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Kaio

 

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31 outubro 2010

Here to Stay - parte 1

Vocês devem ter percebido que passei um bom tempo sem postar aqui no blog. De fato, Outubro foi um mês bem atribulado, então tive pouca disponibilidade e ânimo para atualizar Racio Símio. Novembro será diferente. Embora eu continue a ter muitas leituras por fazer, o ritmo será menos exaustivo. 

No próximo post, quero relatar o que houve de mais importante neste mês que se encerra. A ANPOCS, da qual voltei ontem, certamente foi o evento principal, mas há outras coisas interessantes para se contar. =)

09 outubro 2010

Versão preliminar do meu artigo

O Sentido da Liberdade em “A Montanha Mágica”

Kaio Felipe


Resumo: Este artigo discutirá as formas e concepções de Liberdade, tanto em suas convergências quanto em suas oposições, tendo como ponto de partida a obra “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Os personagens deste “Bildungsroman” indagam-se, entre outras questões, sobre o que é ser livre. A partir das intersecções e conflitos encontrados entre as definições de liberdade apresentadas, especularemos sobre as possibilidades de superação de um contexto histórico desfavorável, tendo em vista a plena formação humana, enquanto indivíduos e cidadãos, à luz da idéia de “Bildung”.

Palavras-chave: Liberdade, Formação, Ética, Indivíduo, Humanismo, Liberalismo.


“O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos.”

(Thomas Mann)


1. A Chegada: propósitos e objetivos

O que pensar e como agir, quando se vive em uma época de profunda crise intelectual e moral? É possível não se contaminar por tal atmosfera enferma e desoladora? Mais importante ainda: como ser livre em um mundo no qual a própria liberdade parece estar, mesmo que gradualmente, em xeque? Estas são algumas das questões que parecem ter motivado o escritor Thomas Mann (1875-1955) na criação de “A Montanha Mágica”, uma das obras-primas da Literatura do Século XX.

O romance tem como protagonista Hans Castorp, um jovem engenheiro de temperamento paisano que, em uma visita ao primo enfermo em um sanatório nos Alpes suíços, recebeu o castigo (ou dádiva?) de passar vários anos de sua vida no local, após descobrir que tem tuberculose. Ao longo de sua estadia, ele aprende mais sobre si mesmo e o mundo à sua volta.

Segundo o próprio Mann, ele é um personagem medíocre, sem qualidades distintas ou qualquer atributo de especial. Porém, sua mediocridade não se refere à sua inteligência ou personalidade, mas simplesmente aos impedimentos de seu meio, de seu contexto histórico e social. Nas palavras do narrador:

O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as natureza mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.” (Mann, 2000, p. 47-48)

Percebemos, portanto, que este romance, por mais épico que seja (veremos no próximo tópico que ele é considerado um “Bildungsroman”) tem como “herói” um personagem que passa longe daquilo que os cânones literários entendem por “heróico”. Esta é a primeira de várias paródias angustiantes que Thomas Mann fará ao longo de “A Montanha Mágica” - uma obra que, assim como a I Guerra Mundial (um dos eventos que a motivou), é um ponto de convergência entre tradição e modernidade, entre a Belle Époque que estava sendo sepultada e os Tempos Sombrios que emergiam das trincheiras.

O propósito deste artigo é discutir como este romance pode iluminar a compreensão do conceito de Liberdade. Afinal, este é um dos temas principais do livro, apresentado por meio das perspectivas dos personagens (principalmente Settembrini e Naphta) e das reflexões suscitadas pelas tramas (como o desfecho bélico do romance). Sendo assim, “A Montanha Mágica” será tanto fonte quanto objeto de estudo deste texto. A motivação para tal investigação é demonstrar a importância do Humanismo como chave de compreensão do Mundo Moderno.

Tomamos como ponto de partida o fato que a Literatura é uma fonte rica de conhecimento social e humano; constitui “um saber acerca das motivações, sentimentos e paixões dos seres humanos, cujo valor cognitivo se coloca acima da dúvida sensata” (Gusmão, 2007, p. 251). Com isso, queremos dizer que se pode pensar a Política por meio da Arte, e não apenas como objeto científico, apelando para métodos quantitativos e/ou “fetiches conceituais” – algo que tanto se verifica no ambiente acadêmico, a ponto de se insistir no status de Ciência Política, desmerecendo como “conhecimento pré-científico” tudo aquilo que recorra a outras fontes de saber, como a Literatura e a Filosofia Moral.

Será mesmo que só podemos tratar aprofundadamente de temas da Política recorrendo a um monismo epistemológico – ou seja, a uma idéia unificada de ciência, segundo a qual mesmo a investigação social e a área de Humanidades devem prezar por procedimentos e técnicas similares às utilizadas nas Ciências Naturais[1]? Ou é possível defender que muitas das mais valiosas descrições (se o propósito da pesquisa é empírico) e avaliações (se o que se busca é um estudo mais normativo) estão presentes em autores do naipe de Goethe, Dostoiévski, Thoreau e o próprio Thomas Mann?

A Teoria Política – e os estudos da Sociologia e da Ciência Política em geral – têm muito a ganhar caso se abram às possibilidades trazidas por fontes de conhecimento que prezam mais pela reflexão humanística do senso comum do que pela (suposta) sofisticação e rigor no uso de conceitos herméticos e abordagens que vão desde o “positivismo” até o “pós-estruturalismo” [2]. Um dos expoentes contemporâneos desta empreitada de resgate dos clássicos humanistas é Jon Elster, que recentemente afirmou: “Encontrei minhas hipóteses nas obras dos filósofos moralistas franceses do século XVII e procurei verificá-las na psicologia e na economia do século XX”[3].

Sendo assim, este artigo procurará trabalhar os conceitos (principalmente o de Liberdade) a partir de “A Montanha Mágica” e, sempre que for necessário, faremos analogias e comparações com o tratamento dado a este tema por autores caros à Filosofia Política e à Teoria Política Normativa. Esperamos que, ao final do texto, seja possível refletir melhor sobre as três questões lançadas no primeiro parágrafo.


2. Bildungsroman: o romance como formação cultural e humanística

Algumas definições prévias são importantes para o desenvolvimento do artigo. A primeira delas diz respeito ao que entendemos por “Liberdade”, tendo em vista que é este conceito cujas interpretações iremos investigar no romance de Thomas Mann. Mesmo conscientes de que esta é uma discussão muito ampla e fértil, limitar-nos-emos a três pontos-de-vista.

Inicialmente, aceitaremos a distinção feita por Isaiah Berlin, em “Dois Conceitos de Liberdade”, entre “liberdade positiva” e “liberdade negativa”. Embora apresente certas limitações[4], ela facilita a compreensão da diferença entre o que é ser livre em suas expressões cívicas e nas dimensões privadas. Além disso, atualiza um debate que remonta a Benjamin Constant, que há duzentos anos já procurava delimitar o que seria a “liberdade dos antigos” e o que distingue a “liberdade dos modernos”.

Em termos gerais, liberdade positiva é aquela que consiste em “ser-se amo e senhor de si mesmo”; ou seja, “a auto-realização, ou auto-identificação com um princípio ou ideal específicos.” (Berlin, 1981, p. 142-145) Na sua vertente negativa, é estar livre de coerção, partindo do princípio de que o indivíduo tem o desejo de não sofrer imposições sobre sua privacidade. Enquanto a primeira está mais ligada à questão da cidadania e trespassa autores como Aristóteles e Rousseau, a segunda é de âmbito individual, e é aquela proposta por Locke, Mill e o próprio Constant. Berlin, mesmo preocupado com a distinção analítica entre ambas, admite que tanto a liberdade negativa quanto a positiva são importantes.

Por sua vez, Friedrich Hayek, em “Os Fundamentos da Liberdade”, propõe a existência de duas tradições da teoria da liberdade: a primeira, empírica e assistemática - a “tradição britânica”, a qual entende a liberdade como ausência de coerção, ou ao menos a presença o mais reduzida possível da mesma; a segunda, especulativa e racionalista - a “tradição francesa”, para a qual a liberdade é “ausência de obstáculos”, baseada nos “poderes ilimitados da razão humana” e na ênfase na “organização” (Hayek, 1983, pp. 3, 10-11, 54-56).

Porém, esta dicotomia não tem o mesmo poder de síntese descritiva que a de Berlin, talvez em razão de seu forte conteúdo normativo. Fica explícito o apreço do autor pela visão inglesa do que é liberdade, a ponto de considerar autores da França mais ligados a esta perspectiva (notoriamente Tocqueville e Montesquieu) como “ingleses”, e britânicos identificados com o viés racionalista e construtivista (por exemplo, Hobbes e Bentham) como “franceses”. É conhecido o engajamento de Hayek, assim como de boa parte da Escola Austríaca e autores adjacentes, com a causa do Liberalismo. Logo, este maniqueísmo hayekiano não esconde suas pretensões de marcar posições ideológicas, ao invés de “purificar” conceitos. Por outro lado, suas definições podem ajudar a entender alguns fenômenos políticos do século passado, como a ambigüidade da denominação “liberal” na política norte-americana[5].

Há outra concepção que será fundamental para a constituição do Liberalismo Alemão; é também aquela que mais se aproxima da apresentada por Thomas Mann. Estamos nos referindo a Wilhelm von Humboldt, que em “Os Limites da Ação do Estado”. Como se fosse um meio-termo entre o individualismo britânico e a influência rousseauniana, ele define liberdade como “a possibilidade de uma atividade variada e indefinida” (Humboldt, 2004, p. 133); é ela que permite a espontaneidade e o pleno autodesenvolvimento – e, conseqüentemente, a originalidade (personalidade). Somada à “variedade de situações” (afinal, é a pluralidade que permitirá o aprimoramento da sensibilidade diante da experiência humana), “a liberdade constitui (...) indispensável condição que um semelhante desenvolvimento pressupõe.” (Idem, p. 143) Vemos, portanto, três palavras-chave: individualidade, pluralidade e personalidade, sendo que o cultivo das duas primeiras permite a terceira.

Outro conceito importante é o de “Bildung”. Uma boa definição é a seguinte: “Bildung é a formação para a autonomia, que não pode ser transmitida como os conteúdos propriamente educacionais” (Fontanella, 2000, p. 17). Ou seja, assim como a “Paidéia” grega, é uma “formação” em amplo sentido. Podemos combinar esta delimitação com outra, feita por J. W. Burrow, em seu prefácio ao ensaio de Humboldt: “a realização de uma individualidade nutrida pela diversidade da experiência” (Humboldt, 2004, p. 76).

O próprio Humboldt deu a sua contribuição, ao defender que “a verdadeira finalidade do Homem (...) é a da formação a mais alta e harmoniosa possível de suas forças em direção a uma totalidade completa e consistente” (Idem, p. 143). Pode-se dizer que “Humboldt exprimiu um tema liberal profundamente sentido: a preocupação humanista de formação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal. Educar a liberdade, e libertar para educar — esta era a idéia da Bildung, a contribuição goethiana de Humboldt à filosofia moral” (Merquior, 1991, p. 31).

A propósito, há outros pensadores alemães que podemos ressaltar. O diálogo entre o poeta e romancista Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e o dramaturgo Friedrich Schiller (1756-1805) foi fundamental para a disseminação do ideal da Bildung. A amizade entre estes dois gênios criadores foi importante não apenas para o Classicismo alemão, mas também para a discussão sobre o que seria, em termos literários, esta “formação ampla”. Marco Antonio Fontanella afirma que “Schiller foi o maior incentivador da redação da história de Wilhelm Meister, sendo sua correspondência com Goethe à época de redação um dos comentários mais instrutivos ao romance” (Fontanella, 2000, p. 6)

Seguindo esta linha de raciocínio, entendemos o “Bildungsroman” como “o gênero de romance que se foca no desenvolvimento psicológico e moral do protagonista, da infância à fase adulta” [6]. Um termo mais genérico seria o inglês “coming-of-age novel”. Dentre os vários exemplos de romances de formação, podemos citar três. A obra seminal do gênero é de Goethe: “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister” (1796), que conta com um protagonista erudito e ambicioso que, movido por idéias estéticas, chega a participar de uma companhia de teatro. O irlandês James Joyce publicou “Retrato do Artista quando Jovem” em 1914. A obra conta a trajetória - povoada por vários monólogos internos - de Stephen Dedalus, para muitos um alterego de Joyce. Por último, “Siddharta” (1922), de Hermann Hesse, que é sobre a jornada espiritual de um jovem, filho de brâmane, que vive um dilema entre o ascetismo e a vida mundana.

A importância deste estilo literário é evidente, na medida em que recupera elementos do gênero épico e se preocupa simultaneamente com a ética e a estética; ou seja, com os valores adequados para o pleno desenvolvimento humano e com a apreciação daquilo que é belo e/ou sublime. Embora de feições tipicamente alemãs (p.ex., ao lidar com a tensão entre razão e sensibilidade, que perpassa até Kant), o romance de formação, como vimos pelos exemplos supracitados, também foi produzido por escritores de outros países; é, portanto, literatura de caráter universal.

“A Montanha Mágica” evoca várias características do romance de formação. Em primeiro lugar, possui um caráter pedagógico, pois o protagonista apreende ao máximo a experiência humana ao longo de sua trajetória: o amor, a ciência, a política, a arte, a filosofia, a fé e o próprio tempo. É por meio dos companheiros de sanatório que Hans Castorp terá contato com toda a produção e a reflexão culturais em relação às quais pouco se importara até então.

Em segundo lugar, o protagonista vai se integrando à sociedade na medida em que a trama se desenvolve. Um gesto singelo, mas simbólico para indicar esta mudança de Castorp é quando, depois de alguns anos morando em Davos-Platz, ele finalmente pára de consumir charutos importados (uma atitude tipicamente burguesa) e começa a comprar os comerciados localmente.

Porém, Thomas Mann também traz um debate sobre a Modernidade, com todas as correntes (sejam elas apologéticas ou críticas) entrando em confronto ao longo da obra, em uma verdadeira Torre de Babel filosófica. Ele demonstrava grande interesse pela obra de Nietzsche e Schopenhauer, e construiu situações e personagens nos quais idéias centrais para ambos os pensadores, como “vontade” e uma forte crítica aos limites da razão, são decisivas.

Fontanella também alega que “A Montanha Mágica” é “o romance em que se pretende representar o declínio fatal da civilização alemã de européia do século XIX rumo à Primeira Guerra Mundial, o naufrágio de seu ideal de cultura.” (Fontanella, 2000, p. 8) De fato, as circunstâncias em que a obra foi escrita confirmam esta tese. Thomas Mann, durante a maior parte da guerra, manteve posições conservadoras, como a defesa do II Reich. Chegou a redigir um ensaio no qual se justificava: “Reflexões de um Apolítico”. Não é preciso dizer o quanto tal visão contrastava com a de seu próprio irmão, o engajado socialista Heinrich Mann. Porém, nos últimos meses do conflito, o autor de “Morte em Veneza” desiludiu-se com os rumos de seu próprio país – e com a civilização européia em geral -, e iniciou uma gradual transição ideológica para algo próximo do social-liberalismo. “A Montanha Mágica” é um registro dos primórdios dessa mudança de mentalidade sociopolítica.

Da mesma forma que este romance enquadra-se na categoria de “Bildungsroman”, não seria exagero de nossa parte afirmar que Thomas Mann foi um “prototípico intelectual da Bildung”, mesmo quando suas convicções ideológicas mudaram e ele passou a defender a “politização do espírito” e “a consideração simultânea dos dois lados da liberdade: a pessoal e a política” (Souza, 2000, p. 150).

Quanto ao caráter pedagógico e filosófico do romance, há um trecho em especial que demonstra sintonia com os conceitos que acabamos de discutir. O narrador fala do princípio do “placet experiri”, muito caro a Hans Castorp. Trata-se da preocupação, presente já em Humboldt e Schiller, em aprender e descobrir mais sobre si mesmo e a realidade de uma forma lúdica e empírica:

“Hans Castorp pressentia, pressentia com absoluta nitidez, que essas experiências, fosse qual fosse o rumo que tomassem, não poderiam levar a um fim não insípido, não incompreensível, não desprovido de dignidade humana. Assim ardia por fazê-la. Percebia que “ociosa ou pecaminosa”, essa alternativa já de per si bastante triste, não constituía em realidade nenhuma alternativa, mas era uma mesma coisa, e que a inutilidade espiritual não era senão a forma de expressar, fora da moral, o caráter proibido da experiência. O princípio do placet experiri, porém, que lhe inculcara certa pessoa que indubitavelmente desaprovaria com a maior veemência tentativas dessa espécie, continuava arraigado em Hans Castorp. Aos poucos coincidia a sua ética com a sua curiosidade, o que, na verdade, sempre fizera; com essa mesma curiosidade irrestrita, própria de um viajeiro ávido de formação, que, ao saborear o mistério da personalidade, talvez já se achasse próxima do domínio que agora se lhe deparava, e a qual revelava uma espécie de espírito militar, por não se esquivar da esfera vedada, desde que esta se oferecia a ela.” (Mann, 2000, p. 904-905)

3. Settembrini, o pedagogo iluminista

"A liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e a maldade." (p. 514)

Um personagem paradoxal.

A defesa do Humanismo.

“Humanista? Claro que o sou. O senhor nunca me apanhará manifestando tendências ascéticas. Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida, contra a aversão sentimental ao mundo; represento o Classicismo contra o Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação, meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! ‘O senhor é humanista!’ Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza. Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso será inútil o senhor me acusar de obscurantismo cristão...” (pp. 340-341)

A crença veemente no progresso, típica do Iluminismo.

Settembrini como síntese do pensamento político moderno.

– Protesto! – gritou Settembrini, enquanto o seu braço teso estendia ao anfitrião a xícara de chá. – Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica do indivíduo! Protesto pela terceira vez contra aquela alternativa vexatória entre o prussianismo e a reação gótica diante da qual o senhor nos quer colocar! A democracia não tem outro sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. A verdade e a justiça são as jóias da coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os interesses estatais talvez até assumam a aparência de potências inimigas do Estado, posto que, em realidade, visem ao seu bem superior, ao bem supra terreno. O Renascimento como origem da idolatria do Estado! Que lógica mais bastarda! As conquistas – emprego essa palavra no sentido literal! –, as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade, direitos do homem, liberdade! (p. 544)

O projeto da Enciclopédia como forma de ativismo político.

Pensamentos sobre arte, sociedade e política.

No diálogo a seguir, o italiano demonstra de forma desconcertante seu desapreço pela música:

“– O senhor chega tarde ao concerto, Sr. Settembrini. Já está quase no fim. Não gosta de música?

“– Por ordem superior, não – replicou Settembrini. – Nem quando é ditada pelo calendário. Não simpatizo com ela, quando tem um cheiro de farmácia e me é ministrada pelas autoridades para fins sanitários. Estimo ainda um pouco a minha liberdade, ou pelo menos aquele restinho de liberdade e dignidade humana que sobra a gente como nós. Em ocasiões como esta, costumo comparecer como visitante (...). Fico durante um quarto de hora e depois vou-me embora. Isso me dá a ilusão de independência... (...) A música? Representa ela tudo o que existe de semi-articulado, de duvidoso, de irresponsável, de indiferente; (...) é perigosa porque induz a gente à complacência satisfeita. (...) Aparentemente a música é toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo. Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma antipatia de caráter político.” (pp. 156-157)

Ambigüidades no pensamento do italiano.

Contrapontos com Hans Castorp.


4. Naphta, o revolucionário conservador

“Hans Castorp havia esperado que Naphta advogasse a conservação do suplício. Opinou que este talvez fosse tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido conservador, como revolucionário do conservantismo.” (p. 627)

Biografia. Morte do pai. Angústias intelectuais. Conversão à companhia dos jesuítas.

Análise sobre a mentalidade política e filosófica do personagem Leo Naphta. Em um de seus embates com Settembrini, chega a apelar para o relativismo cognitivo:

“Verdadeiro é o que convém ao homem. Nele se acha resumida toda a natureza; em toda a natureza, apenas ele foi criado, e toda a natureza foi feita só para ele. Ele representa a medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade. Um conhecimento teórico que carecesse da relação prática com a idéia da salvação do homem seria de tal maneira desprovido de interesse que deveríamos negar-lhe todo valor como verdade e não poderíamos admiti-lo.” (p. 543)

A mescla de judaísmo, cristianismo, socialismo e nacionalismo. Em um dos trechos mais polêmicos da obra, Naphta coloca o socialismo como a última expressão da fé cristã:

“Esses espíritos realmente humanos julgavam asquerosa a idéia de um aumento automático do dinheiro. (...) Não eram propensos a apreciar muito o próprio trabalho, pois ele é apenas um assunto ético e não religioso, e se realiza a serviço da vida e não de Deus. (...) Queriam eles que a produção se acomodasse às necessidades e abominavam a produção em massa. Bem, depois de séculos de soterramento ressurgem todos esses princípios e padrões econômicos no movimento moderno do comunismo. A semelhança é completa, até no significado da reivindicação da soberania, que pleiteia, contra a camada internacional de comerciantes e especuladores, o trabalho internacional, o proletariado do mundo, que hoje em dia opõe a humanidade e os critérios da Cidade de Deus à depravação burguês-capitalista. A ditadura do proletariado, essa exigência de salvação política e econômica dos nossos tempos, não tem o sentido de um domínio pelo domínio e por toda a eternidade, mas sim o de uma ab-rogação temporária do conflito entre o espírito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominando-o, o sentido da transição e da transcendência, o sentido do Reino. O proletariado retomou a obra de Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes.” (p. 550)

A “rebeldia aristocrática” é uma posição recorrente no pensamento ocidental. O exemplo mais notório é o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Dionisíaco. Transvaloração de todos os valores. Niilismo.

Voegelin e a “psicologia do revolucionário”. A transcrição que faz do discurso de Robert Hooker sobre a mentalidade do puritano radical é uma das passagens mais poderosas de sua obra.

Aproximações e divergências com Hans Castorp. Niilismo ativo e passivo.


5. Finis Operis: os dilemas da Liberdade

Retomada da discussão sobre a “bildung”, desta vez relacionada ao amadurecimento de Castorp. O contato com Mynheer Peeperkorn.

“Deixavam-no em paz, pouco mais ou menos como se faz com um aluno que goza do estado singularmente feliz de já não ser examinado nem ter necessidade de trabalhar, porque a “bomba” é um fato consumado e ninguém mais se preocupa com ele; um tipo orgiástico de liberdade – digamos isso de passagem, perguntando-nos se a liberdade pode jamais ter outra natureza que não precisamente esta.”

(p. 973)

O duelo.

“Quem era, afinal de contas, o livre-pensador e quem o homem pio? Onde se achava a verdadeira posição, o genuíno estado do homem? Devia ele desfazer-se, de modo tão libertino quanto ascético, no seio da coletividade absorvente e niveladora de tudo, ou cumpria-lhe tomar o partido do “indivíduo crítico”, em cujo interior se debatia o conflito entre a estroinice e a austeridade virtuosa do burguês?” (p. 637)

O destino de Hans Castorp: como o desfecho do romance contribui para a discussão sobre Liberdade. Cidadela interior e partida para a guerra.

Causas e fatores que influenciam, positiva e negativamente, a individualidade plural. Homens em tempos sombrios, Sanatório e cozinha.

“Adeus – para a vida ou para a morte! Tens poucas probabilidades a teu favor. O macabro baile ao qual te arrastaram durará ainda vários anos malignos. (...) Certas aventuras da carne e do espírito, sublimando a tua singeleza, fizeram teu espírito sobreviver ao que tua carne dificilmente poderá resistir. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de “rei”, viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?” (p. 986)

Sendo assim, “A Montanha Mágica” é um libelo pela liberdade e pela busca de um sentido existencial: “é lícito compreendê-la como um livro escrito contra o niilismo de seu tempo” (Fontanella, 2000, p. 43).

Possibilidades de compreensão sobre o que é ser livre.

A despeito de todos os seus excessos, Settembrini é o escolhido para proferir a epígrafe deste artigo. Embora tenha malogrado como pedagogo de Castorp, sua honestidade intelectual e genuína bondade compensam seus problemas teóricos e ideológicos. Não por acaso, diante da situação extrema do duelo requisitado por Naphta, ele respondeu a seu “discípulo” com melancolia, mas coragem. Se isso foi uma apologia à “guerra pela paz e pela democracia” (um dos mais famigerados “pontos de honra” do Ocidente) ou apenas uma defesa do homem fiel aos seus princípios, cabe ao leitor decidir:

“Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal não é digno dele. Em que pese a nossa espiritualização, cumpre sermos homens.”

(p. 964)


Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. “Homens em Tempos Sombrios”. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

BERLIN, Isaiah. “Dois Conceitos de Liberdade”. IN: “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.

FONTANELLA, Marco Antonio Rassolin. “A Montanha Mágica como Bildungsroman”. Campinas, 2000.

GUSMÃO, Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de. “Constant e Berlin: a liberdade negativa como a liberdade dos modernos”. IN: SOUZA, Jessé. “Democracia hoje: Novos desafios para a teoria democrática contemporânea”. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

_________________________________________ “Um elogio do conhecimento de senso comum na investigação social”. Revista da Casa de Rui Barbosa, v. 1, p. 237-258, 2007.

HAMILTON, Nigel. “Os Irmãos Mann: As vidas de Heinrich e Thomas Mann”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

HAYEK, Friedrich von. “Os Fundamentos da Liberdade”. Brasília: Universidade de Brasília, 1983.

HUMBOLDT, Wilhelm von. “Os Limites da Ação do Estado”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

MANN, Thomas. “A Montanha Mágica”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

MERQUIOR, José Guilherme. “O Liberalismo: Antigo e Moderno”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

NIETZSCHE, Friedrich. “Além do Bem e do Mal”. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.

SCHILLER, Friedrich. “A Educação Estética do Homem”. São Paulo: Iluminuras, 2002.

SOUZA, Jessé. “A Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro”. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.

TOCQUEVILLE, Alexis de. “A Democracia na América”. São Paulo: Itatiaia, 1998.

VOEGELIN, Eric. “A Nova Ciência da Política”. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.



[1] Existe outra tese, o “separatismo II”, que, embora rejeite o monismo, também insiste no caráter eminentemente científico da investigação social: “a moderna teoria social implica uma ruptura efetiva com o chamado conhecimento do senso comum, com o saber da vida cotidiana” (Gusmão, 2007, p. 251)

[2]Referimo-nos, por exemplo, à apropriação de conceitos e posições defendidas pelos filósofos intitulados “pós-modernos”. Para maiores detalhes, recomendamos: Alan Sokal e Jean Bricmont, “Imposturas Intelectuais”, Rio de Janeiro, Record, 2006.

[4] Segundo Rothbard, “um problema grave com esta formulação é que um homem pode ser considerado ‘livre’ na proporção que suas vontades e desejos são extintos, por exemplo, por condições externas.” Vide Murray Rothbard, “A Ética da Liberdade”, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pp. 291-294.

[5] Sobre esta controvérsia terminológica, vide Milton Friedman, “Capitalismo e Liberdade”, São Paulo, Arte Nova: 1976 e Friedrich Hayek, “O Caminho da Servidão”, Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1994.