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Kaio

 

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19 agosto 2007

Nada no bolso e um punhado de sonhos na cabeça

Na noite em que escrevi o post passado, li umas vinte páginas de “Trópico de Câncer”; outras 20 e poucas antes de ir para a escola no dia seguinte; 15 antes da primeira aula (ironicamente, seria uma de Literatura); já as dez páginas finais, durante a mesma, quando eu me sentei em uma mesa que fica no fundo da minha sala, bem escondida (não sei se já disse isso no blog, mas a minha classe fica na biblioteca do colégio, um privilégio da 'meritocracia das notas boas', hehe). Cumpri meu prazo. Li a obra em exatamente uma semana. Já no sábado comecei e terminei “No Que Acredito”, do Russell (aliás, falarei sobre ele em breve), e hoje iniciei “Onde Encontrar a Sabedoria?”. Enfim, o assunto deste texto é o primeiro romance escrito pelo Henry Miller, então, vamos ao trabalho.

Acima de tudo, “Trópico de Câncer” é um livro que transmite dois valores que eu aprecio muito (por mais que algumas pessoas achem isso uma mera utopia infantil): liberdade e individualidade.
O, digamos, narrador/personagem/autor parece pouco preocupado com sua medíocre situação financeira durante a época em que escreveu a obra. Vemos Henry passando boa parte do livro com os bolsos vazios ou bem próximos disso, e mesmo quando ele tem algum dinheiro, não deseja ser como um homem médio americano e “poupar para ganhar mais”. Prefere fazer bicos, desde revisar erros gramaticais em um jornal até ser professor de Inglês em um ateneu.
Além disso, a vida sexual do protagonista é bem agitada, embora ainda soe pouco perto de amigos dele, como Carl e Van Norden, que seriam considerados totalmente promíscuos e pervertidos pelos leitores mais moralistas. Alguns dos melhores momentos do livro estão relacionados a essa temática: as ‘filosofadas’ de Norden (aliás, o meu personagem predileto, pois adorei as tiradas dele sobre as virgens, as mulheres casadas, os “punhados de livros, sonhos e vulvas”...); as fêmeas malucas (aliás, o jovem Fillmore sofreu bastante nesse setor, pois teve de aturar duas mulheres bem geniosas: a russa Macha e a francesa Ginette); o caso que Carl teve com uma menor de idade etc. Publicar um livro assim em 1934 era pedir para ser censurado e tachado de pornográfico. Miller de fato o foi, e “Trópico de Câncer” - assim como outros romances do autor - só foi totalmente liberado nos países de língua inglesa na década de 60, em meio à revolução sexual.

A Paris dos anos 1930 devia ser mágica, para bem e para mal, visto que não só “Câncer” foi escrito nela, mas outro clássico foi redigido por lá na mesma época: “A Náusea”, de Sartre. Ambos descrevem uma cidade cosmopolita e cheia de paradoxos e idiossincrasias, com o tédio e a decadência coexistindo com o início de uma efervescência cultural e social. A vida dos personagens, repleta de muito álcool, prostitutas, cafés e papos animados, moldam um hedonismo, um carpe diem que cativam completamente o leitor.
Há até certos caracteres que soam como um prefácio do movimento beat, mesmo que indiretamente. Fillmore, por exemplo, demonstra em uma de suas falas finais que a nova geração de americanos estaria disposta a redescobrir sua terra natal, algo que se verificou intensamente em sujeitos como Kerouac e Ginsberg. “Jesus, temos nossos defeitos - mas tenho entusiasmo. É melhor cometer erros do que não fazer coisa alguma. Prefiro ser um vagabundo na América a ficar sentado aqui tranquilamente. Talvez porque sou ianque; (...) meu lugar é lá. Odeio aqueles patifes puritanos lá na pátria, (...) mas sou um deles.”
Vale também ressaltar outros elementos mais estilísticos, como o bom uso de ironia e sarcasmo e os densos fluxos de consciência nos capítulos mais ‘solitários’ contrastando com a fluidez dos diálogos nas passagens mais ‘sociáveis’ do romance. Outro bom destaque é a metalingüística, evidenciada pelas várias referências ao fato do personagem ser um escritor, as curiosas reflexões sobre literatura (adorei uma sobre o “excesso de capricho”) e, claro, frases matadoras como “Não há mais livros a escrever, graças a Deus”.

O registro simultaneamente ficcional e autobiográfico de Henry Miller constitui-se em um dos melhores livros que eu li em 2007, e é inegavelmente um dos maiores destaques da literatura produzida no século passado. “Trópico de Câncer” evoca a vida intensa e bem vivida, e feliz será aquele que resolver optar por um lifestyle libertário e até mesmo libertino, mesmo que sob certos sacrifícios, ao invés de simplesmente atravessar o curso do rio de sua existência resumindo-se a nascer, crescer, reproduzir e morrer. “This river is wild”, já diria Flowers em certa faixa de The Killers.

 

Comentários:

 

 

Quando acabei de ler seu post me deu até vontade ler esse livro agora


Se quer conhecer Paris e a vida íntima de escritores americanos, leia "Paris é uma festa".


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