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Kaio

 

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17 abril 2007

"Como um cachorro!"

Que Franz Kafka era uma pessoa atormentada não se questiona. Sua infância teve o trauma pesado da rigidez e autoritarismo do pai, que se manifestou, direta ou indiretamente, em todas as suas obras. A impossibilidade de vencer algo muito superior, uma força descomunal e imbatível, permeia nos escritos de Kafka de uma maneira ímpar e consideravelmente melancólica.
Das três obras dele que eu já li - os contos "A Metamorfose" e "O Veredicto" e o romance "O Processo" -, é certo notar que a figura do pai é evidente, mesmo que por metáforas. No caso de "O Processo", a Justiça, a Lei representa-o. Josef K., protagonista e alterego de Franz Kafka, é subitamente processado por um crime que ele jamais chega a descobrir qual foi. A injustiça é tamanha que ele, em certo momento da obra, pensa que está sendo julgado pelo simples fato de existir. Porém, nos primeiros momentos do livro, ele subestima um pouco a condição na qual se encontra. Mesmo ficando pasmado com certas situações misteriosas pelas quais passa, como um tribunal secreto e suspeito no qual teve que comparecer, ele crê que poderá escapar da situação. O tempo, no entanto, nega a 1ª impressão de K., o qual sucumbe ao pessimismo e à sensação de impotência com o decorrer da situação.
Outro aspecto notável da obra é a fusão entre a realidade e elementos oníricos; em outras palavras, há certos pontos nos quais o leitor (e, de certa maneira, também o próprio protagonista, já que vemos os fatos sob os olhos dele) não saberá se o que está acontecendo é real ou se são ilusões, sonhos e pesadelos. Some a isso os dilemas existenciais e os questionamentos insolúveis pelos quais Josef K. passa, e você notará a tamanha densidade psicológica que Kafka aplica em sua obra. É bem provável que os leitores (pelo menos no meu caso foi assim) ficarão congelados e impressionados com o desencadear de "O Processo", tanto nas partes mais descritivas quanto nas intervenções do narrador e, principalmente, nos diálogos.
Observa-se também a maneira extremamente negativa e pejorativa com que Kafka retrata o sexo feminino. Todas as mulheres que aparecem no livro têm alguma característica nem um pouco positiva. Leni, por exemplo, é amante de vários dos clientes do seu advogado; a senhorita Bürstner esbanja insegurança; as meninas que moram perto da casa do pintor são descritas como "depravadas e pervertidas"; a mulher do porteiro da secretaria de Justiça demonstra ser promíscua e influenciável.É nesse ponto em que se observa outra influência da vida pessoal do escritor, já que a vida amorosa de Kafka não era das melhores; ele chegou a ser noivo de Felice Bauer e trocou cartas com esta durante meia década, mas o relacionamento findou-se em 1917. Logo, poder-se-ia concluir que suas frustrações com as mulheres, mesmo que não totalmente, resultavam em uma visão, se não machista, ao menos egocêntrica do autor, como se desprezasse as fêmeas.
"O Processo" também abre espaço para uma crítica para o modelo jurídico adotado no decorrer do mundo contemporâneo. Questiona-se se a dita Justiça realmente cumpriria a sua função de defender, através das leis, a ética ou se não teria se desregrado e atendido aos interesses de uma minoria, servindo exclusivamente a esta e eliminando de seu caminho qualquer um cuja existência não interessasse a ela. Este parece ter sido o caso de K. Ele próprio, em uma conversa com o sacerdote na catedral, indaga se a esfera do Judiciário seria tão justa e infalível quanto pretendia ser.
Há ainda uma temática que podemos associar ao livro - o totalitarismo que expandia-se na Europa da primeira metade do século XX. Kafka era um checo nascido em Praga, mas também conviveu, além da cultura judaica, com a alemã. Seu contexto histórico não era dos mais pacíficos e liberais, diga-se de passagem. A atmosfera repressiva que vinha se desenhando, principalmente, na Europa Centro-Oriental é refletida no romance; também há uma previsão, uma antevisão de um futuro ainda mais sombrio que o presente, o qual já era terrível ("O Processo" foi provavelmente escrito durante 1914 e 1915, que foram os dois primeiros anos da I Guerra Mudnial). Os regimes nazi-fascistas que assombrariam o continente europeu nas décadas seguintes trariam consigo algumas das piores e mais cruéis práticas que o ser humano já fora capaz de produzir, e Kafka, inegavelmente, já estava consciente de que era esse o destino que aguardava o Velho Mundo muito em breve.
A morte de Josef K. ao final da obra não era exatamente o que eu esperava, embora já aguardasse um desfecho trágico e triste para "O Processo"; quem sabe a prisão do protagonista, após todos os malogros nas tentativas de escapar de um julgamento absurdo e que só o deixava mais paranóico, ao invés de mais esclarecido. Mesmo assim, julguei adequadíssimo o destino funesto de K., ainda mais depois de ler a sua última frase, ditado após as duas facadas que deram cabo de sua vida: "Como um cachorro!", acompanhada do seguinte comentário do narrador: "Era como a vergonha fosse sobrevivê-lo." Ou seja, a morte acabou sendo um sofrimento abreviado para o personagem, o fim de toda a dor pela qual ele passara nos últimos meses de sua vida.
Concluo, portanto, que Franz acredita na inevitabilidade da derrota perante a uma instituição intocável, que esmaga a todos que a desafiam. Na sua vida ela foi o próprio pai; na sua obra, adquiriu as mais diversas formas, desde a de uma barata ("A Metamorfose") até a Justiça. Eis uma mostra do profundo negativismo de um homem brilhante, porém sofrido.

 

Comentários:

 

 

Li seu post "A respeito da obra de um certo tutor de Alexandre, O Grande ", e tive a impressão em minha leitura que vc é favorável ao aborto em um de seus comentários. Gostaria de saber se vc é contrário ao aborto,

obrigada pela atenção.


opa, falei errado, se vc é a favor da pena de morte!


1. Quanto ao aborto: sim, sou a favor da descriminalização do mesmo.
2. Quanto à pena de morte: sou contra. Não vejo algo positivo em dar para o Estado o direito de executar os cidadãos 'subversivos'. Pelo menos na minha concepção, o Estado deve proteger a vida, e não garantir a morte. Além disso, a pena de morte é meio caminho para uma ditadura.


Ah, até esqueci de comentar belíssimo blog, muito bom os seus textos!

Mas me decepcionei com sua opinião desculpe o termo "clichê" e um tanto contraditória. Afinal tirar vidas inocentes e preservar vida que trazem ameaça a sociedade. Eu, particuarmente sou contra os dois.

Obrigada novamente por ter respondido, pela atenção..


ah, e desculpe pela péssima pontuação acima!
Estou com um pouquinho de pressa, hehe


Ao contrário da pena de morte, o aborto é uma causa liberal. Duas pessoas podem muito bem decidir se querem ou não ter um filho, é uma coisa que cabe somente a elas, o Estado não pode interferir nisso. Por isso eu sou a favor da descriminalização, porque é um meio-termo, já que não haveria uma intervenção estatal nem punindo nem apoiando quem fizesse aborto.
Planejamento familiar é uma coisa muito relativa e individual, por isso cada família deveria ter o direito de escolher se quer ou não o aborto. É mais do que óbvio que descriminalizar não 'estimularia' as cirurgias abortivas, mas sim tiraria da clandestinidade as inúmeras clínicas do gênero. Em um país que busca combater a informalidade, isto seria um avanço incrível.


Bem, acredito que você esteja esquecendo da vida do suposto filho, não é pq não tem o racicínio formada que não é individuo. Existem muitos métodos preventivos não sendo necessário cometer um homicídio, além de que com o aborto legalizado a camisinha ia cair em desuso, o que pode vir a aumentar DSTs.
Já a pena de morte é uma maneira definitiva de retirar a vida de um criminoso preservando a da sociedade.


O aborto, ao menos na minha opinião (e espero que na de todos os 'casais' que tenham ou pretendam recorrer a ele), é um ÚLTIMO RECURSO. É mais do que óbvio que a pessoa pode recorrer a métodos anticoncepcionais como a camisinha e as pílulas, mas duas pessoas não podem ter sua vida inteira prejudicada por causa de um deslize que tenha gerado uma gravidez indesejada. Se o aborto for feito antes da oitava semana, eu não vejo nada de cruel na atitude. Caso eu esteja errado e a maioria das pessoas pretenda parar de usar preservativos porque pode abortar, a culpa já não é minha, mas sim da consciência (ou a falta da mesma) de cada um, mas volto a repetir - aborto não é um crime se for o último recurso para evitar uma gravidez indesejada.


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