tentativas de reencontrar o sentido da existência fora da comunhão perdida; tentativas em que o mito, separado da sociedade, vai cedendo às pressões do inconsciente, evoluindo para a projeção da libido do indivíduo desintegrado.”
“As culturas compactas viam na sociedade um micro-cosmos: um reflexo em menor escala da ordem divina da physis. A cultura diferenciada da polis helênica, ao contrário, verá na sociedade um macroanthropos – uma projeção da ordem do espírito humano. A plena conscientização teórica dessa política antropomórfica se encontra na República, ou seja, na mais ambiciosa resposta filosófica à crise desintegradora da cultura grega”.
Roger Bastide define a utopia como “sincretismo do mito e da História”.
“A verdade é que a sociedade industrial regurgita de mitos degradados, de mitos ‘ideológicos’, no sentido marxista. Karl Polanyi apontou um dos mais falaciosos: o mito do crescimento inconsciente como portador de panacéias para os males da civilização. Desde Balzac ou Tocqueville a Freud ou Thomas Mann, o olhar crítico denunciou a inconfessa volúpia mitológica do mui ‘cientificista’ século XIX (o cientificismo não sendo, aliás, senão a mitificação da ciência).”

Capítulo V – Metamorfose da Consciência Cristã e do Ideal Heróico nos Tempos Modernos

p. 102: A soberba puritana
“O que (...) é importante para o nosso exame é o apenas o fato de que a ‘superbia’ puritana, enquanto suporte psicológico do ativismo moderno, parece ter quebrado – ao deslocar o impulso eticizante e caritativo do cristianismo – a própria energia religiosa do espírito ocidental.”
“O resultado última dessa neognose seiscentista, fundamento espiritual dos tempos modernos, foi a irrupção no Ocidente de uma cultura destituída não da fé na transcendência de Deus (...), mas sim do apego a qualquer princípio ético transcendente: uma sociedade habitada por um tipo humano sem participação autêntica numa ordem moral transegológica; pois o reverso da auto-suficiência do puritano é a personalidade puramente apetitiva e egoística  do homem moderno e contemporâneo.”
A psicologia racionalista de Hobbes é solidária da desorientação ética da cultura moderna.

p. 109: A contribuição de racionalistas e empiristas para a sabotagem progressiva de todos os modos de atuação social regidos por valores absolutos
“Racionalismo seiscentista e empirismo éclairé – Descartes e Hobbes, Locke e Hume – foram instrumentos da mesma e unitária demolição iluminista dos resíduos da religiosidade ocidental desfigurada pela gnose puritana – demolição cujos efeitos mergulham até hoje na maior perplexidade.”

p. 114-115: O século XIX e a decadência da religiosidade
Só no Oitocentos é que os impulsos religiosos e, principalmente, soteriológicos, ou assumem uma coloração nitidamente ‘ideológica’ no sentido pejorativo (...) ou se deslocam para o terreno das idéias profanas, de ambições científicas, como os vários socialismos.”
Com o rebaixamento final da religiosidade confessa a pára-choque ou clorofórmio aplicado à exploração social, os movimentos soteriológicos emigraram para a margem das filosofias secularizadas. Aí, o utopismo socialista não tardará a ser suplantado pelo catastrofismo messiânico de Marx, denunciador do ‘ópio do povo’ religioso.”

p. 117-118: Contraste entre o etos humanístico da Renascença e no séculos subseqüentes
“[O] ideal heróico da Renascença não era só estilização evasionista. Seu impulso transfigurador não valia só como máscara nietzscheana das misérias da existência, mas também como encarnação da megalopsiquia antiga, reencontrada por uma síntese única de exaltação humanística e self-control cristão – síntese essa com que a Renascença madura depurara o voluntarismo amoral da virtù sem recair na prostração espiritual do ocaso do mundo gótico. Por isso é que o ideal clássico-heróico pôde vigorar como energia educativa, como paidéia.
“Da sua versão seiscentista (...) seria arriscado dizer o mesmo. Na educação do ‘honnête homme’, a estilização heróica parece perder seu fundo ético (...). A ética humanista que chega a 1800 já é apenas um fantasma: um pretexto literário para estudos antiquários, antisseticamente empreendidos pelo século anti-heróico a prudência e da pudicícia burguesas. Não um humanismo de formação, mas sim um humanismo de consumo – a ex-paidéia de consumo de uma cultura repressiva, enfim afirmada em seu poder. Nietzsche se deu por ponto de honra o desmascaramento dessa farsa: a piedosa, inofensiva educação ‘humanística.”

p. 120-121: Motivos do insucesso do etos humanista-heróico
“A estreiteza de sua base social e o acanhamento ético de sua produção intelectual permitem compreender porque o humanismo estético da segunda Renascença ficou tão longe da penetração e do poder de galvanização pública da Reforma. (...) J. Huizinga (...) denunciou no pensamento renascimental seu alheamento à vivência altruística do senso de responsabilidade coletiva. (...) Do ponto de vista do relançamento da ética social, o humanismo foi um período de imobilismo – imobilismo de resto coincidente com a estagnação econômica que predominou nos séculos XIV e XV. Ora, esse baixo índice de ‘existencialidade’ do etos heróico foi, certamente, a grande causa de sua efemeridade.”

p. 122: Maneirismo e barroco
“Entretanto, é no barroco que a erosão do ideal heróico e da sua linguagem – o estilo clássico, avança de forma irreversível. Do ponto de vista da sua episteme visual, a arte maneirista ainda partilha o solo renascentista; (...) por mais que esmere em sabotar sua lógica interna, ele ainda respira a atmosfera da Renascença; do ‘disegno’ antropocêntrico, do espaço colocado sob a lei da figura; maneirismo e classicismo são inimigos íntimos. Ora o barroco passará dessa ‘arte do homem’ (...) para uma arte do mundo.”
“A episteme visual barroco não é, como a do bloco Renascença/maneirismo, uma visão háptica, e sim óptica; nem foi à toa que essa visão ótica da arte do mundo encontrou seu ápice no pincel de Velásquez, pintor-mor da pouco humanista Espanha. O espaço cósmico da pintura barroco (...) está para o espaço antropocêntrico da Renascença e da maniera assim como a exaltação humanista do espírito humano para o sóbrio cogito de Descartes, que nivela o homem à extensão do cosmos ou ao universo impessoal da pensée. O chamado ‘classicismo’ do Seiscentos não é nenhuma exceção a essa índole geral do barroco.”

p. 124:  A ética seiscentista
“A ética experimenta o mesmo declive dissociador. O livro de bom-viver clássico – o Cortegiano de Castiglione – comparte a crença humanista na excelência, na nobreza intrínseca do homem: mas a etiqueta seiscentista já sabe que a elevação moral é um edifício superposto aos impulsos naturais; o ‘discreto’ não se exprime; antes, se controla. O nobre já não é um aprimoramento do natural, e sim a sua negação – freqüentemente, a sua máscara. A doutrina da dissimulação do jesuíta Gracián, príncipe dos moralistas-professores de maneiras, atrairá a atenção de Nietzsche. (...) A teoria da hipocrisia é uma invenção da psicologia do Seiscentos.”

Capítulo VI – Genealogia da Solidão

p. 139: Vulnerabilização das condutas não-instrumentais (em particular, as religiosas) ante o impacto da racionalização
“Naturalmente, não é à toa que nossa sumária evocação do enfraquecimento das condutas não-instrumentais em termos de alteração dos papéis incide nos papéis prático-econômicos e, em especial, no do empresário: pois o empresário, herói da economia política até Schumpeter, é o tipo humano que ocupa a cena cultural deixava vazia pelo homo religiosus.

p. 143-145: Consciência-interesse e reivindicação permanente
“Revitalizando a vocação intramundana da religiosidade ocidental, o calvinismo estimulou substancialmente os mores do capitalismo; mas a mística do protestantismo liberal, largando, com a visão-do-mundo tradicional e teocrática de Lutero, a subordinação da experiência religiosa a um conteúdo transcendente, assimilou a religiosidade moderna à estrutura psicológica da consciência-interesse, desprovida de todo impulso de autoformação ética, de participação numa ordem comportamental paradigmática. A partir da Revolução Industrial e da extensão considerável da gama de possibilidades oferecidas ao indivíduo, essa estrutura psicológica seria acicatada pelo ‘princípio da reivindicação permanente’. (...) A cultura industrial cria reivindicações, tanto pela natureza da sua economia, de produção ilimitada, quanto pelo ‘efeito de demonstração’ que o nível de vida das classes superiores e das nações opulentas provoca nas camadas populares e nos países menos ricos”.
Enquanto ‘sistema secundário’ (Freyer), a cultura industrial (...) busca no demônio do progresso infinito e da expansão sem limites a força de implantação que os sistemas culturais tradicionais possuíam simplesmente em virtude de que seu princípio formativo se baseava num amálgama de situações, direitos e costumes preexistentes.”

p. 146-147: O romantismo
“Para Mannheim, o romantismo, antítese da razão iluminista, foi uma estratégia de resgate das atitudes e modos de vida de origem, em última análise, religiosa, reprimidos pela marcha do racionalismo capitalista – mas uma rememoração do ‘irracional’ levada a efeito no plano da reflexão. O romantismo não foi uma cultura tradicional, e sim um movimento cultural tradicionalista. O sufixo revela bem o lado programático, consciente e refletido de sua tentativa de reviver – contra o mundo desenfeitiçado, dessacralizado dos tempos modernos, abertamente exaltado pela Ilustração - o tradicional, apelidado de irracional.”

p. 154-155: Genealogia da solidão
“O desdobramento da personalidade moderna, do antropos liberto da tradição comunitária, corresponde a uma genealogia da solidão. Nela, é possível discernir ao menos três grandes ‘gerações’: a da superbia puritana, a da subjetivação da religiosidade, e a do homem da massa, sujeito passivo do consumo autoritário.”
“Essa solidão é, para os advogados da cultura estabelecida, o preço do individualismo (...). O isolamento seria o reverso da autovalorização do homem moderno, em sua vocação de liberdade tanto política quanto social e cultural; e o lamento sobre a comunhão perdida seria secreta nostalgia da opressão. No entanto, a tese é para lá de discutível. Desde Tocqueville e Burckhardt temos consciência de que o apogeu da solidão na sociedade de massa não coincide, de jeito algum, com a vitória do individualismo, e sim com a maré invasora dos conformismos de todo gênero, da coletivização negativa. O homem-ilha do mundo moderno não é um indivíduo valorizado, nem auto-valorizado.”

Capítulo VII – Saudades do Carnaval

p. 158: Cristianismo e valorização ontológica do indivíduo
“[O] cristianismo (...) atribuiu sempre a maior importância à consciência individual; mas isso representava uma valorização da individualidade ética, não do fato ontológico da individualidade. A consciência do indivíduo possui, para a intimidade com a angústia em que repousa a genuína soteriologia cristã, um valor imenso; mas a realidade do indivíduo, não: pois sobre ela pesa o terrível efeito do dogma da transcendência do Criador e da contingência radical da sua criatura, efeito a cujo império somente o gnóstico, acreditando-se parcela da divindade, escapava – mas escapava mediante a deseticização da crença no Além.”

p. 162: A politização do socratismo
“Diante dessa degenerescência moral e física, o entranhado apego de Platão à cidade se converteu em motor da sua filosofia. O ensinamento não doutrinário de Sócrates assinalara a autonomização da ética; a filosofia platônica transferirá o impulso da retificação do agir para o plano diretamente político – o plano da reforma global da sociedade através de um novo regime de governo.”
“Nessa resoluta politização do socratismo (...) Platão conservou a medula do racionalismo socrático, (...) a idéia de que a Arete é basicamente uma técnica existencial racional. Mas o impacto da decadência de Atenas (...) dramatizou de tal modo a politização do socratismo, que a sua investigação ética se tornou (...) um exercício de caráter religioso.”

p. 167, 170: O elitismo de Platão
“A elite governante da República é, do ponto de vista ético, virtuosa; mas a população governada pode, no máximo, ser mantida numa medíocre boa conduta, insuflada pela propaganda estatal de uma ‘religião das massas’ destinada a frear os ímpetos individualísticos de uma humanidade inferior, dominada por paixões apetitivas, e não pela purificante contemplação do Bem.”
“Racionalismo para uns poucos, magia para as massas – Platão talvez tivesse gostado da frase de Burckhardt. (...) [A] sua república ideal não parte do homem empírico; nega-o, ou melhor, sujeita-o sem hesitação ao comando de uma aristocrática seita puritana, em tudo e por tudo separada da existência ordinária.”
“[O] eros platônico une tão-só os governantes, e não, como o futuro ágape cristão, a sociedade inteira. (...) [O] pensamento regenerador de Platão, fundamentalmente elitista, está em consonância com a epistemologia aristocrática do mundo antigo. À aristocracia carismática dos xamãs-filósofos incumbe a cura da polis e a salvaguarda da cultura helênica.”

p. 170, 173-174: Igualitarismo da Culpa cristão é cúmplice da crise da modernidade?
“Penetrado do igualitarismo da Culpa, o ascetismo cristão baniu o sentimento individual de participação na realidade divina. (...) Nisso, o etos cristão foi (...) cúmplice objetivo da desvalia do indivíduo experimentada pelo homem moderno, e intensificada na sociedade de massa.”
“Não convém esquecer que o cristianismo se formou e se impôs quando, nas mãos do imperialismo romano, já se consumara a agonia da polis antiga, ferozmente localista. Em matéria de universalismo abstrato, o direito romano foi um precursor do ‘sistema secundário’; e a sua universalidade está para o localismo da polis helênica assim como a catolicidade do cristianismo para a índole tribal, gentílica, da velha religião hebraica. Ora, a cultura cristã, cultura ‘global’, cresceu num universo extremamente móvel. A fase decisiva de sua expansão, o século III, foi um período de desintegração acelerada do Império; a sua época de maior fecundidade cultural coincide, pelo menos inicialmente, com o tempo das contínuas invasões.”
“De olhos postos na Jerusalém celeste, a fé cristã permanecia vaga e, portanto, amplamente moldável, em relação à órbita do terreno (...). Desde a Idade Média, a ‘flutuação’ da Igreja universal relativamente a qualquer particularização político-social distingue a sociedade cristã da muçulmana. (...) [Nesta,] a santificação do social atua como zelo conservador.”
“O cristianismo aboliu o sentimento autenticamente trágico da vida, atributo típico da mente clássica. (...) Baseado na idéia de uma divindade onipotente, mas salvadora, a religião cristã obscureceu a antiga consciência do sofrimento injusto, obra selvagem do capricho ou vingança dos deuses.”

p. 176-178: O idiossincrático Shakespeare
“A especialidade de Shakespeare está em situar a simpatia no infortúnio da condição humana em si, mesmo levada ao limite da deficiência moral.”
“T.S. Eliot afirmou certa vez que Shakespeare estava ‘andando em direção ao caos’; seria mais exato dizer que sua obra nasceu no interregno entre a vitalidade do etos cristão, liquidador da visão trágica, e as ulteriores escatologias racionalizadas”.
Quando o recuo da moral cristã devolveu ao Ocidente algo da consciência trágica da vida, o ‘desencantamento do mundo’ operado pela racionalização da cultura transformou a tragicidade em sabor grotesco. O drama shakespeariano foi a primeira, insuplantada apreensão dessa metamorfose.”

p. 179: Plasticidade do cristianismo
“[O] cristianismo soube conviver com tradições político-religiosas que atenuavam substancialmente o sentimento da desimportância do indivíduo. (...) [O] paradigma da megalopsiquia renascentista reúne a têmpera ética do altruísmo cristão ao senso de excepcionalidade do indivíduo superior. Nesse sentido, do humanismo renascentista defluiu um elitismo cristão.”

p. 182-183: Spinoza e Leibniz
O fundo elitista da reflexão de Spinoza. “A Ética não tem esse título por acaso; a metafísica spinozana culmina numa teoria da beatitude. E a felicidade está, para o neo-estóico Spinoza, no júbilo que proporciona a inteligência do real. Sócrates acreditara que o compreender leva ao agir bem; Spinoza crê que ele deságua no sentir-se bem. Ora, essa capacidade intelectual em que repousa a felicidade, somente alguns espíritos a possuem. (...) A intuição mística, a visão panteística, é apanágio das almas fortes”
A ética de Leibniz “é a do tradicionalismo cristão, para o qual não basta compreender a realidade: deve-se também aceitá-la de bom coração, como obra de Deus que é. O ‘melhor dos mundos possíveis’ não pede só compreensão: pede afeto. (...) Mas as mônadas ativas não são entidades de elite; são democráticos pontos de vista sobre o cosmos, partes igualitárias na partitura da polifonia universal. Leibniz não só reantropocentriza a metafísica (...) como deselitiza a moral barroca; ele aproxima a ética filosófica, com o mesmo gesto, do anti-elitismo cristão e do igualitarismo moderno. Foi o cortesão Leibniz, e não o republicano Spinoza, que prefigurou o democratismo ético da modernidade.”

p. 183: Goethe, o último renascentista
“O ‘renascentista’ Goethe, que tomava Spinoza por Giordano Bruno, fundiu a monadologia de Leibniz com o imanentismo da Ética: seu ego cósmico é uma ativa mônada panteísta. Mas o ego faústico de Weimar é, também, a (...) personalidade superior e selvagem, que a racionalização iluminista sentira às vezes (...) irromper sob o seu abstrato igualitarismo. No culto mumificante do ‘favorito dos deuses’, o espírito vitoriano tentou conter e aprisionar a lembrança fatal do sentimento da individualidade carismática, fonte de liberdade e de cultura. (...) Goethe, (...) como a própria Renascença, fora capaz de aprimorar sua concepção dos instintos vitais pelo metro da Bildung que educa sem hipocrisia e civiliza sem supérflua repressão.”

p. 185-186, 191-192: Cristianismo e carnaval
“Mas por que a depreciação antielitista do ego – o igualitarismo da Culpa, a ontologia anti-individualista do cristianismo – permaneceu, enquanto matriz de uma moral ressentida, um simples potencial? Por que a experiência cristã (...) da desimportância do indivíduo não assumiu a forma virulenta do ressentimento moderno? (...) [A] resposta se encontra na estrutura da consciência cultural de tipo tradicional (...) [que era] dualista: ela justapunha ao universo litúrgico oficial, ligado à Igreja e ao Estado, o mundo livre da festa popular de inspiração carnavalesca. Até o século XVII, o universo religioso do Ocidente obedeceu a um regime de alternância: de um lado, reinava a forma sublimada de religiosidade (...); de outro lado, uma forma subversiva (mas autorizada e institucionalizada) de celebração (...). Na festa orgiástica – saturnais, carnaval -, a sociedade viva o reconhecimento da sua própria contestação.”
“A longa alternância de sublimação ética e válvula orgiástica, com que o cristianismo antigo temperou a adulteração do princípio da caridade em penoso acatamento de dominações repressivas, permitiu que a ascese cristã transcendesse o ressentimento. (...) O tremendo elitismo ético do cristianismo – o árduo requisito da salvação pelo viver-em-angústia – se combinava com uma sabedoria arcaica: (...) inscrever em seu desempenho a denúncia de sua própria repressividade e o alívio periódico das suas cargas.”

p. 194-196: Nietzsche e o Cristianismo
“Nietzsche se mostra inclusive – e aqui talvez situe a fronteira da sua compreensão, não já do cristianismo, mas do fenômeno religioso em geral – disposto a admitir que certa dose de moralidade sã possa coexistir com as alienações religiosas.”
“Entretanto, no interregno moral (...) da ‘morte de Deus’, torna-se possível – e louvável – a prática de um experimentalismo ético. O tema do super-homem não tardará a conferir a esse cheque em branco à disponibilidade relativista o sabor de um absoluto – o absoluto de uma nova mensagem de redenção.”
“Vê-se, portanto, que o autor de Zaratustra é capaz de nuançar seu ataque à religião com agudas observações sobre aspectos não (ou menos) negativos do seu fundo psicológico e do seu desenvolvimento histórico. Uma coisa, porém, Nietzsche não aceita: o valor da experiência religiosa do transcendente como matriz de autênticas paidéias, de morais formativas do homem e da sociedade. (...) Nietzsche despreza a funcionalidade ético-social da crença no transcendente. É certo que a conclamação do super-homem alude a uma espécie de transcendência sem transcendente: o transcender-se da humanidade para que ela seja capaz de assumir plenamente as conseqüências positivas da ‘morte de Deus’; pois a queda de Deus não é senão a premissa de uma livre, infinita e plenamente responsável auto-superação do homem. A humanidade superior, liberta da alienação religiosa, nunca estará ‘pronta’; será sempre uma conquista.”

p. 202: Heidegger mal-interpretado pelos frankfurtianos
“Heidegger converteu o próprio núcleo da filosofia, tornada interrogação sobre o Ser e desdobrada em ‘questão da técnica’, em crítica da cultura ocidental. Com isso, Heidegger ampliou consideravelmente o tema do confronto crítico da cultura/experiência religiosa. É com pesar que desistimos, nestas páginas, de abordar essa ampliação. De passagem, notemos tão-somente que não admira que as interpretações mais engenhosamente injustas de sua obra partam – como a Negative Dialektik de Th. W. Adorno – de marxistas neo-hegelianos radicalmente surdos à problemática não só do divino, mas até do sacro.”

p. 204: Crítica ao super-homem de Nietzsche
“O advento do super-homem é concebido em termos da agressividade vontade-de-poder. Esse antropos ideal é um prodígio de auto-estima e segurança; eticamente, porém, trata-se de um anão: é um avatar do homem-lobo de Hobbes, que funda os seus valores numa antropologia diretamente derivada de Darwin.”

p. 207-208: A esperança está na cultura hippie?
“Em alguns aspectos, o proto-etos ‘hippie’ representa uma tentativa interessantíssima (não importa quanto inconsciente) de recuperar a megalopsiquia do ideal heróico – a síntese de personalidade e magnanimidade, de valorização do indivíduo e de consciência moral. O modelo existencial que inspira as comunidades hippies abriga potencialmente um misto de auto-afirmação renascentista, de valorização oriental da existência e de eticidade cristã. Por mais hesitante e impuro que ainda seja esse movimento, por mais difícil que ainda seja separar, dentro dele, o recurso ao evasionismo psiquedélico da contestação criador, o fato é que ele constitui a primeira articulação prática de uma alternativa para o deserto de valores e a existência mecânica do homem moderno. O que está em esboço é uma revolução cultural de enorme importância – e que por isso mesmo foge à compreensão tanto dos que depositam suas esperanças de vitória sobre os males do sistema secundário  na resistência dispersa dos tradicionalismos e localismos – na mera guerrilha cultural dos ‘partidários do ontem’ (Freyer) – quanto, aos que (como a maioria parte dos marxistas) permanecem hipnotizados pelo ingênuo utopismo da técnica e pelo mito soteriológico da revolução político-social, obstinando-se em ignorar o estado patológico do conjunto da cultura moderna (liberal ou socialista).
Todavia, “não só a consistência ideológica, mas até o sentido comunitário e o exercício de autocontrole da personalidade ainda estão gritantemente ausentes de muitas dessas experiências de ruptura. O fascínio maléfico da droga – (...) que só faz levar ao paroxismo a solidão do homem moderno – ainda disputa os outsiders à recriação do estilo de existência. De maneira geral, a práxis de contestação existencial (não a da contestação política, ideologicamente anacrônica – leninismo requentado, trotskismo alucinado, maoísmo estratosférico e infantilismo geral – que predominou em maio de 1968) oscila perigosamente entre o evasionismo determinado da repressão contemporânea, que é tomar distância para a construção de melhores modos de vida, e o escapismo absoluto da renúncia total ao aperfeiçoamento de si e do mundo.”

p. 211: Eros e Alto Renascimento
O reconhecimento de eros surgia como forma adequadíssima de uma revalorização da individualidade ontológica, isto é, daquilo que, precisamente, o igualitarismo da culpa havia seqüestrado.”

p. 216: O lado positivo da autonomia da esfera política
“[U]ma das características estruturais do processo social contemporâneo nas sociedades desenvolvidas (...) é a (re) autonomização da esfera política; isso é também de muito bom augúrio para as círculos resolvidos a barrar na prática o avanço das tendências negativas da cultura moderna. A urgência de uma aliança entre crítica da cultura e a participação política fala por si mesma.”

p. 220-221: Epílogo inconclusivo
Krisis quer dizer separação. Diante de nossos olhos, a cultura moderna está se destacando de si própria. Refletir sobre isso já é uma viagem atordoante (...). No instante em que ela se mundializa, que sorte tocará à cultura do Ocidente em crise e (talvez) mutação? Aqui o pensamento recua na ponta dos pés; um sóbrio instinto lhe murmura que só o exame crítico do passado consola dessa incerteza invencível. (...) Somente debruçado deste estudo – que não é só mental – o homem contemporâneo chegará, ou não, a compor um dia, talvez sem sentir, o epitáfio da moléstia dos tempos modernos. No entanto, talvez sejamos realmente loucos.”

Capítulo VIII - Situação do Brasil na crise da cultura

p. 228-229: a contribuição de Mário Vieira de Mello e seus limites
“Mário Vieira de Mello distingue dois grandes elementos na paidéia das elites nacionais: primeiro, a educação jesuítica; segundo, a influência do romantismo francês. (...) M. Vieira de Mello deplora o irracionalismo da volubilidade romântica, responsabilizando-a pela falta de princípios éticos transcendentais na formação das elites brasileiras. (...) Para o autor (...), romantismo não é só um movimento artístico-literário, mas antes uma tendência cultural, análogo às grandes correntes configuradoras do Ocidente moderno: o esteticismo da Renascença, a religiosidade da Reforma, o racionalismo cartesiano. O romantismo francês, modelo dos romantismos latinos, reata com a primeira dessas correntes, em reação contra a última.”
“Não desejamos refutar a idéia de que a tônica da produção intelectual brasileira é, desde a Independência, um espírito culturalmente esteticista (...); ao contrário, tendemos a acreditar, instruídos por radiografias antropológicas do porte de Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil, na concordância profunda entre nossos camaleonismo ideológico e as nossas origens socioculturais. Mas isto não nos impede de resistir à imagem puramente negativa (...) desse espírito esteticista (...). M. Vieira de Mello poderia ter levado em conta que o camaleonismo da intelligentsia brasileira, exercendo-se em perpétua imitação de paradigmas europeus, revestiu-se várias vezes de um conteúdo parodístico; e que esse (...) resultou, nesses casos, em iluminação crítica da situação periférica da sociedade latino-americana em relação à marcha da cultura ocidental. Machado de Assis (...) é um expoente peregrino desse espírito de paródia com que a cultura brasileira caricaturou os valores ocidentais, ao mesmo tempo em que punha a nu suas próprias taras. E o modernismo não é (...) apenas um regionalismo estético negativo; é uma valiosa conscientização antropofágica da secreta essência parodística de nossa cultura oficial”.

p. 231: O substrato religioso brasileiro
“O verdadeiro substrato religioso do povo brasileiro é conhecimento orgiástico. O catolicismo das classes altas – além de ser um catolicismo avacalhado – confirma constantemente aquelas afinidades apontadas por Weber entre a confissão romana e a moral mágica (...). Na religião popular, dominam os ritos de possessão, em forma ‘selvagem’ (pura no candomblé baiano, impura na macumba meridional) ou ‘decorosa’ (espiritismo).”

p. 232-235: O espiritismo como meio termo entre a ética rigorista e a moral mágica
“[O] complexo espírita, que soma milhões de adeptos, é a religião de maior crescimento no país.”
“Religião confessional e soteriológica, o espiritismo problematiza a vida corrente, instaurando entre o mundo profano e os valores da crença uma tensão que estimula as disposições de ajustar o primeiro aos segundos. Nessa inclinação retificadora, o espiritismo abriga impulsos messiânicos. (...) Mas é um quiliasmo bem pouco aguerrido (...), sem cristalizações agressivas na forma de reivindicações sociais concretas.”
“Os espíritas combinam a fé na metempsicose (Karma) com a crença na liberdade de opção do indivíduo; ao nível da consciência popular, o espiritismo interpreta os males da existência presente como efeitos de erros passados, vícios ‘da outra encarnação’ e, ao mesmo tempo, proporciona ao fiel a sensação de que uma reforma espiritual, trazendo-lhe a felicidade, está ao seu alcance.”
“Por isso mesmo, a religiosidade mediúnica, reforçada pela caridade ativa (...), atua como resposta à desorientação trazida pelos períodos de bruscas mudanças sociais e culturais. (...) O otimismo do Karma serve de horizonte compensatório para as frustrações ou carências nas camadas populares e pequeno-burguesas, ‘perturbadas’ – para usar um termo bem espírita – pela dinâmica desagregadora da modernização social. (...) Comparado ao candomblé e ao catolicismo ‘mágico’, expiatório, o espiritismo é uma ética rigorista; comparado com o puritanismo cristão, portador histórico da racionalização da cultura, trata-se de uma soteriologia amável, aliviadora e desangustiante”

p. 236: A resistência de válvulas não-racionalizadas no Brasil
“No Brasil, a fraca implantação de éticas rigoristas ortodoxas atenuou significativamente os resultados repressivos, antielitistas (...) do cristianismo de sublimação. A vitalidade do comportamento orgiástico nos assegurou válvulas a um só tempo democráticas e individualistas, libertárias e elitistas. (...) O Brasil se adentrou na cultura moderna vacinado contra o seu anticarnavalismo (...). Pouco inclinado ao construtivismo social das seitas ascéticas e ao revolucionarismo das seitas quiliásticas, o brasileiro cultiva, em compensação, toda uma gama de evasões libertárias. Ele é, por isso mesmo, a um só tempo conservador e anarquista, conformista e insubmisso.”

p. 239-240, 242-243: Suspensão de juízo sobre ditadura, mas alerta quanto à polarização ideológica
“O projeto de regimes fortes, de ascendência militar, (...) visa a uma aceleração decisiva do desenvolvimento econômico, eliminando a distância entre essas nações e o mundo desenvolvido. (...) Não compete a este ensaio pronunciar-se sobre a viabilidade ou não desse projeto político-social. O exemplo da Alemanha bismarckiana ou do Japão da mesma época prova, porém, que ‘revoluções’ no sentido (...) em que falamos, por exemplo, de Revolução Industrial (...) podem efetuar-se sem prévia ou simultânea ocorrência de uma revolução (...) no sentido aristotélico, isto é, político (...). Os dois casos históricos de revolução conservadora são igualmente probantes no terreno da modernização social. (...) O hábito de considerar todos os regimes conservadores como zeladores imobilistas de um simples congelamento da sociedade não resiste ao confronto da experiência.”
“Tanto o moralismo agressivo de certa classe média conservadora quanto a austeridade propugnada por alguns programas de esquerda abrigam legitimações comportamentais muito pouco tolerantes em relação ao espírito anárquico, libertino e libertário do nosso etos clássico. Será mesmo que as duas estratégicas antagônicas que, com o eclipse do liberalismo político e o naufrágio do populismo, se disputam o amanhã brasileiro: a revolução pelo alto, e a revolução maoísta – confluiriam numa afinidade fundamental com a moral repreensiva da velha cultura industrial?”
“A verdadeira maldição do subdesenvolvimento é a indigência do espírito.”
 “Na realidade, porém, o perigo que se nos depara é bem menor – e mais sutil. É apenas o risco de que a estreiteza de vistas de certa classe média, atiçada por um ufanismo tacanho, viesse a jogar a cultura brasileira num sensível descompasso em relação aos impulsos da renovação cultural do Ocidente (...). Em seu cosmopolitismo alienado, nossas antigas elites souberam ao menos conservar-se permeáveis à evolução cultural ocidental. Seria triste que o Brasil (...) abdicasse desse passado no exato instante em que o futuro lhe confere tanto sentido. (...) [S]ó nos restaria rezar para que o gênio da avacalhação – esse saci verde-amarelo – nos restituísse a nós mesmos, à nossa autêntica ‘inautenticidade’ ética.”

Capítulo IX – Sociologia e Crítica dos Valores

p. 245: Justificativa do método da exposição precedente
“Não será (...) arbitrário empregar a indagação sociológica numa discussão de valores? Não é este procedimento incompatível com a imparcialidade da ciência? Ou será que a objetividade sociológica, sem perder o título de saber científico, pode legitimamente desdobrar-se em prelúdio analítico à controvérsia dos valores?”

p. 252-254: Gadamer e Habermas
“Com a hermenêutica, a teoria da intersubjetividade não só conserva seu foco lingüístico, como amplia – por meio da problemática tradição-tradução – a consciência da necessária interação de todo comunicar lingüístico. Além disso, mantém vivo o reconhecimento de que os jogos lingüísticos são ‘formas de vida’ tanto quanto sistemas simbólicos. Logo, enquanto estágio mais completo da teoria da intersubjetividade, a hermenêutica concretiza a compreensão do significado do subjetivo do agir social mediante uma correta interpretação das experiências de estabelecimento ou destruição do consenso, das quais derivam a permanência e a mudança das normas institucionais de uma sociedade.”
“O único defeito de que Habermas acusa a hermenêutica de Gadamer é o de não registrar a função ideológica da linguagem. (...) Por trás dos jogos lingüísticos em que se perfaz a interação dos socii, atuam as contraintes do trabalho e da dominação; e ‘a linguagem é também meio de domínio e poder social’.”
A solução habermasiana para este problema é a psicanálise, “hermenêutica da repressão”, capaz de identificar o inconsciente na linguagem. “Mas uma teoria da intersubjetividade que se dá como psicossociologia da repressão é, automaticamente, uma crítica de valores.

p. 260: Conclusão
“À perspectiva de uma sociologia como ‘teoria crítica do presente’ (Habermas) muitos sociólogos reagem negativamente. Há, porém, reações e reações”. A que merece consideração é aquela que alega a neutralidade axiológica (Wertfreiheit) “precisamente para defender essa dignidade [reflexiva da análise sociológica] do assalto escuso da propaganda ideológica e, em especial, do mito da ciência-panacéia para os males do mundo.” Sendo assim, “a verdadeira conversão da sociologia em teoria crítica exige não só o respeito como a assimilação desses escrúpulos; pois só a resoluta preservação da estrita autonomia do pensamento científico o qualifica para crítica axiológica. Mas a autonomia das ciências sociais não significa isolamento ante os problemas da sociedade e da cultura (...). Hoje, a isenção perante os valores, que uma vez fora reflexão crítica, não passa de mutilação do olhar científico e redução do âmbito da sua objetividade.”

 

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