"Como um cachorro!"
Das três obras dele que eu já li - os contos "A Metamorfose" e "O Veredicto" e o romance "O Processo" -, é certo notar que a figura do pai é evidente, mesmo que por metáforas. No caso de "O Processo", a Justiça, a Lei representa-o. Josef K., protagonista e alterego de Franz Kafka, é subitamente processado por um crime que ele jamais chega a descobrir qual foi. A injustiça é tamanha que ele, em certo momento da obra, pensa que está sendo julgado pelo simples fato de existir. Porém, nos primeiros momentos do livro, ele subestima um pouco a condição na qual se encontra. Mesmo ficando pasmado com certas situações misteriosas pelas quais passa, como um tribunal secreto e suspeito no qual teve que comparecer, ele crê que poderá escapar da situação. O tempo, no entanto, nega a 1ª impressão de K., o qual sucumbe ao pessimismo e à sensação de impotência com o decorrer da situação.
Outro aspecto notável da obra é a fusão entre a realidade e elementos oníricos; em outras palavras, há certos pontos nos quais o leitor (e, de certa maneira, também o próprio protagonista, já que vemos os fatos sob os olhos dele) não saberá se o que está acontecendo é real ou se são ilusões, sonhos e pesadelos. Some a isso os dilemas existenciais e os questionamentos insolúveis pelos quais Josef K. passa, e você notará a tamanha densidade psicológica que Kafka aplica em sua obra. É bem provável que os leitores (pelo menos no meu caso foi assim) ficarão congelados e impressionados com o desencadear de "O Processo", tanto nas partes mais descritivas quanto nas intervenções do narrador e, principalmente, nos diálogos.
Observa-se também a maneira extremamente negativa e pejorativa com que Kafka retrata o sexo feminino. Todas as mulheres que aparecem no livro têm alguma característica nem um pouco positiva. Leni, por exemplo, é amante de vários dos clientes do seu advogado; a senhorita Bürstner esbanja insegurança; as meninas que moram perto da casa do pintor são descritas como "depravadas e pervertidas"; a mulher do porteiro da secretaria de Justiça demonstra ser promíscua e influenciável.É nesse ponto em que se observa outra influência da vida pessoal do escritor, já que a vida amorosa de Kafka não era das melhores; ele chegou a ser noivo de Felice Bauer e trocou cartas com esta durante meia década, mas o relacionamento findou-se em 1917. Logo, poder-se-ia concluir que suas frustrações com as mulheres, mesmo que não totalmente, resultavam em uma visão, se não machista, ao menos egocêntrica do autor, como se desprezasse as fêmeas.
"O Processo" também abre espaço para uma crítica para o modelo jurídico adotado no decorrer do mundo contemporâneo. Questiona-se se a dita Justiça realmente cumpriria a sua função de defender, através das leis, a ética ou se não teria se desregrado e atendido aos interesses de uma minoria, servindo exclusivamente a esta e eliminando de seu caminho qualquer um cuja existência não interessasse a ela. Este parece ter sido o caso de K. Ele próprio, em uma conversa com o sacerdote na catedral, indaga se a esfera do Judiciário seria tão justa e infalível quanto pretendia ser.
Há ainda uma temática que podemos associar ao livro - o totalitarismo que expandia-se na Europa da primeira metade do século XX. Kafka era um checo nascido em Praga, mas também conviveu, além da cultura judaica, com a alemã. Seu contexto histórico não era dos mais pacíficos e liberais, diga-se de passagem. A atmosfera repressiva que vinha se desenhando, principalmente, na Europa Centro-Oriental é refletida no romance; também há uma previsão, uma antevisão de um futuro ainda mais sombrio que o presente, o qual já era terrível ("O Processo" foi provavelmente escrito durante 1914 e 1915, que foram os dois primeiros anos da I Guerra Mudnial). Os regimes nazi-fascistas que assombrariam o continente europeu nas décadas seguintes trariam consigo algumas das piores e mais cruéis práticas que o ser humano já fora capaz de produzir, e Kafka, inegavelmente, já estava consciente de que era esse o destino que aguardava o Velho Mundo muito em breve.
A morte de Josef K. ao final da obra não era exatamente o que eu esperava, embora já aguardasse um desfecho trágico e triste para "O Processo"; quem sabe a prisão do protagonista, após todos os malogros nas tentativas de escapar de um julgamento absurdo e que só o deixava mais paranóico, ao invés de mais esclarecido. Mesmo assim, julguei adequadíssimo o destino funesto de K., ainda mais depois de ler a sua última frase, ditado após as duas facadas que deram cabo de sua vida: "Como um cachorro!", acompanhada do seguinte comentário do narrador: "Era como a vergonha fosse sobrevivê-lo." Ou seja, a morte acabou sendo um sofrimento abreviado para o personagem, o fim de toda a dor pela qual ele passara nos últimos meses de sua vida.
Concluo, portanto, que Franz acredita na inevitabilidade da derrota perante a uma instituição intocável, que esmaga a todos que a desafiam. Na sua vida ela foi o próprio pai; na sua obra, adquiriu as mais diversas formas, desde a de uma barata ("A Metamorfose") até a Justiça. Eis uma mostra do profundo negativismo de um homem brilhante, porém sofrido.