This book is about nothing
Ontem à noite, escrevi mais um trecho para "Megalomania Psíquica". A não ser que me ocorra uma súbita expansão de criatividade, o estilo do livro continuará sendo este, alternando vozes narrativas oniscientes de análise psicológica rasa e as em 1ª pessoa contendo culto de personalidade. Fico até pensando em como agiria um professor de Ensino Médio ao analisá-lo em classe, na hipótese (surreal) de ele vir a ser uma obra indicada, hehe:
"O romance contém várias vozes narrativas, mas no fundo todas elas possuem referências ao pequeno mundo de vivências do autor. Há uma certa heteronímia, visto que ele próprio confessa que fragmentou a sua personalidade entre os 6 personagens. (...) Segundo Kaio Felipe, 'Megalomania Psíquica' seria também a pedra fundamental de uma nova escola literária, o Egoperspectivisimo. Anos depois, quando questionado por um jornalista que levou a sério tal afirmação, ele disse que fora apenas sarcástico, 'pois, além de Egoperspectivismo ser um nome horroroso, ninguém mais está interessado em fazer escola literária desde o Modernismo'."
O'seis estavam em um festival de rock alternativo. Já havia alguns meses desde que foram todos juntos pela última vez, pelos mesmos motivos de sempre: estudos, desinteresse, falta de bandas boas etc. Desta vez, no entanto, não existiam desculpas esfarradas, pois estavam longe da época de provas, os conjuntos que tocariam eram razoáveis e nenhum deles estava realmente entediado e indisposto para sair naquele sábado.
Cada um aproveitou a noite à sua maneira. Alice, como sempre, bebeu bastante e começou a rir do nada. Aproveitou a ebriedade para flertar e beijar algum bonitinho que fosse heterossexual - até porque, segundo ela, "as chances de achar um rapaz lindo e de bom gosto para roupas e música que não seja gay são quase nulas!".
Henrique chegou a dialogar um pouco com ela, mas preferiu ficar no bar-lanchonete com alguns colegas que encontrara. O cigarro lhe tranquilizava enquanto deixou a política de lado para conversar sobre banalidades. "Também os revolucionários precisam debater as besteiras que, infelizmente, as massas tanto adoram.", acreditava ele.
Giovana e Mário foram a alguns shows, mas passaram a maior parte do tempo andando pelo local. Chegaram a esbarrar em alguns conhecidos, mas acharam melhor permanecer em dupla mesmo. Mário fazia um esforço para não pensar em Penélope (que, aliás, vira minutos antes), mas ficou inconsolável ao reconhecer que não iria tomar a iniciativa e falar com ela. Também estava indignado com as letras terríveis das bandinhas indies que cantavam em português. "Nessas horas eu até preferiria que continuassem assassinando a língua inglesa ao invés da última flor do Lácio!"
Já a sua amiga estava aproveitando a felicidade momentânea para apreciar a companhia de Mário, a quem tanto estimava pelo jeito generoso e simpático que possuía. "Sim, sou uma carente incorrigível!", pensava ela. Decidiu tirar aquele dia para relaxar após uma semana tão cansativa na escola; não tivera tempo sequer para terminar de ler uma coletânea de poemas de Fernando Pessoa.
Júlia assistiu a praticamente todos os shows, sempre equipada com sua bolsa-mochila e sua expressão debochada no rosto. Quando notava um riff ou verso ruim de alguma banda, o tédio escorria pela sua face. Caso ocorresse um lampejo de criatividade, ela não deixava de esboçar um sorriso de satisfação. "Contento-me em ser uma patrulha ideológica quando estou no papel de espectadora. Adoraria não ter uma coordenação motora tão horrível para poder tocar baixo e detonar esses fracassados... Ok, estou brincando; foi apenas mais uma auto-indulgência do meu sedentarismo crônico!"
Enquanto isso, o xará de ilustres romanos preferiu o isolamento e a nostalgia. Viu várias das performances, mas logo se rendeu à constatação de que ficaria mais realizado lendo o livro que trouxera. Sua desilusão com a cena underground de sua cidade (e época) era compensada pela releitura de "Subterrâneos", de Jack Kerouac. Em suas reflexões de lobo solitário, uma deles acabou se sobressaindo:
"Há mais de 2 anos, fui a meu primeiro festival de rock independente. Foi bem na época em que já estava viciado em Pixies, Joy Division, Velvet Underground, Sonic Youth etc. Seria correto afirmar que eu tinha uma necessidade de aproveitar a minha liberdade e não me limitar a ser um 'roqueiro de discman', mas também tornar-me um entusiasta de festivais com shows de bandas novas. Pois bem, aquele moço de 15 anos compareceu ao evento - o qual, aliás, teve um atraso de duas horas - e até fui sociável com alguns caras da segunda série do colégio que encontrei por lá. Sentia um certo desprezo por eles, mas o fato de curtirem Nietzsche e Kafka lhes dava um mínimo de respeitabilidade."
Aquele dia foi incrível para César. Ele descobriu uma realidade bem diferente daquela com que estava acostumado. Dançou em alguns shows; conheceu gente interessante (e, pasmem, culta!); comprou uns CDs a preços acessíveis; sentiu-se renovado com aquela mini-sociedade tão urgente e agitada; e também conheceu Alice. Já tinha ouvido Henrique falar algo a respeito de tal moçoila, mas finalmente tivera a oportunidade de conhecer aquela que passaria a chamar freqüentemente de "a epicurista" ou "a garota que vive cada milésimo de segundo".
Lembrava-se constantemente de um certo momento, na primeira apresentação da noite, em que viu aqueles rapazes e garotas do 2º ano se agarrando, fumando e bebendo. Foi a partir daquele momento, pelo qual ele sentiu tanta repulsa, que teve a certeza de que era um adolescente sóbrio e rabugento. Quando saiu do surto nostálgico, levantou-se do canto em que estava sentado para comprar Coca-Cola, enquanto concluía consigo mesmo que se sentia feliz em sua, digamos, misantropia.