O Duelo Filosófico entre Settembrini e Naphta em "A Montanha Mágica"
“Quem era, afinal de contas, o livre-pensador e quem o homem pio?” (Thomas Mann) 1. Introdução: o “eterno debate” e considerações iniciais No 1º capítulo de “A República” (Platão), há uma acirrada discussão entre Sócrates e Trasímaco sobre o conceito de Justiça. Enquanto este se baseia na sofística para defender a “justiça do mais forte”, Sócrates tenta provar que a justiça é a perfeição humana e que ser injusto não traz vantagens. Estão em diâmetros opostos: Trasímaco é um relativista; não acredita em uma verdade absoluta, pois tudo é convenção (“nomos”). Sócrates, ao contrário, é eloqüente defensor da Filosofia enquanto método para que o homem consiga acessa a verdade universal do “Logos”. Séculos se passaram, mas a Filosofia – e as Humanidades em geral – continuam a conviver com o eterno debate entre posições racionalistas e irracionalistas, universalistas e relativistas, defensores da liberdade natural e adeptos do determinismo etc. De certa maneira, Voltaire e Rousseau (sobre a civilização[1]) e Erasmo e Lutero (quanto ao livre-arbítrio[2]) são exemplos de confrontos de perspectivas radicalmente opostas. Thomas Mann, em seu romance “A Montanha Mágica” (1924), ocupa boa parte da segunda metade da obra com um intenso embate de idéias entre os personagens Lodovico Settembrini e Leo Naphta. De um lado, temos “o advogado do progresso e da organização racional da vida humana”; do outro, o homem que prega “o espírito absoluto e sobrenatural” (Kaufmann, 1973, p. 245). Ambos estão competindo pela alma do jovem Hans Castorp, que é o protagonista do romance. Este artigo analisará os aspectos filosóficos e políticos do debate entre Settembrini e Naphta. A partir de certos conceitos da Teoria Política, será discutido se – e como – ambos os personagens representam, respectivamente, as teses do Iluminismo e do Niilismo. Duas são as perguntas que devem ser respondidas. Em primeiro lugar, se é possível fazer uma leitura política e filosófica de “A Montanha Mágica”. Segundo, se Settembrini e Naphta estão de fato alinhados com as correntes ideológicas supracitadas. Para isso, serão utilizados conceitos fundamentais para tal duelo filosófico: individualismo, liberalismo, conservadorismo, vontade de poder e gnosticismo.[3] A partir desta análise do repertório de influências intelectuais, serão discutidas questões mais específicas. Primeiro, entender as contradições de Settembrini; embora se considere liberal e pacifista, ele defende o imperialismo do Ocidente. Em seguida, elucidar a heterogeneidade ideológica de Naphta, que combina cristianismo, socialismo, conservadorismo e niilismo. Por fim, comparar a perspectivas de ambos, buscando possíveis convergências e diferenças. Para estudar a relação entre Arte - enquanto Literatura - e Política, recorremos à noção de “arte crítica”, segundo a qual “a arte aparece como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade” (Chaia, 2007, p. 22). Além disso, auxilia na apreensão dos limites e paradoxos da política. Wellek e Warren são um pouco mais céticos quanto a essa relação entre literatura e idéias: “o conteúdo ideológico, no seu devido contexto, parece realçar o valor artístico”, mas “o artista será prejudicado por demasiada ideologia se esta não for assimilada” (Wellek & Warren, 1962, p. 155) Chegaram a criticar “A Montanha Mágica” pela sua guinada temática, do poético ao intelectual: “as primeiras partes, com a sua evocação do mundo do sanatório, são artisticamente superiores às últimas – de tão amplas pretensões filosóficas” (Ibidem). Porém, por mais que a hipertrofia do debate filosófico deixe o próprio Hans Castorp consternado (vide epígrafe), o confronto entre os dois personagens é retrato de uma controvérsia intelectual que atravessou a Europa a partir do fim do século XIX. “O duelo entre Settembrini e Naphta (...) é um sintoma da excitação nervosa que precedeu a I Guerra Mundial, uma das premonições (...) de uma catástrofe próxima” (Kaufmann, 1973, p. 111). Logo é, enquanto chave de compreensão de certos fenômenos do mundo moderno, um objeto de estudo dos mais fascinantes – e sintomáticos. 2. Intermezzo: conceitos a serem trabalhados Cinco conceitos são importantes para o desenvolvimento deste artigo. O primeiro deles é “individualismo”. Segundo F. A. Hayek, o individualismo é a postura filosófica para a qual cada um é livre para buscar as próprias metas, sendo responsável pelas decisões que toma e as conseqüências das mesmas (Hayek, 1983). Devem ser reconhecidos a cada indivíduo valores próprios pelos quais ele tem o direito de se pautar, e sua dignidade deve ser respeitada. Hayek chega a ver modéstia intelectual em tal postura: a incerteza e a razão limitada levam a uma defesa do indivíduo, que é quem melhor sabe os seus valores e necessidades (Idem, 1994). A segunda conceituação refere-se ao “liberalismo”. José Guilherme Merquior considerou-o um fenômeno histórico, portanto difícil de ser definido; “é muito mais fácil – e muito mais sensato – descrever o liberalismo do que tentar defini-lo de maneira curta” (Merquior, 1991, p. 15). Ele aponta, contudo, que um aspecto comum à tradição liberal é a preocupação em limitar e dividir a autoridade, para garantir a maior esfera de liberdade individual possível. A sociedade liberal pressupõe uma grande variedade de valores e crenças, contrariando o pacto moral defendido por conservadores ou prescrito pela maioria das utopias radicais. Falando em “conservadorismo”, um de seus maiores expoentes é Edmund Burke, para quem a manutenção das tradições é quase sempre preferível a mudanças bruscas. Ele afirma que os costumes são a bússola que nos guia (Burke, 1997), e a superestimação dos poderes da razão humana para planejar a sociedade pode levar ao caos moral e social. Sendo assim, o conservadorismo é a postura política que defende a importância da unidade e da estabilidade enquanto pilares da sociedade. Há certo pessimismo antropológico, pois se alega que a melhor ordem social é aquela que limita os impulsos egoístas que são naturais ao ser humano. O que seria a “vontade de poder” proclamada pelo filósofo Friedrich Nietzsche? Nas palavras do próprio, “uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder” (Nietzsche, 2005, p. 19). Ou seja, aceitar os instintos naturais, como a ofensa, a violência e até a exploração mútua (seria a “justiça do mais forte”?). Abster-se deles – e fazer disso um princípio básico da sociedade – seria uma “negação da vida, princípio de dissolução e decadência” (Ibidem, p. 155). Nietzsche critica desde democratas até socialistas por abolirem as hierarquias, tão caras à sociedade aristocrática, em prol da “mediocrização”. Por último, falta definir o “gnosticismo”. De acordo com Eric Voegelin e Olavo de Carvalho, a antiga seita religiosa e esotérica dos gnósticos pregava um “conjunto de crenças, símbolos, valores e atitudes da cultura espiritual greco-romana, que refluíram para o subsolo no advento do cristianismo” (Carvalho, 2000, p. 194). Há a noção de um Deus imperfeito (demiurgo), sendo possível ao homem ter a gnose (conhecimento) das verdades desta divindade. Ambos notaram o impacto do gnosticismo nos fenômenos ideológicos modernos, pois ele rompe com a concepção agostiniana de “desdivinização” da esfera do poder; em seu lugar, defende a atribuição de um determinado “eidos” (sentido) à História. Isso implica em “redivinizar” a realidade (Voegelin, 1982), o que permite exortar a ação humana direta, ao considerar possível alcançar a perfeição aqui mesmo, nesta vida. Por meio dessa “revolta egofânica”, o governo passa a ser investido de uma função revolucionária (Idem, 2006). 3. Settembrini, o iluminista fora de época Logo em seu 1º dia no sanatório Berghof, Hans Castorp conhece um peculiar intelectual italiano: Lodovico Settembrini. Seu jeito desalinhado, mas com graça, além do bigode levemente ondulado, fizeram Castorp pensar que era um “tocador de realejo”. Logo na primeira conversa com o protagonista do romance, Settembrini trata de assuntos elevados, demonstrando notável erudição. Começava ali uma amizade na qual o “beletrista”, como se estivesse na “Divina Comédia”, tenta ser o Virgílio que conduzirá o promissor Dante que vê em Hans Castorp. Os ancestrais de Settembrini ajudam a entender seu amor pela política e pelas letras. Seu avô foi advogado em Milão, além de agitador público – participou do movimento dos carbonários[4]. O pai era um apaixonado estudioso da cultura clássica. Quanto a ele, também queria conciliar a vida política com a intelectual, mas a saúde frágil o obrigou a se fixar em Davos-Platz. Quanto à sua visão de mundo, Settembrini considera-se um humanista. Defende o clássico contra o romântico, o espírito e a razão contra a volúpia do corpo. Nas palavras do narrador: “Mas, o que era afinal o humanismo? Era o amor aos homens, nada mais, nada menos e por isso mesmo implicava também a política, a insurreição contra tudo quanto mancha e desonra a dignidade humana.” (Mann, 2000, p. 217) Podemos qualificá-lo como individualista e liberal, pois uma de suas maiores preocupações é o auto-aperfeiçoamento moral e intelectual do homem. Porém, é também um republicano, o que nos remete ao Humanismo Cívico, de forte expressão na própria Itália de Settembrini. Esta corrente política é compatível com o liberalismo, pois sua maior ênfase na ação política e na virtude cívica contrabalança o deslocamento à esfera privada proposto por Hayek e outros. Entre as principais proposições do Humanismo Cívico, estão: a dedicação ao bem público, a liberdade enquanto independência e a participação dos negócios da cidade (Bignotto, 2007). Settembrini demonstra um forte alinhamento com o ideário do Iluminismo[5] ao elogiar os progressos técnicos e o caminho “inevitável” rumo à democracia liberal. Em uma passagem que deixaria Rousseau irritado e Voltaire extasiado, o italiano disse que: “A técnica (...) subjugava cada vez mais a natureza, pelas comunicações que criava, (...) pelas vitórias que conquistava sobre as diferenças de clima; (...) dessa forma apresentava-se como o meio mais seguro para aproximar os povos, (...) para destruir os preconceitos existentes e, finalmente, para estabelecer a união universal.” (Mann, 2000, p. 214) O personagem também segue outro princípio iluminista: “conhecer para prescrever”. Uma ilustração dessa conduta é o seu envolvimento com a misteriosa Liga Internacional para a Organização do Progresso, para a qual contribui em um projeto de Enciclopédia que pretende mapear e descobrir a cura para todas as formas de sofrimento humano. Porém, Castorp – e o próprio leitor – logo percebe(m) que há algo de errado, de limitado na filosofia social de Settembrini. Há um ranço de intransigência e autoritarismo nesse almejo por modernização. Para o protagonista, “o Sr. Settembrini era humanitário, mas ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, era quase explicitamente belicoso” (Ibidem, p. 978). Tal opinião foi corroborada por seu primo Joachim, para quem o italiano “prega a república universal, internacional, e abomina a guerra por princípio, mas ao mesmo tempo é tão patriota que reclama a todo custo a fronteira do Brenner[6]” (Ibidem, p. 527). Em sua recusa teórica e defesa prática da guerra, residem um problema e uma contradição. O primeiro, porque, com isso, ele adere à ideologia do “imperialismo” político, econômico e cultural, expressão famigerada do universalismo ocidental; inclusive, tal postura imperialista do Ocidente sobre os “bárbaros” do Oriente acelerou no fim do século XIX. Já a contradição é que sua defesa da paz e da república passa a soar hipócrita, como se fosse um paradoxal “dogmatismo pela liberdade”. A ligação de Settembrini com a Maçonaria denota seu anti-clericalismo, que muitas vezes recai em um “progressismo e materialismo (...) que desalojando Deus de seu lugar, colocou em seu altar o próprio homem” [7]. Aliás, tal “ideologia prometéica” (o próprio Settembrini assume a admiração pela figura de Prometeu) aproxima-se perigosamente das ambições gnósticas. Por sua vez, Hans Castorp discorda desse racionalismo excessivo, pois acredita a sensibilidade e as paixões são também fundamentais para uma vida plena. Talvez seja esta uma opinião do próprio Thomas Mann. 4. Naphta, o profeta do Terror Leo Naphta é um personagem de passado sombrio. Seu pai, um judeu fanático, foi assassinado em um motim popular, acusado de “irregularidade sectária”. Durante a adolescência, atormentado por dúvidas e indagações intelectuais, seu espírito só se apaziguou quando se converteu em jesuíta, fascinado pela grandiosidade e pelo senso de ordem que predominavam em tal instituição. Foi parar no sanatório graça à hemoptise (sangue no escarro), que o obrigou a se licenciar da carreira docente. Eis a 1ª das mesclas ideológicas que tanto marcam este personagem: foi do judaísmo ao jesuitismo. Também se interessou pelo ideário socialista, que conheceu graças a um deputado e seu filho. Para completar a equação, ele tinha um forte impulso aristocrático, “um desejo apaixonado de elevar-se acima da esfera de sua origem” (Ibidem, p. 603). Tal mistura resultou em um ideal que crescia rapidamente na época em que se passa a trama do livro (1907-1914): a Revolução Conservadora. “Conservadora”, porque, além de pregar a restauração de vários dos costumes e hábitos da Idade Média, período que Naphta tanto exalta em suas falas, este também tem um forte desprezo pela burguesia. Em uma de suas digressões teológicas, chega a alegar que, para os medievais, “Deus e o diabo eram uma e a mesma coisa, e ambos se opunham à vida, ao modo de viver burguês, à ética, à razão, à virtude...” (Mann, 2000, p. 631). Quanto a isso, podemos nos lembrar de Nietzsche e seu repúdio à mediocridade e à equalização de condições que marcam a sociedade burguesa. Porém, Nietzsche tem mais a contribuir nesta discussão sobre Naphta, inclusive para explicar o mote desta “Revolução”. O ideal da vontade de poder é evidente neste personagem, que muitas vezes defende a desvalorização de qualquer sentido existencial e da própria noção de verdade. Eis um traço de niilismo; em sua ambição pela ordem e pelo poder absoluto, Naphta não hesitaria em defender que princípios e critérios sejam dissolvidos ou abolidos. Um exemplo é quando, durante um debate com Naphta, distorce o sentido de “individualismo” para refutar Settembrini: “Como já me permiti observar, o seu individualismo é deficiente, é apenas um compromisso. (...) Um individualismo, porém, (...) não social, mas religioso, que concebe a humanidade não como o antagonismo entre o eu e a sociedade, senão como o conflito o eu e Deus, (...) tal individualismo genuíno se harmoniza muito bem com a comunidade mais intensamente coercitiva.” (Ibidem, 2000, p. 551) Em outras palavras, Naphta contrapõe ao individualismo liberal o holismo comunitário, de fortes feições conservadoras. O polêmico pensador Oswald Spengler, para muitos um ideólogo do nacional-socialismo, pode ser recrutado para este debate. Em defesa da grandeza da cultura ocidental (mais especificamente, da “alma faustiana”, germânica), ele faz uma afirmação que poderia ser do próprio Naphta: “o estilo prussiano é uma renúncia espontânea, a subordinação de um Eu forte a um dever e uma tarefa grandes, um ato de autodisciplina” (Spengler, 1941, p. 176). Como se não bastasse, Naphta também prega o coletivismo cristão e socialista. Para ele, sempre refratário à burguesia, caberia ao proletariado a missão de restaurar o império da cristandade, mesmo que precise "espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes” (Mann, 2000, p. 550). Com isso, atribui um sentido religioso à revolução e ditadura do proletariado. Ironicamente, desta vez Spengler está contra Naphta, pois reconhece – e condena – esta aliança entre cristianismo e socialismo: “a teologia cristã é avó do bolchevismo” (Spengler, 1941, p. 117). Esta combinação explosiva de ideologias talvez se explique pelo fato de Thomas Mann ter se inspirado em Georg Lukács para criar o personagem judeu-jesuíta. Lukács, embora marxista, até meados da década de 1920 defendia uma espécie de “culturalismo existencial”, sob forte inspiração nietzschiana. Em sua errante necessidade de absoluto, ele apresentava o que Mann, por meio de Naphta, descreveu como um tremendo anelo de autoridade (Merquior, 1982). O ambicioso Naphta também pode ser comparado com personagens de outra obra-prima de Mann, “Doutor Fausto”. Em uma de suas aulas de Psicologia da Religião, Schleppfuss, um dos professores do músico Adrian Leverkühn (personagem principal da trama), alega que o Mal é conseqüência necessária da existência de Deus, e que o livre-arbítrio e o pecado são indissociáveis (Mann, 1996, p. 133-136). Tal argumento lembra a ambigüidade que Naphta enxerga na divindade. Mais tarde, durante a estranha conversa de Leverkühn com o Diabo, por meio da qual fazem um pacto que garante ao compositor a genialidade artística pelos 24 anos seguintes, este diz que Adrian se tornará o líder de uma geração, pois emanará uma loucura inspiradora. Além disso, alega que a burguesia abandonou a Religião e passou a cultuar a Cultura em si mesma; contudo, está farta desta, sendo necessário lhe dar novos princípios para se orientar (Ibidem, p. 327-329). Tal premonição é análoga à que o Naphta fez quanto à urgência do Terror revolucionário. 5. Um “Ennui” Espiritual: convergências e divergências Embora já tenha sido feita uma breve analogia entre o gnosticismo e a ideologia progressista de Settembrini, as considerações de Voegelin e Carvalho sobre a revolução gnóstica valem para ambos os personagens; talvez Naphta seja até mais tipicamente gnóstico do que o “beletrista”. Os dois soam como as duas faces da mesma moeda, simbolizando dois extremos (independentemente de quem seja “direita” ou “esquerda”) dos quais Castorp deve se afastar para alcançar o equilíbrio.[8] A ambição, tão recorrente nas ideologias políticas modernas, em ditar o “rumo” da História combina-se com a auto-indulgência quanto às paixões e a desorientação intelectual que marcaram os fenômenos de massa do século passado: “A morte do espírito é o preço do progresso. Nietzsche revelou este mistério do apocalipse ocidental quando anunciou que Deus estava morto e que fora assassinado. Esse assassinato gnóstico é cometido constantemente pelos homens, que sacrificam Deus em nome da civilização.” (Voegelin, 1982, p. 99) Olavo de Carvalho, na mesma direção, aponta o gradual desenvolvimento do materialismo como religião civil. Um exemplo interessante que utiliza para ilustrar sua tese é o primeiro dos “bildungsroman” (romance de formação), escrito por Goethe: “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister” (1796). Nesta obra, segundo Carvalho, há uma ruptura: o mito maçônico substitui o cristão como índice do sentido da vida. Em outras palavras, a salvação da alma cede lugar a uma resolução puramente terrestre. Esta auto-realização consiste em que a sociedade se revela como “um microcosmo à imagem do universo dirigido por potências benévolas”, o que leva à “descoberta do caminho pessoal por entre os múltiplos equívocos da vida” (Carvalho, 2000, p. 260-261).[9] Tal exemplo é relevante na medida em que Goethe e “Wilhelm Meister” muito influenciaram Mann e “A Montanha Mágica”. Hans Castorp, que não é tão brilhante e talentoso quanto o protagonista do romance goethiano, faz uma lenta caminhada para se livrar da mediocridade e se tornar um indivíduo mais completo. É também porta-voz da preocupação do escritor com os excessos de ambos os lados do conflito ideológico. Além de demonstrar que tanto liberalismo quanto socialismo (inclusive o de feição conservadora, defendido por Naphta) têm uma origem em comum, ele demonstra que debates políticos não podem ser resolvidos somente em abstrato. As controvérsias bizantinas dos dois pedagogos estão muito afastadas da realidade “mundana” para serem dignos. Por outro lado, seria uma injustiça com Settembrini não reconhecer suas vantagens (ou, ao menos, o menor número de defeitos) em comparação a seu rival. O próprio final da “amizade” de ambos é sintomático. Durante um de seus embates filosóficos, o italiano se irrita e acusa Naphta de dizer indecências. Este, pedindo para o adversário retirar o que disse, recebe uma negativa, e reage raivosamente, desafiando-o para um duelo. O pedagogo italiano ainda tentou, até a última hora, dissuadir seu oponente, mas não conseguiu impedir a tragédia: “– O senhor atirou para o ar – disse Naphta, controlando-se, enquanto baixava a arma. Settembrini replicou: – Eu atiro como quero. – Atire o senhor novamente. – Nem penso nisso. Agora é a sua vez. (...) – Covarde! – bradou Naphta, e com esse grito humano admitiu que era preciso maior coragem para atirar do que para servir de alvo. Levantou então a pistola de um modo que nada mais tinha em comum com um combate, e descarregou-a na própria cabeça. Que cena trágica, inesquecível! (...) Todos permaneceram imóveis durante um momento. Settembrini, depois de arrojar a pistola para longe de si, foi o primeiro a aproximar-se de Naphta. – Infelice! - exclamou. - Che cosa fai, per l’amor di Dio?” (Ibidem, p. 972) Há uma interessante metáfora neste duelo de armas: o humanista reluta e desiste diante de uma situação de barbárie, enquanto que o niilista, que já não vê sentido na vida, comete suicídio. Verifica-se assim que, apesar de tudo, Settembrini e Naphta são diferentes, tanto em pressupostos quanto em atitudes existenciais. Não se pode resumi-los a uma ideologia cada, mas também é inegável que o italiano é um personagem mais “humano” e de boa índole. Kaufmann, em uma comparação entre os dois personagens, foi categórico: “o abalado intelecto mundano, personificado por Settembrini, sobrevive ao sofisticado e (...) encantador fundamentalismo, o ódio suicida deste mundo, o espírito de Naphta” (Kaufmann, 1973, p. 25). Aliás, situação parecida ocorre em “Doutor Fausto”: o também humanista Serenus Zeitblom sobrevive para narrar o colapso do “espírito absoluto”, encarnado em seu amigo Leverkühn. 6. Conclusão: a Vitória de Pirro[10] da Razão Em meio aos funerais de Naphta, a perplexidade de Settembrini e a despedida de Castorp (que, no último capítulo, muda de atitude e resolve ir lutar na guerra), este artigo chega a um desfecho. De fato foram encontradas fortes relações entre o debate Settembrini x Naphta com um confronto ideológico mais amplo – não apenas entre Iluminismo vs. Niilismo, mas também entre liberalismo e “socialismo conservador”. Além disso, foram visualizadas semelhanças entre ambos os personagens no que tange ao desejo de “redivinização da realidade” que caracteriza a revolução gnóstica. Ao final, constata-se que, embora Settembrini tenha sobrevivido e seu adversário, cometido suicídio, este foi um debate sem vencedores, já que nenhum conseguiu prevalecer como pedagogo de Castorp. Ou, talvez, o italiano teve uma “vitória de Pirro”, pois a democracia e o liberalismo passarão por mais dificuldades: foi a ideologia de Naphta que predominou na Europa nas duas décadas seguintes à publicação de “A Montanha Mágica”. O próprio Mann lamentou que sua mensagem humanista não conseguisse prevalecer durante a Alemanha à época. Preferiu-se, ao invés de tal apelo, uma escalada de barbárie e totalitarismo. Cabe uma última pergunta e reflexão: após todas as guerras do século XX, e a despeito de todas as mudanças políticas e culturais pelas quais o mundo passou neste período, será que o debate intelectual predominante continua a ser, mesmo que indiretamente, entre racionalistas e relativistas? Referências Bibliográficas BIGNOTTO, Newton. “Humanismo Cívico Hoje”. IN: BIGNOTTO, Newton (org.). “Pensar a República”. Belo Horizonte: UFMG, 2000. BURKE, Edmund. “Reflexões sobre a Revolução em França”. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. CARVALHO, Olavo de. “O Jardim das Aflições”. 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[5] Iluminismo é o movimento intelectual ocidental, cujo auge foi no século XVIII, que defendia a Razão como princípio orientador do pensamento e da ação. Associava-se a isso a crença na capacidade da ciência de gerar progresso linear. Em seu famoso texto sobre o tema, Immanuel Kant proclama: “Tem coragem para fazer uso da tua própria razão!” [6] Alusão ao litígio entre Itália e Áustria, anos antes da I Guerra Mundial, por uma região fronteiriça. [7] Vide resenha do livro feita por Francisco Escorsim, [8] Em uma entrevista, Olavo de Carvalho faz uma curiosa analogia com o romance de Mann para explicar a decadência portuguesa: “Por uma triste ironia, os adversários do centralismo pombalino eram os jesuítas, eles também revolucionários”. Desta forma, “o drama de Portugal é o mesmo de ‘A Montanha Mágica’ de Thomas Mann: um jovem bom e promissor aprisionado entre dois falsos gurus: um iluminista autoritário com discurso modernizador e um jesuíta comunista.” [9] Curiosamente, anos depois, Goethe se arrependeu dessa “ideologia prometéica” exacerbada, e, na 2ª parte de “Fausto” e em “As Viagens de Wilhelm Meister”, condenou a ambição materialista e resgatou a espiritualidade. [10] Vitória de Pirro: expressão de origem romana utilizada para indicar um triunfo obtido a custo de prejuízos enormes.