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05 setembro 2011

Os Filhos Enfermos de Goethe e Mann

Os Filhos Enfermos de Goethe e Mann: A Bildung em “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” e “A Montanha Mágica”

1. Introdução: os dois grandes romances da “Bildung”

Embora Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) seja mais conhecido pelo romance epistolar “Os Sofrimentos do Jovem Werther” e pela tragédia “Fausto”, ele prestou outra contribuição seminal à Literatura com “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, em 1796. Esta obra conta a trajetória de Wilhelm, um jovem que abandona o lar burguês para ingressar em uma companhia de teatro, pois deseja ter uma formação universal, que lhe seria impossível no seio da burguesia. Ao longo da trama, ele passará por experiências e dilemas que o farão refletir sobre as possibilidades e limitações de seu ambicioso projeto pessoal.

A importância deste grande romance reside, dentre outros aspectos, no fato de ter consolidado um novo gênero literário: o “Bildungsroman”, no qual há uma ênfase no amadurecimento intelectual, emocional e espiritual do protagonista. Friedrich Schlegel, contemporâneo de Goethe, chegou a afirmar que “as três grandes tendências de nossa época são a Doutrina das Ciências [de Fichte], Wilhelm Meister e a Revolução Francesa.”

Já no século XX, o também alemão Thomas Mann (1875-1955), que já era bastante conhecido por público e crítica graças às obras “Os Buddenbrooks” e “Morte em Veneza”, alcançou seu ápice artístico com “A Montanha Mágica” (1924), freqüentemente ligada à tradição do “Bildungsroman”. Temos aqui a história do franzino Hans Castorp, engenheiro recém-formado que, ao visitar o primo tuberculoso em um sanatório nos Alpes suíços, descobre que também tem problemas pulmonares. Em meio a um ambiente bastante diferente ao que ele estava acostumado em sua vida na “Planície”, Hans acaba passando os sete anos seguintes de sua vida no sanatório, nos quais cultivou a sua personalidade em várias direções.

De um lado, temos o autor central do Classicismo de Weimar, corrente literária que promoveu a recuperação de valores estéticos de Antiguidade e buscou uma harmonização entre pensamento e sentimento, mente e corpo; enfim, um meio-termo entre Iluminismo e Romantismo. Do outro, o último escritor à moda do século XIX, geralmente associado ao Realismo Tardio, e que ao longo da vida passou de um pessimismo apolítico a um compromisso simultâneo pela liberdade individual e pela liberdade política. É certo que a distância temporal entre Goethe e Mann faz com que os seus respectivos romances de “Bildung” apresentem fortes contrastes em seu conteúdo político e filosófico. Porém, ao mesmo tempo, há entre eles continuidades igualmente relevantes.

O propósito deste artigo é comparar “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” e “A Montanha Mágica”, visando a responder às seguintes questões: em primeiro lugar, em que medida as trajetórias tortuosas de seus respectivos personagens principais representam o ideal da “Bildung”; segundo, de que forma os protagonistas são orientados por seus pedagogos, sejam estes humanistas[1] (a Sociedade da Torre, Settembrini), religiosos (a canonisa) ou vitalistas[2] (Naphta, Peeperkorn), e como eles afetam a sua formação; por fim, como as diferenças de contexto histórico entre Goethe e Mann explicam as divergências – mas também semelhanças – entre os ideais de Wilhelm e Hans. Pretendemos compreender qual foi a contribuição de ambos os escritores para se pensar a “Bildung”.

Para um retrato mais apurado das ideias políticas e filosóficas dos autores em questão, serão levadas em conta as cartas que Schiller enviou a Goethe durante o período em que este escrevia “Wilhelm Meister” e o ensaio “Considerações de um Apolítico” (1918) de Thomas Mann, escrito poucos anos antes de “A Montanha Mágica”. Estes documentos são fontes históricas que permitem entender como ambos os romances de formação transcendem a poética e se integram aos debates intelectuais dos respectivos contextos de Goethe e Mann.

Filósofos (Lukács, Kaufmann), historiadores (Caldas), críticos literários (Bruford, Fontanella, Maas, Rosenfeld), sociólogas (Dayan-Herzbrun) e antropólogos (Dumont) também servirão de base para a comparação entre “Wilhelm Meister” e “A Montanha Mágica”. Uma justificativa teórica para abordar estes obras literárias com autores de áreas tão diversas pode ser encontrada em Jacob Burckhardt, pensador de notável interdisciplinaridade. Para ele, importa mais uma análise completa do objeto de estudo do que se adequar a uma disciplina específica das Humanidades: “as antigas subdivisões e os antigos métodos tornaram-se insuficientes, tanto nos livros quanto na cátedra. Assim, temos completa liberdade de movimento. (...) Em resumo, o que nos deve levar a ler inteiramente os autores é a convicção de que o que é importante para nós somente nós o poderemos encontrar. ”[3]

2. Uma Revisão Bibliográfica sobre Bildung e Bildungsroman

Dois conceitos alemães serão centrais para o desenvolvimento de nossa discussão: “Bildung” e “Bildungsroman”. Comecemos pelo primeiro, que teve suas origens na teologia pietista, a qual reforçou o lado introspectivo do cristianismo praticado entre os germânicos após a Reforma. Porém, ao longo dos séculos, começou a ser associado com a libertação da mente das tradições e superstições, inclusive no sentido político (oposição ao regime feudal). No fim do século XVIII, este termo passou a designar o projeto humanista, tanto filosófico quanto educacional, de aprimoramento e harmonização dos talentos individuais.

Traduzível por “formação” ou “auto-cultivo”, a “Bildung” é um processo de desenvolvimento da personalidade. Este aperfeiçoamento não se resume à “inteligência enciclopédica” pregada pelo Iluminismo, mas envolve também a elevação espiritual, o refinamento emocional e o aperfeiçoamento moral do indivíduo; enfim, uma formação universal. Uma definição clássica do objetivo da “Bildung” foi enunciada por Humboldt: “A verdadeira finalidade do Homem (...) é a da formação a mais alta e harmoniosa possível de suas forças em direção a uma totalidade completa e consistente.” (HUMBOLDT, 2004: 143)

A “Bildung” pode ser vista como a união entre o auto-desenvolvimento e a responsabilidade social. Louis Dumont vai além, e fala em uma mescla de individualismo auto-cultivado e holismo comunitário. (cf. DUMONT, 1994: 19) Esta formação universal do indivíduo não afeta a sua afiliação em uma comunidade nacional – inclusive uma expansionista –, porém exclui a ideia de sociedade, e os conflitos sociopolíticos subjacentes. (Ibidem: 53-54) A ânsia por pureza, verificada na busca da autonomia do conhecimento e da arte, em oposição ao “utilitarismo” da vida prática (o que inclui, de certa maneira, a política), é uma marca da “Bildung” de muitos intelectuais alemães. (cf. CALDAS, 2007: 4)

Quanto ao “Bildungsroman”, a concepção canônica é de Karl Morgenstern, em 1820. Para ele, esta forma de romance “representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance”. Morgenstern coloca “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” como paradigma do gênero, dentre outros motivos, por este livro ter representado “em tão alto grau e em tão vasta dimensão ‘o aperfeiçoamento universal harmônico daquilo que é autenticamente humano’ e de ter aspirado ‘ao mais belo ideal da formação da humanidade neo-européia e da época. ’” (MAAS, 2000: 46-47)

Wilma Maas, entretanto, defende um conceito mais flexível para o romance de formação, o qual encontrou em Jürgen Jacobs: “devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão de enganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo”. Para que isso ocorra, “o protagonista deve ter uma consciência mais ou menos explícita de que ele próprio percorre não uma seqüência mais ou menos aleatória de aventuras, mas sim um processo de autodescobrimento e de orientação no mundo.” (Ibidem: 62) Além disso, ele deve passar por experiências típicas à separação da casa paterna: a atuação de mentores e de instituições educacionais, o encontro com a esfera da arte, experiências intelectuais “eróticas”, o contato com o campo profissional e, se for o caso, também com a vida pública, política.[4]

Vemos, portanto, que o ideal da “Bildung” – e sua versão romanceada – visam a um cultivo da moralidade e da racionalidade, mas também da sensibilidade. Schiller, contemporâneo de Goethe, explica bem como a arte pode servir como pedagogia para a liberdade. Para ele, a liberdade política é a maior de todas as obras de arte; porém, ao invés de desenvolver no homem unicamente a faculdade da razão, cabe educá-lo para apreciar o belo; segundo Schiller, é da beleza que se vai à liberdade. Ele afirma, em “A Educação Estética do Homem”, que, por ampliar a percepção sensível e abrir o ser humano a todas as possibilidades, o estado estético é o mais fértil para o desenvolvimento do conhecimento e da moralidade. O sentido para o belo inclina o homem a agir virtuosamente:

“Pela disposição estética do espírito, (...) a espontaneidade da razão é iniciada já no campo da sensibilidade, o poder da sensação é quebrado dentro já de seus próprios domínios, o homem físico é enobrecido de tal maneira que o espiritual, de ora em diante, só precisa desenvolver-se dele segundo as leis da liberdade. O passo do estado estético para o lógico e moral (da beleza para a verdade e o dever) é, pois infinitamente mais fácil que o do estado físico para o estético (da vida meramente cega para a forma).” (SCHILLER, 2002: 114)

Não nos surpreende que, como veremos adiante, Schiller tenha analisado “Wilhelm Meister” munido de suas teorias estéticas, procurando no protagonista a expressão de seus ideais artísticos e filosóficos. Também é compreensível que Thomas Mann, o qual muito admirava o autor de “A Educação Estética do Homem”, tenha enfatizado o papel da disposição estética na formação de Hans Castorp, através da ideia de “placet experiri”: aprender e descobrir mais sobre si mesmo e sobre a realidade de uma forma lúdica e empírica.

3. O artista diletante: A formação de Wilhelm Meister

Nos três livros que compõem a trilogia sobre Wilhelm Meister (“A Missão Teatral”, 1785; “Os Anos de Aprendizado”, 1796; e “Os Anos de Peregrinação”, 1829), Goethe apresenta três facetas bem distintas do desenvolvimento de seu personagem. No primeiro, o foco é em sua carreira no teatro; o segundo oscila entre o palco teatral e o contato com uma sociedade secreta; e o terceiro mostra a sua especialização como médico-cirurgião. Por mais que a comparação entre as três obras seja um campo fértil de estudos, neste artigo trabalharemos somente com “Os Anos de Aprendizado”, em razão de sua importância para a fundação do gênero literário dos “romances de formação”.

As aventuras (e desventuras) de Wilhelm são motivadas por sua insaciável busca por uma formação universal. Como já foi dito, ele nasceu em uma família burguesa, mas está angustiado com as limitações que tal origem social lhe impõe. No Livro V (a obra é composta por oito), Wilhelm escreve uma carta a Werner, amigo de infância que se tornou um próspero e mesquinho burguês, na qual traça interessantes observações sobre as diferenças entre o auto-cultivo na nobreza e na burguesia. Enquanto o nobre não conhece limites, pois ele “tudo dá só com a apresentação de sua pessoa”, ao burguês “nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do limite que lhe está traçado”. Não lhe cabe perguntar “Quem és tu?”, mas “Que tens tu? Que juízo, que conhecimento, que aptidão, que fortuna?” (GOETHE, 2006: 285)

Apesar dessas dificuldades, Wilhelm não perde as esperanças de alcançar seu intento:

"Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. (...) Pois bem, tenho uma inclinação irresistível por essa formação harmônica de minha natureza, negada a mim por meu nascimento." (Ibidem: 284-286)

Visando a ser um homem público a despeito da origem não-aristocrática (lembremo-nos que a estratificação social nos principados alemães, no fim do século XVIII, era muito rígida), Wilhelm acredita ter encontrado na carreira teatral a possibilidade de atuar num círculo social mais amplo. Para Goethe, o teatro não é mero instrumento pedagógico: ele é a própria vida humana, fazendo prevalecer a individualidade dentro da circunstância encontrada.[5]

Wilhelm, entretanto, se desiludirá com a vida no palco. Tudo começa quando ele descobre as obras de Shakespeare, indicadas por Jarno (membro da Sociedade da Torre, algo que o protagonista ainda não sabia), e adquire uma compreensão mais clara das motivações humanas. Porém, o jovem continua pecando pela falta de realismo. Sua paixão pela arte é tão grande que minou a sua capacidade de entender as pessoas de carne e osso. A melancólica atriz Aurelie não poupa Wilhelm de uma forte crítica: “o senhor reconhece a verdade na imagem; (...) raramente tenho encontrado uma pessoa como o senhor, que conhece tão pouco os homens com os quais vive e tão radicalmente os confunde.” (Ibidem: 255)

Mesmo após o grande êxito da encenação de “Hamlet” que ele dirigiu, Wilhelm começa a se sentir desencantado com o teatro. Para piorar, Serlo (dono do teatro e irmão de Aurelie) e Melina (líder da companhia teatral) decidem, sem consultá-lo, trocar as encenações de peças francesas ou inglesas por óperas italianas, que eram mais populares e lucrativas. Ambos desprezavam os “ideais pedantes” de Wilhelm e sua pretensão de “educar o público”.

A formação de Wilhelm alcançou um novo patamar quando, no Livro VII, ele finalmente conheceu a sociedade secreta que o esteve vigiando durante todos esses anos: a Sociedade da Torre. Os dois principais pedagogos dela são o Abade e Jarno. Eles representam o viés social da “Bildung”; com isso, aquilo que começou como desenvolvimento pessoal termina como utopia política. É nesse ponto que se verifica uma espécie de neo-humanismo em Goethe: para ele, os indivíduos têm diferentes talentos, portanto precisam viver em uma sociedade em que estes talentos únicos se complementem, levando assim à harmonia social. Além disso, há forte influência do “Emílio” de Rousseau no que diz respeito à ideia de “educação pelo erro”, em que o indivíduo é deixado livre para cometer equívocos. De acordo com o Abade:

"Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas seu erro. Quem só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro, conquanto não seja demente." (Ibidem: 470-471)

Por sua vez, Jarno orienta Wilhelm com um tom mais sarcástico, muitas vezes debochando abertamente de suas escolhas e impressões sobre o mundo. Por exemplo, quando o jovem sai da companhia de teatro e lhe desabafa, decepcionado com os defeitos e leviandades que encontrou nos atores, Jarno não perdeu a oportunidade de corrigir Wilhelm:

"Pois saiba, meu amigo (...), o que me descreveu não foi o teatro, mas o mundo, e eu poderia encontrar em todas as classes sociais personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas. (...) Perdôo ao ator todos os defeitos do homem, mas não perdôo ao homem os defeitos do ator." (Ibidem: 417-418)

Wilhelm Meister, embora hesitante, acaba sendo aceito pela Sociedade da Torre, recebendo uma carta de aprendizado, que explicita os princípios pedagógicos do Abade, tais como “Agir é fácil, difícil é pensar; incômodo é agir de acordo com o pensamento” e “A imitação nos é inata, mas o que se deve imitar não é fácil de reconhecer.” (Ibidem: 472)

O heroi do livro também encontrará lições de vida nas “Confissões de uma Bela Alma” (Livro VI), escritas por uma canonisa de formação pietista. Embora o protagonista não pareça ter sido tão influenciado em sua conduta por estas “Confissões”, elas o ajudaram a se aproximar de Natalie, a “Amazona” que ao final do livro se torna sua noiva. Por “acaso” (por mais que esta palavra seja abominada pela Sociedade da Torre), ela era sobrinha da canonisa; ambas compartilham um forte senso de moralidade. Uma das passagens mais marcantes do relato da tia de Natalie é uma em que ela fala sobre a Liberdade:

"... eu constatava que a inestimável ventura da liberdade não consiste em fazer tudo o que se quer e para o qual nos convidam as circunstâncias, mas sim em poder fazer sem obstáculo nem reserva, pelo caminho correto, o que consideramos justo e adequado, e eu já tinha idade suficiente para chegar a essa bela convicção sem ter de pagar nesse caso pelo aprendizado." (Ibidem: 398)

Apesar desta farta orientação pedagógica Wilhelm permanece confuso até o fim da obra. Sua angústia é palpável quando ele chega a dizer que era inútil empenhar-se em agir segundo a própria vontade, pois lhe parecia que todos os seus planos de vida fracassavam – muitas vezes por interferência da Sociedade da Torre. Porém, quando uma reviravolta o leva a ficar noivo de Natalie, ele conclui com um leve otimismo: “não sei o valor de um reino, mas sei que alcancei uma felicidade que não mereço e que não trocaria por nada do mundo.” (Ibidem: 575) Embora encerre o livro sem alcançar a desejada formação universal, Wilhelm parece aceitar os limites que lhe foram impostos pela teia de relações sociais em que se envolveu.

No que diz respeito ao caráter pedagógico do romance, podemos recorrer à correspondência entre Goethe e Schiller. Este demonstrou bastante interesse por “Os Anos de Aprendizado”, e enviou várias cartas nas quais comentou cuidadosamente a obra. Schiller, contudo, fez algumas críticas, principalmente à insuficiência do “progresso” do personagem, chegando a reclamar da forma como o heroi do romance assimila seu aprendizado e mestria. Além disso, ele alegou que Wilhelm não desenvolveu plenamente seu estado estético: “poder-se-ia talvez ainda lembrar que nosso amigo não possui de todo aquela liberdade estética que o deixaria totalmente seguro para não cair em certos embaraços (...). Não lhe falta uma certa inclinação filosófica, própria a todas as naturezas sentimentais...” (GOETHE, 1993: 85-86)

Wilma Maas é outra que faz restrições à “Bildung” de Wilhelm. Ela recorre à fortuna crítica de autores românticos que eram contemporâneos a Goethe para problematizar a própria constituição do “Bildungsroman”. Um deles é justamente Schlegel, que citamos na introdução deste artigo. Embora tenha reconhecido no romance de Goethe, na “Doutrina das Ciências” de Fichte e na Revolução Francesa as três grandes tendências de sua era, ele complementa: “entretanto, todos os três são apenas tendências, sem concretização mais profunda.” Schlegel é categórico: “Um romance perfeito deveria ser uma obra de arte muito mais romântica do que o ‘Wilhelm Meister’; mais moderna e mais antiga, mais filosófica, mais ética e mais poética, mais política, mais liberal, mais universal, mais social.” (MAAS, 2000: 126-127)

Lukács é menos severo em seu diagnóstico. Para ele, a obra “está ideologicamente na fronteira entre duas épocas: dá forma à crise trágica dos ideais humanistas burgueses, ao início de sua superação – provisoriamente utópica – do marco da sociedade burguesa”, constituindo assim “ponto culminante na história da narrativa.” (GOETHE, 2006: 598-600)

Fontanella alega que o ideal da formação universal é substituído (ou limitado) pelo cultivo do tato social, isto é, “mediatizar a relação entre a convenção social e a rebeldia do indivíduo.” (FONTANELLA, 2000: 31) Em meio a tantos equívocos e descaminhos, Wilhelm reconhece o seu lugar na sociedade, mas não chega a abandonar totalmente a sua utopia.

4. O paisano curioso: A formação de Hans Castorp

Hans Castorp, o personagem principal de “A Montanha Mágica”, é um rapaz singelo, gentil e, embora burguês, de antepassados aristocráticos. Talvez por isso, muito embora seja um aprendiz de engenheiro, ele valoriza mais o ócio que o trabalho. Castorp teve uma experiência precoce e constante com a morte: entre os cinco e os oito anos de idade, viu a mãe, o pai e o avô falecerem. Esta tripla orfandade pode explicar o fascínio – e, ao mesmo tempo, a ausência de medo – que Hans tem pela morte. Não por acaso, a experiência do Sanatório Berghof, onde lida freqüentemente com a doença e o óbito, o interessa profundamente.

Embora não seja tão ansioso como Wilhelm, uma das características centrais de Hans é a sua curiosidade. Como já foi dito, ele tinha um impulso experimental, uma inclinação ao lúdico que o leva a empreender as mais diversas experiências durante os seus anos em Berghof: os estudos de Astronomia e Botânica, as “regências” (nome que dá para suas tentativas de reflexão sobre assuntos “elevados” como a vida e o tempo), a paixão pela excêntrica russa Clawdia Chauchat, as visitas amigáveis aos pacientes terminais, a fascinação pela música, as discussões filosóficas com Settembrini e Naphta, os passeios com Peeperkorn etc. Esta “Bildung” de Castorp chega a ser satirizada por Mme. Chauchat: “És um filósofo abstruso – disse ela. – Não pretendo compreender todos esses teus pensamentos confusos e alemães; mas eles soam humanos, e certamente és um bom rapaz.” (MANN, 2000: 819) [6]

Quanto aos pedagogos, Castorp tem a sua alma disputada pelo humanista liberal Lodovico Settembrini e pelo revolucionário conservador Leo Naphta. Em seus diálogos, estes dois personagens colocam-se em lados opostos nos mais diversos temas: saúde vs. doença, classicismo vs. romantismo, República Universal vs. Império, Iluminismo vs. Medievalismo – e, no limite, Progresso vs. Terror.

Settembrini lembra a caricatura do “Literato da Civilização”, presente nas “Considerações de um Apolítico” e inspirado no próprio irmão do autor, Heinrich Mann. Segundo ele, este tipo de intelectual, que se diz pacifista e democrata, visa à politização, à literaturalização, à intelectualização, à radicalização da Alemanha; enfim, à sua “humanização”, no sentido latino-político. Tudo isso, contudo, levaria a uma “desumanização”, no sentido alemão, portanto a uma “desgermanização”. (cf. MANN, 1978: 87) Porém, segundo Dumont, a atitude de Mann não é tão severa assim: o que ele critica no “Literato da Civilização” não é o seu cosmopolitismo (que ele próprio compartilhava), mas a predominância deste universalismo em detrimento do componente alemão. Autóctone e estrangeira, a Alemanha é encarada como ponto de encontro entre os antagonismos europeus, algo como a quintessência da Europa. (cf. DUMONT, 1994: 64-65)

Naphta, por sua vez, lembra o radicalismo e o “irracionalismo” dos primeiros escritos de Lukács, amigo de Mann: há no personagem uma combinação explosiva entre ideias oriundas de Marx e Nietzsche com a sua origem judia e conversão jesuíta. Mais paradoxal é o fato de, embora por instinto um revolucionário, ele ter trejeitos de aristocrata. Muito de seu caráter, segundo o narrador de “A Montanha Mágica”, se explica pelo passado trágico – p.ex., a morte violenta do pai. É legítimo dizer que Naphta é fundamentalmente um niilista, pois as contradições básicas entre aquilo que ele defende são certamente inconciliáveis. Seu suicídio, num duelo de armas, explicita a confusão que o atormentava. (cf. BRUFORD, 1975: 218)

Uma terceira via a estes dois pedagogos é representada pelo também vitalista (embora por motivos diferentes) Mynheer Peeperkorn, um histriônico holandês que representará na obra o impulso “dionisíaco” que já estava manifesto em sua amante (e a grande paixão de Castorp), Mme. Chauchat. Embora não seja tão distinto nas questões abstratas como Settembrini e Naphta, é imbatível em tudo aquilo que lida com o corpo e as emoções. Em trechos como o seguinte, Peeperkorn faz uma apologia ao sensualismo:

“Eu repito – prosseguiu com o dedo indicador em riste, enquanto na outra mão tremia o copo cheio –, repito: daí resulta a nossa obrigação, o nosso dever religioso de sentir. Nosso sentimento – compreende? – é a força viril que desperta a vida. A vida está dormindo. Quer ser acordada para celebrar bodas orgiásticas com o sentimento divino. Pois o sentimento, jovem, é divino. O homem é divino, desde que sente. É o sentimento de Deus. (...) O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria.” (MANN, 2000: 828)

Em meio a influências intelectuais tão diversas, Hans Castorp permanece até o fim do livro dividido entre tendências racionalistas, espiritualistas e sensualistas. Porém, um dos momentos decisivos do desenvolvimento de Castorp – muito embora (assim como ocorreu com Wilhelm Meister e as “Confissões de uma Bela Alma”) ele pouco se lembre desse acontecimento depois – ocorreu quando ele estava sozinho: o episódio da “Neve”.

Durante um passeio de esqui, Hans é surpreendido por uma nevasca, e se percebe perdido. Após se esconder atrás de um barraco abandonado, e embriagado pelo vinho que tomou para se manter aquecido, ele se deixar envolver por sonhos e devaneios dos mais estranhos, em que uma paisagem paradisíaca subitamente se torna um banquete sangrento. Quando acorda, ainda emocionado pelos sonhos, Castorp pronuncia a frase que pode ser considerada a sua carta de aprendizado: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos.” (MANN, 2000: 678)

Hans, nesta “regência”, sente responsabilidade pela conservação da vida, e coloca o amor e o bem acima da morte. Esta tensão dialética entre os impulsos de vida e morte, para Fritz Kaufmann, significa que a vida é preservada em sua decomposição, enquanto a morte é tanto um berço quanto um túmulo, e mais um meio do que um fim para a vida. (cf. KAUFMANN, 1975: 108) Já Anatol Rosenfeld diz que “Thomas Mann reconhece o alto valor dessa morte no suave comércio das ideias e nas aventuras do espírito.” (ROSENFELD, 1994: 26)

Outro momento do romance que reforça esta relação ambígua entre vida e morte é o capítulo em que o personagem começa a se interessar por música, o que ocorre quando os administradores do Sanatório Berghof compram uma vitrola para entreter os pacientes. Entre os diversos discos que lhe encantam, Hans sente uma profunda simpatia íntima pela “Tília” de Schubert. Thomas Mann aproveita para refletir sobre a “Bildung” de seu personagem:

“Poderá o leitor nos dar crédito se afirmarmos que o nosso singelo herói, depois de tantos anos de desenvolvimento hermético-pedagógico, penetrara bastante fundo na vida espiritual para ter consciência do “significado” do seu amor e do objeto amado? (...) Aquela canção significava muito para Hans Castorp, um mundo inteiro e justamente um mundo que ele amava, não há dúvida; pois, não fosse assim, não se enamoraria a tal ponto do símbolo que o substituía.” (MANN, 2000: 896)

O mundo do amor proibido que se abria atrás da canção era nada menos que a morte. Castorp, contudo, lembrando-se do que o moralista Settembrini tanto lhe alertava, soube ver o lado perigoso deste impulso. A canção era como um fruto que, embora fresco e viscoso, tendia à decomposição e putrefação. Hans repete aqui a constatação do episódio da “Neve”: é preciso ter cautela diante da “beleza irresponsável”, equilibrando os impulsos de vida e morte.

É importante salientar que o “amor” que Hans Castorp sentiu em situações como as duas que relatamos não é exatamente um amor erótico (como o que ele sente por Mme. Chauchat), tampouco um amor fraterno (“philia”), mas sim um amor universal (“agapé”):

“É o amor desinteressado dos mártires do cristianismo, a caridade, amor ao outro seja ele quem for. (...) Agapé é o melhor nome para compreender que espécie de amor é esta que enche Castorp de coragem e decisão. Nesta circunstância o amor significa uma vida sã e ativa empreendida por amor à própria vida, condicionada pela decisão que surge do conhecimento das relações entre o amor e a morte, bem como do reconhecimento da dignidade humana, da dignidade do ‘senhor das contradições’.” (FONTANELLA, 2000: 69)

Porém, o ambiente de Berghof, nos capítulos finais do livro, oscila perigosamente entre o tédio e a irritação. O suicídio de Peeperkorn seria uma das razões para isso, na medida em que o holandês muito animava o ambiente. Porém, em uma obra que tanto metaforiza a dramática situação sociopolítica da Europa (não por acaso, o enredo se passa entre 1907 e 1914), haveria outro motivo para esta atmosfera hostil: a proximidade de uma guerra inevitável. Castorp, preocupado com as turbulências no sanatório, não deixa de refletir sobre o espírito de discórdia que assola a todos em Berghof:

“O jovem estudara aquele demônio com a curiosidade irresponsável de um viajeiro em busca de formação e até descobrira na sua própria alma perigosas aptidões para desempenhar um papel importante no culto abominável que todo mundo lhe devotava.” (Ibidem: 939)

Este “Zeitgeist” demoníaco leva a situações trágicas; basta dizer que, em meio a tantas brigas no sanatório, houve o duelo de armas entre Settembrini e Naphta, no qual o judeu-jesuíta cometeu suicídio. Há uma profunda ironia nesta morte, afinal os dois pedagogos vitalistas, que não agüentaram as conseqüências de suas próprias filosofias existenciais (o hedonismo de Peeperkorn e o niilismo de Naphta), acabaram com as próprias vidas. Só sobreviveu o humanista italiano, ainda assim muito abalado pela morte do amigo-rival.

O desfecho do livro reserva mais uma reviravolta para Castorp: ele é convocado para lutar na guerra. Porém, se à primeira vista parece haver virtude cívica e senso de responsabilidade em sua prontidão – Hans não titubeou e imediatamente arrumou suas malas e se despediu de Settembrini –, uma interpretação mais amarga pode sugerir que há apenas desespero na atitude do heroi. Um meio-termo entre ambas estas visões, e que é coerente com o caráter de “Bildungsroman” desta obra de Mann, nos é oferecida por Rosenfeld: “Hans Castorp, para realizar-se, para fechar o círculo de sua educação humanista, tem de voltar à Planície. A vida revela-se o valor mais alto.” (ROSENFELD, 1994: 26)

5. Entre a Revolução e a Guerra: rupturas e continuidades entre “Os Anos de Aprendizado” e “A Montanha Mágica”

Uma comparação entre as duas obras necessariamente deve considerar os diferentes contextos históricos em que foram escritas. O “Bildungsroman” de Goethe, de 1796, é contemporâneo à Revolução Francesa, sendo que o enredo se situa um pouco antes dela, na década de 1780. Segundo Lukács, Goethe não tem fé “nos métodos plebeus da Revolução Francesa; estes ele recusou categórica e incompreensivamente. Mas isso não significa, para ele, uma rejeição dos conteúdos sociais e humanos da revolução burguesa.” (GOETHE, 2006: 594) Por exemplo, o nobre Lothario, um dos membros da Sociedade da Torre, pretende fazer uma reforma agrária em suas próprias terras e liquidar voluntariamente seus privilégios feudais, uma atitude que sugere a conciliação entre os interesses aristocráticos, burgueses e plebeus como uma possibilidade de evitar os rumos radicais da França pós-1789.

Por sua vez, “A Montanha Mágica” foi escrita imediatamente após a I Guerra Mundial (1914-1918), e o fato de seu último capítulo ocorrer justamente quando do desencadeamento do conflito é sintomático. O próprio prefácio de Mann a seu romance sinaliza este aspecto: “desenrolou-se numa época transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar.” (MANN, 2000: 7) Também podemos encontrar um caráter alegórico no fato de a história se passar num sanatório, o que representaria uma “Europa doente”.

É nesse sentido que, comparando o otimismo exacerbado da Europa do fim do século XVIII com o tom soturno do período entre as duas guerras, Rosenfeld oferece uma curiosa oposição entre ambos os romances de formação:

“Assim, o Wilhelm Meister de Goethe encontra em A Montanha Mágica uma espécie de continuação irônica, uma resposta parodiante: se Goethe disse aos românticos alemães de seu tempo: Não se afastem da sociedade; (...) integrem-se no coletivo – Thomas Mann parece perguntar, cento e vinte anos mais tarde, ao seu venerado mestre: Integrar-se sim, mas em que sociedade? Nesta sociedade conflagrada por guerras, produtora em série de alienados? Nesta sociedade em decadência, fragmentada e anormal, que parece ser a pista de loucos?” (ROSENFELD, 1994: 27)

Outro contraste entre os romances, mais psicológico, se dá no caráter de seus protagonistas. Wilhelm é um artista diletante, um burguês que deseja se tornar nobre. À medida, no entanto, que se torna mais autoconsciente e compreende melhor as relações sociais, abandona as inclinações artísticas e se envolve numa sociedade secreta de viés filantrópico. Hans Castorp, ao contrário, não anseia por uma metamorfose: “é um homem comum, um pouco apático, que não sofre consigo mesmo nem se enoja da vida que o circunda. Ele aceita o mundo como é e se aceita sem que isto implique resignação.” (CALDAS, 2006: 141) Porém, embora pareça ser insosso e passivo Hans é bastante curioso, além de atento ouvinte. As suas transformações ao longo da trama são sutis, sendo mais expressas em digressões do que em ações.

Quanto às semelhanças, a primeira delas é a mais óbvia: os epítetos utilizados por ambos os autores para se referirem a seus personagens: o “filho enfermo do rei” (Meister) e o “filho enfermiço da vida” (Castorp):

“O filho enfermo do rei é um tema de Plutarco: o rei, após encontrar uma bela e jovem noiva, a ela renuncia por seu filho, o qual, apaixonado, adoecera. Este tema revela-se na relativa renúncia de Peeperkorn a Chauchat por Hans Castorp no final da vida. (...) Em Goethe, para atestar a natureza hiper-sensível do protagonista e antecipar a sua união sonhada com Natalie.” (FONTANELLA, 2000: 11)

O viés ideológico de ambos os autores também apresenta certas congruências, apesar da distância histórica. Goethe abandona o romantismo trágico dos tempos de “Werther” e adota utopias de influência iluminista em “Os Anos de Aprendizado”. Mesmo assim, o escritor não deixou de dar um toque alemão a seus ideais: ele efetuou uma transição do individualismo do Iluminismo ocidental, o francês em particular, para o estabelecimento de uma individualidade e o seu desenvolvimento, ou “Bildung”, como um valor. (cf. DUMONT, 1994: 194)

Enquanto isso, Mann, tão conservador nas suas “Considerações de um Apolítico”, passa a defender a democracia social-liberal. Se antes se indignava com a fanfarronice democrática da Europa que pregava “human freedom and peace” (cf. MANN, 1978: 86), o desfecho da guerra lhe mostrou que estava lutando por uma causa perdida. “A Montanha Mágica” é um símbolo de sua transição ideológica, ao fazer o “ocidentalista” Settembrini sobreviver ao nacionalista Naphta. Thomas Mann se tornou justamente um “Literato da Civilização”, uma encarnação do Humanismo politizado. Sonia Dayan-Herzbrun explica bem esta transição:

“Após a guerra, entregando-se a uma autocrítica afetuosa, Thomas Mann reconhecerá que foi seu irmão Heinrich que tivera razão pregando a democracia, enquanto ele próprio ‘se comprazia na defesa melancólica de uma burguesia intelectual protestante, romântica e antipolítica’. Sua ‘passagem forçada à política’ é acompanhada de uma redefinição da democracia, que se torna a condição do exercício da liberdade individual, reconhecendo ‘na política e no social uma parte da totalidade humana’.”. (DAYAN-HERZBRUN, 1997: 79)

A socióloga também observa o que há de continuidade nesta nova posição de Mann:

“São, no entanto, os mesmos princípios fundamentais que o levaram a redigir as Considerações de um apolítico que o convencem a se engajar na defesa da República de Weimar e, depois, na luta contra o fascismo e o nazismo, ou seja, a primazia da ética individual, a defesa da liberdade e o amor por uma Alemanha cosmopolita, européia, pátria dos sem-pátria e de um ‘povo universal’.” (Ibidem: 79)

Exemplo disso ocorreu em 1930, quando, em um ensaio intitulado “Um Apelo à Razão”, ele alertou seus compatriotas sobre os riscos que a ascensão nacional-socialista traria. Seus temores se concretizaram pouco tempo depois: “Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha por Hindenburg numa segunda-feira, 30 de janeiro de 1933. Em três semanas, tanto Heinrich como Thomas Mann estavam no exílio.” (HAMILTON, 1985: 381)

Outro aspecto de convergência entre as obras é um recurso estilístico: a ironia, ou seja, a afirmação de algo diferente do que se deseja comunicar, uma mimese que critica aquilo que se mimetiza. Nos “Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, ela reside no fato de o protagonista, que buscava a formação geral e a autonomia, acabar obtendo justamente o contrário: revela-se inapto para o teatro e tem seu futuro profissional e conjugal influenciados pela Sociedade da Torre. Em “A Montanha Mágica”, a ironia se manifesta no “responsável sentimento amistoso diante da vida” que governa os pensamentos de Hans Castorp, e seu exercício lhe permite ultrapassar seus pedagogos: “é a busca da vida através de seu contrário, dos entraves que a ela se opõe, a doença e a morte.” (FONTANELLA, 2000: 89)

Porém, a continuidade mais marcante entre ambas as obras é na relação de interdependência que elas traçam entre utopia e realidade. Embora Wilhelm e Hans não concretizem seus ideais (formação universal e amor universal, respectivamente), estes ainda assim os orientam ao longo de suas tramas. Tanto Goethe quanto Mann não suplantam a realidade por projetos idealistas, tampouco caem na amargura de resignar seus personagens às dificuldades impostas pela vida. Em outras palavras, ambos colocam as utopias em seu devido lugar: como um ideal de vida que dá forças diante das adversidades.

6. Conclusão: A utopia universal e o tato social

Ao longo deste artigo, analisamos a “Bildung” de Wilhelm Meister e Hans Castorp. Em meio a situações complicadas, os dois mantiveram a força de vontade para perseguir seus objetivos. Se tiveram algum êxito, por menor que seja, foi justamente porque souberam lidar com o meio em que estavam envolvidos: “O tato social corresponde muito de perto ao que seria em Goethe por excelência a arte de viver e Thomas Mann considera Goethe como quem consegue ligar da maneira mais feliz a arte e a arte de viver.” (FONTANELLA, 2000: 106)

Seus respectivos pedagogos tiveram importância capital nessa formação. Wilhelm, por temperamento um sentimental, muito aprendeu com o racionalismo do Abade e Jarno e a fibra moral da canonisa e Natalie. Já Hans adquiriu lições valiosas com o humanista Settembrini, o “radical-conservador” Naphta e o hedonista Peeperkorn, e foi por meio da ironia que soube enfrentar o impulso da morte encarando-a com o desejo de viver.

Em seus contextos históricos, Mann e Goethe encontraram situações turbulentas que muito influenciaram os enredos de seus “Bildungsroman”. Porém, ao contrário do que se poderia imaginar, isso não impediu “A Montanha Mágica” de apresentar mais continuidades que rupturas com “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, como o fato de que ambas representaram “divisores de águas” nas ideias filosóficas e políticas de seus autores, a maneira irônica de caracterizar os protagonistas (“filhos enfermos”) e, principalmente, a noção de que os obstáculos da realidade não foram capazes de desanimar Meister e Castorp. Se aquele não conseguiu a formação universal e este não parece ter alcançado o amor universal, é porque a própria “Bildung” é um processo, um problema, e não um resultado seguro:

“Seguindo o modelo do próprio romance-paradigma, o Bildungsroman deverá permanecer sempre como a consumação da agapé como um horizonte, inclusive como uma interrogação. (...) Não é por outra razão que a última sentença [de A Montanha Mágica] termina com uma interrogação: ‘Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor? ’” (Ibidem: 72)

Por mais contrastantes que sejam os destinos de ambos (de um lado, a integração à Sociedade da Torre; do outro, ir lutar na guerra), no fundo eles simbolizam a mesma ideia: em meio aos equívocos da vida, cabe ao ser humano escapar ao horror e à resignação e sempre procurar, em si mesmo e nos outros, o que a humanidade tem de melhor. Afinal, esta é a lição central do Humanismo: a construção da liberdade ancorada na crença na dignidade humana.

Referências bibliográficas

BRUFORD, Walter. “The German Tradition of Self-Cultivation: ‘Bildung’ from Humboldt to Thomas Mann”. Cambridge: Cambridge University Press, 1975.

CALDAS, Pedro. “Thomas Mann, leitor de Goethe: O fardo da naturalidade em Viagem à Itália e Morte em Veneza”. IN: Viso – Cadernos de Estética Aplicada. 2007.

______________ “Imagens da Espera: um ensaio sobre as representações da morte em Thomas Mann”. IN: Matraga. Rio de Janeiro, v. 13, n. 18, 2006.

DAYAN-HERZBRUN, Sonia. “Thomas Mann: um escritor contra o nazismo”. Trans/Form/Ação, vol. 20, 1997.

DUMONT, Louis. “German Ideology: from France to Germany and back”. Chicago: University of Chicago, 1994.

FONTANELLA, Marco Antonio Rassolin. “A Montanha Mágica como Bildungsroman”. Campinas, 2000.

GOETHE, Johann Wolfgang von. “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” (posfácio de Georg Lukács). São Paulo: Editora 34, 2006.

___________________________ “Goethe e Schiller: Companheiros de Viagem” (apresentação, tradução, seleção e notas: Claudia Cavalcanti). São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

HAMILTON, Nigel. “Os Irmãos Mann: as vidas de Heinrich e Thomas Mann”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

HUMBOLDT, Wilhelm von. “Os Limites da Ação do Estado”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

KAUFMANN, Fritz. “Thomas Mann: The World As Will And Representation”. Nova York: Cooper Square, 1973.

MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. “O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura”. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

MANN, Thomas. “A Montanha Mágica”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

_____________ “Consideraciones de un Apolítico”. Barcelona: Grijalbo, 1978.

ROSENFELD, Anatol. “Thomas Mann”. São Paulo: Perspectiva, 1994.

SCHILLER, Friedrich von. “A Educação Estética do Homem”. São Paulo: Iluminuras, 2002.



[1] Entendo por humanismo a “ideia e o imperativo de uma formação ideal, que tende a ter como conteúdo e escopo o próprio homem, digamos: o ideal do homem, o homem ideal.” Vide MOURÃO-FERREIRA, David. “Do humanismo à omnisciência narrativa na obra de Thomas Mann”. Colóquio Letras. Lisboa, v. 27, set. 1975.

[2] Adotarei este termo para me referir a filosofias existenciais que valorizem a vontade de poder, o impulso vital (inspirado na moral pagã) e/ou uma atitude “irracionalista”, priorizando os sentidos à razão “iluminista”. Com as devidas proporções, os românticos e pensadores como Friedrich Nietzsche são expoentes desse “vitalismo”.

[3] Vide BURCKHARDT, Jacob. “História da Cultura Grega: Introdução”. IN: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). “A História Pensada: Teoria e Métodos na Historiografia Européia do Século XIX”. São Paulo: Contexto, 2010, pp. 166-179. Grifos presentes no original.

[4] Outro aspecto levantado por Wilma Maas é a genealogia dos gêneros literários que influenciaram o surgimento do “Bildungsroman”. São eles: I) as “Confissões” e o “Emílio” de Rousseau; II) o romance picaresco; III) a literatura pietista; IV) o romance de aventura e viagem, à moda de “Robinson Crusoé”.

[5] Sobre este ponto, recomendo a leitura do texto de Nivaldo Cordeiro, “O teatro como símbolo em Goethe”. Fonte: http://www.nivaldocordeiro.net/oteatrocomosimboloemgoethe.

[6] O que é irônico é que Mann recebeu crítica parecida de Otto Maria Carpeaux: “Thomas Mann é um pensador confuso, é o maior dos escritores de segunda ordem, e a alemanidade não é a essência do seu ser, mas o amor infeliz dum bastante fraco herói de tragédia. (...) E como figura trágica, Thomas Mann é admirável.” Vide “O Admirável Thomas Mann”, IN: “Ensaios Reunidos 1942-1978 – Volume 1”. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

 

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