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04 outubro 2009

O Liberalismo Beletrista: Reflexões sobre o perfil ideológico da UDN

Neste texto, procuraremos discutir os fundamentos do pensamento político liberal da União Democrática Nacional, assim como suas limitações. A UDN foi um dos mais importantes partidos do período democrático que o Brasil experimentou entre 1945 e 1964, e teve participação decisiva em vários momentos históricos, como a eleição de Jânio Quadros e o golpe militar de 64. Analisá-la-emos através de quatro diferentes perspectivas: Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), político udenista; Maria Victoria de Mesquita Benevides (1942), socióloga; Vamireh Chacon (1934), professor emérito; e Oscar Pilagallo (1965), jornalista da Folha de S. Paulo.

Comecemos por Afonso Arinos, que foi um dos mais destacados e eruditos membros da UDN. Em sua trajetória, foi jurista, deputado federal (1947-1958), senador (1959-1966 e 1987-1990), ministro das Relações Exteriores do governo Jânio Quadros (1961) e do gabinete do 1° ministro Brochado da Rocha (1962). Ligava-se à ala dos “bacharéis” de seu partido, considerados liberais históricos; também faziam parte desse agrupamento políticos como Milton Campos, Pedro Aleixo e Prado Kelly.
Em seus escritos, ele coloca a UDN como “legítima herdeira da tradição liberal da reforma dos costumes políticos e administrativos” (FRANCO, 1980: 87), pois assume posições que se encaixam no “padrão do liberalismo burguês” (Ibidem, p. 87): moralização da política, garantia das liberdades individuais, limitação da intervenção estatal na economia e a defesa do progresso democrático. Porém, ele enfatiza: é um ideário liberal mais político que social - o que Benevides apontará como clara “distinção entre liberalismo e democracia” (BENEVIDES, 1981: 247) na retórica udenista.
Afonso Arinos ressalta que esse liberalismo seria “anacrônico em países onde a prática formal da democracia já se encontra solidamente conquistada”; porém, no Brasil, “a conquista da forma democrática ainda não se processou completamente, nem está livre de riscos” (FRANCO, 1980: 87). Tal afirmação pode ser considerada como uma expressão moderada do elitismo da UDN, muitas vezes sintetizado na frase “O Brasil ainda não tem cidadãos”. Sendo assim, caberia ao partido uma missão quase pedagógica: guiar, por meio de seu grupo de notáveis, as massas rumo a um futuro de prosperidade. A freqüente ênfase em suas lideranças “espirituais”, como o brigadeiro Eduardo Gomes, “o Prestes da burguesia” (Ibidem, p. 87), demonstra essa concepção.
A UDN também se notabilizou pela constante contradição entre posições progressistas e reacionárias. Por um lado, foi reconhecidamente a agremiação que mais se posicionou contra a cassação dos parlamentares do PCB (Partido Comunista Brasileiro), em 47; defendia a autonomia e livre associação sindical, contrapondo-se ao sindicalismo de Estado de seus adversários populistas; o já citado Afonso Arinos foi autor de uma famosa lei que proíbe a discriminação racial, e também um dos responsáveis pela “política externa independente” do governo de Jânio Quadros; o programa udenista de 1957 falava em reforma agrária e educacional; era, também, o único partido que assumia formalmente preocupação “com o desenvolvimento científico e tecnológico” (CHACON, 1998: 163).
Porém, também foi a União Democrática Nacional quem, sempre que tinha reveses políticos e eleitorais, defendeu o golpismo. Em pelo menos quatro ocasiões, seus membros protagonizaram crises políticas: em 1954, quando desejaram derrubar o presidente Getúlio Vargas, tendo sido frustrados pelo suicídio dele; um ano depois, procuraram impedir a posse de Juscelino Kubitschek; em 61, queriam evitar que, após a renúncia de Jânio Quadros, o vice João Goulart, um herdeiro político de Getúlio e também nacionalista de esquerda, assumisse a Presidência; e, finalmente, apoiaram a bem-sucedida intervenção militar de 1964.
Outro ponto de controvérsia sobre os udenistas é a sua posição ambígua quanto à democracia. Benevides, por exemplo, sustenta que a defesa do livre mercado, da propriedade privada e dos direitos individuais não necessariamente “leva à democratização da sociedade”, pois esta supõe “a extensão da cidadania política e o reconhecimento da soberania popular” (BENEVIDES, 1981: 248). Embora agradasse à classe média e à imprensa por ser o “partido da eterna vigilância (...), a UDN, elitista, não aceitava a participação política das classes populares” (PILAGALLO, 2002: 78).
Conciliar a defesa da igualdade política com o combate às desigualdades sociais foi um constante dilema para o liberalismo udenista, mas que acabou optando pela 1ª causa em detrimento da 2ª. Sendo assim, o discurso de que “o povo não sabe votar” foi recorrente; Carlos Lacerda, em 64, justificou o golpe militar como um meio de evitar o “golpe por via eleitoral”. Afonso Arinos, que foi um dos udenistas contrários ao movimento de 31 de Março, reconheceu que boa parte de seus colegas de partido eram hostis ao progresso social e não hesitavam em buscar soluções autoritárias para defenderem seus interesses políticos.
De certa maneira, o programa da UDN facilitava a constante pecha de ser um partido tão “ruim de voto”. Tomando como exemplo as eleições presidenciais de 1950, Oscar Pilagallo relembra um comentário da Folha da Manhã (atualmente, Folha de S. Paulo) feito na época: “Getúlio Vargas fala ao ‘homem da rua’. Eduardo Gomes é o campeão das liberdades democráticas que constituem preocupação apenas da elite e não do povo” (Ibidem, p. 70).
Além disso, o partido freqüentemente adota um tom saudosista, como quando relembra o eleitorado sobre o fato de possuir remanescentes da Campanha Civilista (1909-10), da Reação Republicana (21), da Aliança Liberal (30) e do Manifesto dos Mineiros (43). De fato, é possível dizer que há bastante conservadorismo em um discurso que se sustenta na herança, na tradição – enfim, na “volta ao passado” (BENEVIDES, 1981: 249). A autora de “A UDN e o udenismo” retoma o pensador Edmund Burke (1729-1797), grande expoente da aversão conservadora a mudanças do status quo, para explicar a ideologia udenista. Este partido, segundo Maria Benevides, enfatizou a ordem a ponto de, quando julgou necessário, sacrificar a liberdade e a democracia em nome delas. Mesmo o “suicídio” da legenda, em razão do apoio de vários udenistas ao AI-2 (1965) – que extinguiu os partidos -, é um exemplo disso.
Relaciona-se com isso a observação de que, por mais que se empenhasse na retórica liberal, a UDN, junto com seus rivais do PSD (Partido Social Democrático), no fundo, era um dos “partidos de interesses”, considerados “imediatistas e, em geral, conservadores” (CHACON, 1998: 184). Contrapõe-se, assim, a legendas mais “ideológicas” como o PSB (Partido Socialista Brasileiro), o PDC (Partido Democrata Cristão) e, é claro, o PCB. Por mais que tivesse forte base entre grupos intelectuais urbanos (professores, cientistas e jornalistas, p.ex.), e “demonstrava”, através de lideranças como Carlos Lacerda, “que também a classe média consegue mobilizar-se” (Ibidem, p. 185), no fundo era um partido de quadros, com grande influência de latifundiários, grandes proprietários e da alta burguesia. Para Chacon, a dualidade da UDN pode ser assim resumida: “senhorial nas bases locais, (...) e liberal (...) diante do seu eleitorado urbano” (Ibidem, p. 151).
Benevides vai além, ao sugerir que o partido utiliza a “máscara liberal como justificação de combate a Getúlio” (BENEVIDES, 1981: 242). Ou seja, “estava em causa a oposição a Getúlio Vargas, e não ao autoritarismo do regime por ele instalado” (Ibidem, p. 246). Esta análise se pauta pela constatação de que muitos udenistas, independentemente da ala – “bacharéis”, a “Banda de Música” (a mais anticomunista, liderada por Lacerda), os “realistas” (tradicionalistas, apoiavam-se em várias oligarquias destituídas no período varguista) e a “Bossa Nova” (segmento mais reformista e populista, decisivo para o apoio a Jânio em 60) -, preocupavam-se bastante com a manutenção da ordem social e de um Estado forte, pautado pela autoridade e a disciplina. São objetivos bem parecidos com os do Estado Novo de Vargas (1937-1945). Por outro lado, Getúlio, em sua conciliação populista, também buscava o diálogo com os trabalhadores urbanos, ao invés de apenas encará-los como “massas”.
Em meio a “uma autêntica Arca de Noé, mas com o rumo apontado para a centro-direita” (CHACON, 1998: 152), a UDN se constituiu em uma espécie de “beletrismo político”, pois suas lideranças se consideram dotadas de um “sentido de excelência”; ou seja, elites cultas e preparadas para garantir o progresso ao Brasil, sem que haja necessidade de intensa mobilização popular ou de uma interlocução paternalista com a sociedade. A União Democrática Nacional se identifica com o legado do liberalismo pré-democrático, tanto no âmbito do discurso – sob a égide de filósofos como John Locke (1632-1704) – quanto na prática, pois, quando resgatam a memória dos supracitados movimentos liberais brasileiros da 1ª metade do Século XX, “seus herdeiros não apenas se apropriam do legado, como com ele se identificam” (BENEVIDES, 1981: 243).
Dos quatro autores utilizados, verifica-se, destarte, que Pilagallo, ao buscar apresentar a visão da Folha de S. Paulo, revela como a linha editorial deste jornal nutria amor e ódio pela UDN; alinhava-se com ela na simpatia ao capitalismo cosmopolita e na luta contra o populismo, mas discordava do tom reacionário e anti-reformista que os udenistas adotavam. Enquanto isso, Afonso Arinos, embora enalteça o espírito liberal e progressista de sua antiga agremiação, reconhece que a heterogeneidade do partido, dividido entre o moralismo e a inapetência pelo poder dos liberais históricos e o pragmatismo governista dos “realistas”, acabou favorecendo os últimos.
Maria Benevides, em seu estudo, tem como prioridade revelar as contradições e ambigüidades de uma agremiação que, para ela, “se revela progressista no que se opõe e reacionária no que propõe” (BENEVIDES, 1981: 281). Chacon, por sua vez, afirma que “os programas nacionais udenistas (...) apresentam o discurso liberal mais coerente e consistente da Quarta República”, mas “sua tragédia consistiu na sua origem, dentre ‘bacharéis’ liberais, que não conseguiam permear os ‘realistas’, sendo antes engolfados por estes, (...) rumo ao golpismo” (CHACON, 1998: 165).

“O preço da liberdade é a eterna vigilância”; eis o famoso lema da União Democrática Nacional. É também sintomático na revelação do “núcleo” conservador inerente à “crosta” liberal da UDN. Em outras palavras, o partido, em seus vinte anos de existência, não conseguiu superar um elitismo que, em nome da estabilidade e do medo de mudanças bruscas, freqüentemente o levava a tomar posicionamentos reacionários e contra a legalidade. O liberalismo beletrista não teve sucesso em impedir o fortalecimento e subseqüente vitória, em 1964-5, do grupo udenista que não tinha medo em se assumir autoritário e com pretensões de chegar ao poder. Ironicamente, o partido que mais defendia a liberdade foi justamente aquele que teve maior peso na destruição da mesma. Por outro lado, ensinou aos seus herdeiros – e também aos adversários - uma lição valiosa: a defesa dos direitos individuais e da igualdade política, por si só, não constitui alicerce suficiente para a manutenção da ordem democrática.

Referências Bibliográficas
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro, 1945-1965. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
CHACON, Vamireh. História dos Partidos Brasileiros. Brasília: Editora Universidade Brasília, 3ª ed., 1998.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil. São Paulo: Alfa Ômega, 3ª ed., 1980.
PILAGALLO, Oscar. O Brasil em Sobressalto: 80 Anos de História Contados pela Folha. São Paulo: Publifolha, 2002.
(P.S.: Minha revisão bibliográfica de PB2.)