1968: o que restou dos escombros
Apesar do título sugestivo e da conhecida ligação de Lennon com idéias anarquistas e pacifistas, a faixa não é revolucionária; pelo contrário, constitui-se em crítica contundente aos excessos e radicalismos da juventude engajada da época. Não por acaso, recentemente entrou em 7º lugar na lista das 50 canções mais 'conservadoras' do rock. Trechos de "Revolution" criticam a opção pela luta armada, a veneração de líderes totalitários como Mao Tsé-Tung e o idealismo megalomaníaco, até mesmo porque, afinal de contas, "it's gonna be alright". Menos comunista, impossível.
O fato é que, realmente, 'a imaginação no poder' não era tão poderosa quanto alguns vovôs remanescentes de 1968 continuam a pregar. Dominic Sandbrook, que já escreveu dois livros sobre a década de 60, é um dos que se encarregam de desconstruir os mitos erigidos sobre aquele ano. Segundo ele, até mesmo um dos maiores baluartes daquela geração é uma falácia: "os manifestantes pela paz não acabaram com a guerra no Vietnã, como costumam afirmar; de fato, a guerra continuou por mais sete anos e acabou só com a vitória militar do comunista Vietnã do Norte".
Outros exemplos corroboram com a idéia de que o Maio de 68 não foi bem-sucedido em vários aspectos. Não cabe a nós tirar o mérito da espontaneidade e da demonstração de forte engajamento político dos jovens. Realmente, os protestos chegaram a reunir centenas de milhares de pessoas nas ruas de Paris, e as bandeiras e slogans daquela vanguarda política e cultural, 40 anos depois, ainda não foram esquecidos por muitos.
Porém, a desunião e o conflito de interesses atrapalharam consideravelmente o movimento, levando a uma desintegração melancólica: os operários e sindicatos, assim que foram feitas concessões, pularam fora; o Partido Comunista Francês, stalinista de carteirinha, recusou-se a apoiar um movimento tão 'heterodoxo'; a 'maioria silenciosa' da população ficava cada vez mais temerosa com a radicalização do movimento, e desejava o retorno à normalidade. Conseqüentemente, nas eleições daquele ano, os conservadores, que apoiavam o grupo político do presidente De Gaulle, tiveram uma vitória esmagadora nas eleições legislativas.
Em Londres - e no Reino Unido como um todo -, a movimentação teve um caráter surpreendentemente pacífico, resumindo-se a algumas passeatas, sendo a única pancadaria entre jovens e policiais a que ocorreu em Março na frente da embaixada americana. A imprensa – e, quem sabe, as próprias autoridades - ficou claramente decepcionada com aquela revolução que, salvo um ou outro ato, mais falava que fazia.
Nos EUA, basta um exemplo para demonstrar a desilusão que tomava conta até do meio literário. Jack Kerouac, guru da Geração Beat com obras como "On The Road" e "Vagabundos Iluminados", foi um dos que votaram em Richard Nixon nas eleições presidenciais daquele ano. A heterogeneidade no Partido Democrata custou uma vitória certa a eles, algo que pode até mesmo se repetir no pleito de 2008. Com Nixon, iniciava-se um período de hegemonia dos republicanos na Presidência: nos últimos quarenta anos, os americanos passaram 28 sob o domínio de tal partido. Kerouac, aliás, morreria de cirrose no ano seguinte.
1968 foi o ano em que a "Nova Esquerda" tinha tudo para se consolidar. Apoios de peso não faltavam. Os intelectuais estavam eufóricos com aquela agitação. Exaltavam-se exponenciais do socialismo 'terceiro-mundista', como Fidel Castro, o falecido Che Guevara e o já citado Mao. A despeito dos dogmas do modelo soviético, os esquerdistas cada vez mais buscavam novas diretrizes e inspirações.
A música (foi o auge do rock psicodélico, mas algumas bandas estavam buscando uma sonoridade mais crua e pesada), a literatura (o 'new journalism' se unia à contracultura), o teatro (até o Brasil foi expoente de peças de caráter transgressor), o cinema (clássicos como "O Bebê de Rosemary" e "2001" são daquele ano) e até a sociologia (Marcuse e sua junção de Freud com Marx era quase leitura obrigatória entre os jovens militantes) iniciavam uma importante revolução comportamental, tanto no âmbito sexual – inclusive com a emancipação feminina de vários tabus – quanto em outros pilares daquela sociedade, como moral, religião, família e educação.
Até os libertários, defensores ferrenhos do livre mercado e da mínima interferência estatal na liberdade individual, estavam cheios de esperança em relação àquela geração. O economista Murray Rothbard chegou a escrever um livro, "Esquerda e Direita: Perspectivas para a Liberdade", no qual encarava de maneira otimista uma aproximação com aquela contracultura.
Anos depois, no entanto, ele fez a autocrítica, admitindo que superestimara a "Nova Esquerda". Rothbard, assim como outros dos defensores da idéia de que "o capitalismo era a mais completa expressão do anarquismo, e vice-versa", reconheceram que o libertarianismo estava muito mais próximo da direita, ao menos na defesa do individualismo e da liberdade econômica. Acabava-se o estereótipo da direita como necessariamente reacionária e da esquerda como o único reduto dos vanguardistas. Além disso, os hippies daquela década seriam os yuppies dos anos seguintes, algo que até filmes mais recentes, como "Edukators" (2004), alegaram.
No segundo semestre daquele ano, a outra grande banda da Inglaterra nos anos 60 também lançaria um single que resumiria toda a efervescência de 1968. Estamos falando de "Street Fighting Man", dos Rolling Stones. Com muita ambigüidade, já que seus versos podem ser considerados como apologia, repúdio ou mesmo indiferença aos violentos confrontos de rua que assolavam vários países, os Stones foram um dos que conseguiram sintetizar os contraditórios sentimentos que aquela geração sentia pelos seus próprios feitos. No refrão, a mensagem é mais do que curiosa: "What can a poor boy do, except to sing for a rock & roll band?"
(Texto originalmente publicado por mim em Outr'Análise. Falando nisso, dêem uma visitada no site, hoje entrou no ar a segunda edição de Maio.)