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Kaio

 

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30 abril 2013

A Literatura como Vontade ou Representação

Trabalho final para a disciplina "O Quadro de Todos Nós: Ironia, Angústia, Desespero e Reconhecimento", que fiz no semestre passado. Entreguei o trabalho no início de março e recebi a nota (tirei 10) semana passada.

Personagens do diálogo: César, Júlia e Alice.
Cenário: no pátio próximo ao prédio da faculdade de ciências humanas de uma universidade.
Júlia: César, meu querido, para onde vais e de onde vens?
César: Venho da minha última aula de Oficina Literária, e estou indo para a biblioteca começar a escrever o meu romance.
J: Você está escrevendo um livro? Que interessante! Sobre o que ele será?
C: Pois é, ainda não decidi... Só sei que quero escrever um romance de formação, um Bildungsroman! Desde que li “A Montanha Mágica” de Thomas Mann decidi que esta é a forma capaz de combinar a maior diversidade de conteúdos com a maior profundidade filosófica possível.
J: Pode ser, mas isso me faz lembrar um livro que li dia desses, no qual Lukács falava sobre os romances de formação... Ele alertou para dois perigos: o de “romantizar a realidade até uma região de total transcendência à realidade” ou o de levá-la “até uma esfera completamente livre e além dos problemas, para a qual não bastam mais as formas configuradoras do romance.” (1) Ou seja, é uma tentativa de síntese bem complicada, pois um passo em falso pode te levar para uma utopia ou para uma obra prosaica e anti-poética. Você está ciente desses riscos?
C: Sim, estou. Aliás, por sorte encontrei você no caminho, pois queria justamente a sua opinião sobre um assunto: deve a literatura priorizar a ética ou a estética?
J: Eis uma pergunta complicada! Mesmo que eu já tenha uma posição sobre isso, acho que expressá-la de imediato faria com que fosse só uma “opinião”, e não o resultado de uma reflexão que me atormenta desde minha adolescência. Sim, antes mesmo de entrar na universidade eu ficava divagando sobre esses assuntos... [Risos] Não quero soar dramática, mas perguntas como essa são existenciais; toda a visão de mundo – e, quem sabe, até o caráter – de uma pessoa pode ser destrinchada a partir de sua resposta. Mas, enfim... Você está com pressa?
C: Não, posso deixar para ir à biblioteca mais tarde. Com esse suspense todo, confesso que estou ainda mais interessado em saber o que você pensa sobre esse tema!
J: Ótimo. Não tenho mais aulas hoje, então podemos desenvolver esse assunto com o cuidado que ele merece. Primeiro vamos estabelecer os pressupostos. Como você deve saber, sou uma leitora voraz de Arthur Schopenhauer, portanto muito do que penso sobre arte e filosofia têm influência dele.
C: Sim, eu sei. Porém, não me importaria se você repetisse os motivos pelos quais considera que Schopenhauer pode ser um ponto de partida para essa discussão.
J: Pois bem, antes de tudo devo dizer que não sou uma schopenhaueriana ortodoxa. Por exemplo, não concordo com os aspectos mais budistas e até niilistas da ética dele (ou seja, a negação absoluta da Vontade); contudo, quando li “Aforismos sobre a Sabedoria de Vida” encontrei a apologia de um estilo de vida estóico com o qual me identifico. Porém, o que mais me atrai em Schopenhauer é o que ele pensa sobre estética. De acordo com ele, o modo de conhecimento que considera unicamente o essencial propriamente dito do mundo, o conteúdo verdadeiro dos fenômenos, conhecido com igual verdade por todo o tempo – numa palavra, as Idéias, que são a objetidade imediata e adequada da Vontade, “é a arte, a obra do gênio. Ela repete as Idéias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e o permanente dos fenômenos do mundo.” (2)
C: Isso soa meio platônico, não?
J: Sim, mas Schopenhauer alega que as Idéias platônicas não têm o estatuto ontológico máximo, como acreditava o filósofo grego; ou seja, existe um “ente” superior a elas. As Idéias são arquétipos que constituem a máxima objetivação possível da Vontade – a qual, como você deve lembrar, é a coisa-em-si: cega, inflexível e onipotente. O máximo que podemos fazer em relação à Vontade, força superior que nos escraviza, é representá-la, objetivá-la. O essencial de todos os graus de objetivação da Vontade constitui a Idéia; cada uma delas é a forma permanente de toda uma espécie de coisas.
Voltando à questão da arte, a transição possível do conhecimento comum das coisas particulares para o conhecimento das Idéias ocorre subitamente, quando o conhecimento se liberta do serviço da Vontade e, com isso, o sujeito cessa de ser meramente individual. Ou seja, com a representação artística passa a ser possível conceber o mundo não mais segundo o princípio de razão – isto é, com um olhar científico –, mas a partir de uma “fixa contemplação do objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se nessa contemplação.” (3)
C: Hum, então quer dizer que a arte é o modo de consideração das coisas que independe do princípio da razão, da ciência... Isso significa que só na representação artística seria possível uma contemplação objetiva das Idéias, dos arquétipos – e, ao mesmo tempo, que a arte ameniza as imposições da Vontade?
J: Exatamente. Porém, essa amenização é temporária, e só um gênio artístico consegue prolongá-la a ponto de criar uma obra-prima que emane uma arte “pura”. De toda forma, quando todo o poder do espírito é devotado à intuição e nos afunda por completo nesta; quando a gente se perde por completo nesse objeto de contemplação, isto é, “esquece o próprio indivíduo, o próprio querer, e permanece apenas como claro espelho do objeto” – então é como se ambos, sujeito e objeto, se tornassem unos, “na medida em que toda a consciência é integralmente preenchida e assaltada por uma única imagem intuitiva.” (4)
C: Uau! Realmente o que Schopenhauer fala sobre a criação artística faz sentido... Contudo, o que você, a partir dele, quer dizer com isso tudo? Há um primado da estética ou da ética na literatura – para nos restringirmos à arte que me interessa?
J: Ah, a resposta para isso está na influência avassaladora deste pensador nos artistas da segunda metade do século XIX e início do XX; por exemplo, nos simbolistas. Pense bem: qual era mesmo o ideal artístico daquela época?
C: “A arte pela arte”... Mas, quer dizer então que Schopenhauer era um esteticista?
J: Sim! Porém, não da mesma forma que Nietzsche...
Entra Alice.
Alice: Ouvi alguém falar do meu mestre bigodudo?
C: [Risos] Impressionante que é só falar de Nietzsche que o ouvido supersônico da Alice capta!
A: Engraçadinho... Brincadeiras à parte, eu estava voltando da aula de História da Arte Moderna, mas ao encontrá-los aqui no pátio, pensei que seria mais interessante bater papo com vocês do que ir direto para casa.
J: É mesmo? Estamos lisonjeados com a sua presença, Alice.
A: Obrigada, amiga! Mas afinal, sobre o que vocês estão conversando? E por que falaram do “filósofo das marteladas”?
C: É porque pretendo escrever um romance, mas ainda não sei exatamente sobre o que ele será... Para isso, preciso primeiro decidir se o mais importante na criação literária é a ética ou a estética. Aí perguntei para a Júlia o que ela pensa sobre isso. Já que você chegou, também queria saber a sua opinião sobre essa questão.
A: Ora, meu jovem, mas é claro que a estética é o mais importante! Inclusive porque Nietzsche nos mostra que a ética é algo relativo; não passa de instrumento de poder. A moral é antinatural, pois condena os instintos de vida; os “valores” são a expressão do ressentimento dos fracos e covardes contra os fortes e audaciosos. Sendo assim, a Arte se situa acima do Bem e do Mal, pois é a única atividade através da qual o homem, manifestando a sua vontade de poder, restabelece o seu contato com os instintos agressivos reprimidos pela educação moral, podendo assim criar um sentido para a existência. Nas palavras do próprio Nietzsche: “Assim intui o mundo somente o homem estético, que aprendeu com o artista e com o nascimento da obra de arte (...) como necessidade e jogo, conflito e harmonia, têm de se emparelhar para gerar a obra de arte. Quem pedirá ainda a uma tal filosofia também uma ética, com o necessário imperativo ‘tu deves’(...)? O homem, até sua última fibra, é necessidade, e totalmente não-livre - se se entende por liberdade a tola pretensão a poder mudar arbitrariamente de essência como quem muda de roupa, pretensão que até agora toda a filosofia séria rejeitou com o devido sarcasmo.” (5) Logo, a boa literatura é sempre transgressora, vanguardista. Cabe a ela destruir os ídolos e evocar a arte pela arte.
J: Discordo, Alice. Embora eu também defenda o caráter auto-suficiente da arte, essa postura que você adotou é relativista. Reduzir a arte àquilo que seja “vanguardista” e “transgressor” é ignorar a tradição e o patrimônio cultural que a Humanidade acumulou durante toda a sua história. A literatura contemporânea carrega forte influência de nossos antepassados. Obras como “Dom Quixote” e “Hamlet” permanecem atuais; os dilemas morais do príncipe de Dinamarca e as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura continuam a ser fonte de inspiração para todos nós.
A: O problema, amiga, é que este “cânone” é uma construção social elitista; ele representa a ideologia dos grupos dominantes. É preciso questionar essa hegemonia, empoderar quem está de fora. A verdadeira arte é aquela que tem caráter subversivo e, para isso, abraça o experimentalismo na linguagem. Quem leu o “Ulisses” de James Joyce ou mesmo os escritos da Geração Beat sabe do que estou falando! A narrativa linear cedeu espaço para o fluxo de consciência, e não há por que colocar indagações (ou indignações) éticas nisso.
J: “Construção social elitista”? “Ideologia dos grupos dominantes”? “Empoderar”? Parece até que você decorou os jargões de seus professores esquerdistas, pós-modernos, multiculturalistas etc. Não me venha com essas patacoadas politicamente corretas, pois elas são uma ameaça à autonomia do estético! Já diria Harold Bloom: todos os cânones, incluindo esses contra-cânones da moda, são elitistas. A questão que interessa “é a mortalidade ou a imortalidade das obras literárias. Onde se tornam canônicas, elas sobreviveram a uma imensa luta nas relações sociais, mas essas relações têm muito pouco a ver com luta de classes.” (6)
A: Mas que absurdo! Você é tão reacionária quanto seu amado Schopenhauer! Mesmo sendo sua amiga, já não é de hoje que antipatizo com suas posições conservadoras. Desde que começamos o curso, quatro anos atrás, sinto a mesma repulsa às suas vociferações contra as vanguardas artísticas, seu universalismo infantil, seus delírios metafísicos...
C: Calma, meninas! Não briguem por isso. Eu sei que ambas têm posições bem distintas, muito embora compartilhem do rótulo de “esteticistas”; porém, isso não é motivo para se ofenderem. Chegamos a um impasse, e a discussão está à beira do ad hominem. Sendo assim, vou agir como mediador e vou retomar a pergunta inicial; isto é, se na literatura o elemento mais importante é o ético ou o estético. Irei formular questões para ambas, uma de cada vez, de forma que o debate fique mais organizado. Tudo bem?
J & A: Sim, estamos de acordo.
C: Beleza, então. Alice, você argumentava em prol do esteticismo a partir de Nietzsche, certo? Poderia nos explicar o porquê de considerá-lo como portador de tal visão?
A: Claro! Como já disse, Nietzsche dava grande importância para a arte; basta lembrar-se de aforismos maravilhosos como “Sem a música a vida seria um erro.” (7) O que importa para ele é o belo, mesmo que este apareça de um modo cruel, inteiramente estético, naquele espírito libertino, irresponsável, frívolo, que só os bons poetas ousam manifestar. A embriaguez é elemento essencial do impulso artístico; o elemento dionisíaco deve prevalecer sobre a obsessão formalista – e, no final das contas, moralista – do apolíneo. O que importa é o prazer insólito e sem pudor. Uma obra que representa bem isso é “Às Avessas”, do Huysmans: um romance sobre o nada, desprovido de pregações morais e repleto de minuciosas descrições de objetos e ambientes.
C: Entendi, mas por que o esteticismo dele não é o mesmo que o de Schopenhauer?
A: O problema de Schopenhauer foi considerar a arte, o gênio e a beleza como expressões da negação da Vontade, quando na verdade, são a afirmação desta. Por exemplo, quando ele fala que a beleza é redentora do instinto procriador, do “cerne da vontade”, há nisso uma moralização altruísta, pois tenta suprimir nossos impulsos naturais em prol de uma suposta salvação.
C: Concordo com você: Schopenhauer não é inteiramente esteticista; mas, falaremos mais sobre isso depois... Antes disso queria citar uma passagem do “Crepúsculo dos Ídolos” que parece dizer justamente o oposto dessa interpretação de Nietzsche que você está propondo.
A: Como assim? De que trecho você está falando?
C: [Risos] Por sorte, trouxe o livro hoje. Aqui está: A luta contra a finalidade é sempre luta contra a tendência moralizante na arte, contra a sua subordinação à moral. L’art pour l’art significa: ‘Ao Diabo com a moral! ’. – Mas mesmo essa hostilidade revela a força dominante do preconceito. Havendo-se excluído da arte o fim da pregação moral e do aperfeiçoamento humano, não se segue daí que ela seja sem finalidade, sem sentido, sem objetivo; em suma, l’art pour l’art – um verme que morde a própria cauda. (...) O que faz toda arte? Não louva? Não glorifica? Não escolhe? Não enfatiza? (...) Isto é uma coisa acessória? Casual? (...) Ou não é antes o pressuposto para que o artista possa...? Seu mais profundo instinto visa a arte, não visa antes o sentido da arte, a vida? (...) A arte é o grande estimulante para a vida: como poderíamos entendê-la como sendo sem finalidade, sem objetivo como l’art pour l’art?” (8)
A: Sim, é possível que ele tenha dito isso, mas...
C: O que acontece, Alice, é que seu filósofo bigodudo nega qualquer identificação com o ideal da arte pela arte. Na interpretação de Nietzsche, o que importa é a aproximação entre vida e a arte numa conjunção e reconciliação de Apolo e Dionísio, como ocorre nas tragédias gregas. Ora, essa concepção vitalista está longe de ser uma negação da dimensão ética da arte!
A: Pode até ser, mas ainda assim o que mais importa na estética dele é o elemento dionisíaco.
C: Será mesmo? Usar Nietzsche para justificar uma arte hedonista e sem fundo ético não me parece correto, até porque ele apresenta os dois impulsos como diversos, mas complementares. “O impulso dionisíaco era um movimento vital, torrencial, transbordante, que transcendia a individualidade humana – por ele ameaçada nos seus contornos, nos seus limites, na sua forma; o impulso apolíneo, ao contrário, era criador de formas, um sonho de imagens que resistia à violência do primeiro impulso e encaminhava suas energias para a produção de formas belas e individualizadas.” Um não pode existir sem o outro: “entregue a si mesmo, o impulso dionisíaco era como uma terrível avalanche que destruía tudo na embriaguez de sua passagem descontrolada; sem contato com o impulso dionisíaco, o impulso apolíneo se estiolava, sem significação verdadeira.” (9)
A: Insisto que o dionisíaco é o elemento central da filosofia de Nietzsche. Porém, já percebi que você é cabeça-dura e não desistirá dessa sua ingênua posição universalista... Mas, deixa pra lá; qual é então a sua interpretação do pensamento nietzscheano?
C: Defendo uma visão mais culturalista, humanista de Nietzsche. O que aprecio nele é fazer da filosofia uma vitória sobre si mesmo, uma autocrítica de seus valores mais profundos. Ele não é arrogante quando se considera um psicólogo. Ao mesmo tempo, não devemos levá-lo ao pé da letra, sendo que ele próprio confessou em “Ecce Homo” que ataca mais violentamente justamente aquilo que mais respeita. Nisso podemos incluir o cristianismo, a Alemanha, Schopenhauer etc. Assim falava Thomas Mann: “Ele sentia como uma forma de homenagem as ofensas mais terríveis que contra eles lançava. (...) Não apenas é arte o que Nietzsche oferece, mas também lê-lo é uma arte. Quem leva Nietzsche no ‘sentido estrito’, ao pé da letra, quem crê nele, está perdido.(10)
Porém, há algo de que não podemos salvá-lo: o erro de Nietzsche é a relação completamente falsa que traça entre a vida e a moral, considerando-as contrárias. Na verdade elas são inseparáveis; a ética é um suporte para a vida e o homem moral é um bom “cidadão da vida” - talvez um pouco chato, mas muito útil. A pura afirmação da vida só poderia levar às profundezas, ao elemento irracional e animalesco, à autodestruição.
Além disso, como deixei a entender na minha própria pergunta inicial, a verdadeira oposição é entre a ética e a estética. Não é a moral, mas sim a beleza que está ligada à morte. Eis o meu problema com o esteticismo em sua versão hedonista: a beleza em sua forma pura e espontânea “leva à embriaguez e à cobiça, arrisca levar um coração nobre a cometer um atentado atroz contra o sentimento, atentado que sua própria exigência de austera beleza repudia como infame” (11). Sem freios morais o belo conduz ao abismo, é o abismo.
A: Não sei se concordo com essa visão... Porém, admito que seja uma perspectiva possível sobre Nietzsche, permitida pela ambigüidade que marca a obra dele.
J: Já eu concordo plenamente, César! Nietzsche não é exatamente um esteticista; sua afirmação exacerbada da Vontade o levou a uma filosofia circular; sob tal impasse, talvez se explique o interesse tardio dele por explicações cosmológicas como o “eterno retorno”. Devo admitir, contudo, que há um quê de poético nessa “vitória sobre si mesmo”, e de fato Nietzsche é muito mais humanista do que seus epígonos niilistas gostariam de crer...
C: Exato, mas não pense que vou livrar a sua barra, Júlia... Tenho também alguns pontos para elucidar contigo. Você insiste que Schopenhauer seja esteticista, certo?
J: Sim, e não tenho motivos para crer no contrário. A arte é um fim em si mesmo, é contemplação pura. As grandes obras artísticas evocam uma objetividade e paz de espírito na qual se torna manifesto o calmo e sereno estado de espírito do artista livre da opressão da Vontade.
C: Já eu penso que também ele tem um fundo ético em sua teoria estética. Isso se delineia na própria distinção entre o belo e o sublime: “No belo o puro conhecimento ganhou a preponderância sem luta, pois a beleza do objeto, isto é, a sua índole facilitadora do conhecimento da Idéia, removeu da consciência, sem resistência e portanto imperceptivelmente, a vontade e o conhecimento das relações que a servem de maneira escrava”. No sublime ocorre o oposto: “aquele estado de puro conhecimento é obtido por um desprender-se consciente e violento das relações do objeto com a vontade conhecidas como desfavoráveis, mediante um livre elevar-se acompanhado de consciência para além da vontade e do conhecimento que a esta se vincula. Uma tal elevação tem de ser não apenas obtida com consciência, como também mantida com consciência”. (12)
J: Poxa, não sabia que você também lia bastante Schopenhauer... Mas espere aí, você está querendo dizer que há um elemento ético no sublime?
C: Exatamente. O caráter sublime “notará erros, ódio, injustiça dos outros contra si, sem no entanto sentir inveja; até mesmo reconhecerá as qualidade boas dos homens, sem, no entanto procurar associação mais íntima com eles; perceberá a beleza das mulheres, sem cobiçá-las. (...) Pois, em seu próprio decurso de vida com seus acidentes, olhará menos a própria sorte e mais a da humanidade em geral, e, assim, conduzirá a si mesmo mais como quem conhece, não como quem sofre.” (13)
J: Ainda não estou convencida... Fale mais dessa conexão entre a estética redentora e a doutrina do sofrimento humano.
C: Para Schopenhauer a literatura, bem como a filosofia, trata do conflito da Vontade consigo mesma, que se manifesta no plano empírico pela vontade de viver. Os conceitos, tanto na poesia e tragédia quanto na filosofia, podem abrir um amplo território imagético, expondo assim o conflito humano de “ser para a morte”.
É nesse sentido que Thomas Mann fala no humanismo pessimista que emana da filosofia schopenhaueriana: Não é em vão que Schopenhauer vê a dignidade do homem na estátua do Deus das Musas. É uma visão profunda e particular, unindo a arte, o conhecimento e a dignidade do sofrimento humano, que se revela nesta imagem; é um humanismo pessimista que, considerando que o humanismo tem essencialmente a colaboração dum otimismo de retórica, representa qualquer coisa inteiramente nova e, ouso afirmá-lo, uma visão de futuro fecunda no domínio das convicções. No homem, suprema objetivação da Vontade, este humanismo é iluminado pelo mais claro conhecimento; mas à medida de que o conhecimento atinge maior nitidez, que a consciência se eleva, também o sofrimento cresce. (14) Ou seja, justamente porque a vida humana é inescapavelmente ligada à dor e ao sofrimento é que cabe à arte nos salvar desse mundo despido de ilusões e sonhos metafísicos. Se isso não tem a ver com ética, então não sei o que mais tem!
J: Ok, agora você foi mais convincente. Porém, agora que você já fez todo esse exercício dialético comigo e com a Alice, qual é a posição que defende quanto ao tema que propôs?
C: Pois bem, afirmo que, por mais que os dois elementos sejam indissociáveis, acredito que a ética tem ligeira preponderância. Não quero com isso chegar ao exagero de Platão quando defendeu uma poesia moralizante, mas acredito que a grande literatura é aquela que consegue encontrar o equilíbrio entre forma e conteúdo. O que une Thomas Mann, Dostoievski, Goethe e outros grandes escritores é a capacidade deles de combinar personagens e enredos com profundidade psicológica e dilemas morais e existenciais com um estilo que seja belo (ou sublime).
Além disso, como diria Lukács, a relação entre ética e estética no romance é diferente das formas literárias anteriores: enquanto na épica, trágica e lírica “a ética é um pressuposto puramente formal que, por sua profundidade, torna possível um avanço até a essência formalmente condicionada”, no romance “a intenção, a ética, é visível na configuração de cada detalhe e constitui, portanto, em seu conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria composição literária.” (15) Além disso, na forma romanesca uma trama bastante comum é a aventura da interioridade em busca de seu valor próprio, isto é, a peregrinação do indivíduo problemático ao autoconhecimento. E é justamente por isso que prefiro o romance de formação, pois...
J: Lembre-se, César, do que eu lhe disse no início da conversa: Lukács tem ressalvas quanto ao Bildungsroman.
C: Sim, mas também em “A Teoria do Romance” ele afirma que, normativamente, o romance de formação visa à “reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta.” (16) Ou seja, é a forma que coloca mais explicitamente a necessidade de conciliar não só ética e estética, mas também mundo interior e mundo exterior. Thomas Mann, que é um autor que Lukács tanto admira pelo realismo crítico de seus romances, é outro que afirma a indivisibilidade do problema da humanidade: o estético, o moral e o político-social são uma unidade, e a arte “não estende a fria mão diabólica do niilismo à vida”.  (17)
J: Pode até ser isso mesmo, mas cabe uma ressalva li numa pertinente crítica que Otto Maria Carpeaux fez a autores como Albert Camus e o próprio Mann: a literatura não pode exacerbar seu caráter filosófico/ensaístico. “O estudo das minúcias gramaticais, do vocabulário, da construção das frases trai implacavelmente o segredo mais íntimo; e num autor de trabalho minucioso, de vocabulário artificialmente escolhido, de frases meticulosamente construídas (...), tudo trai a impotência para o verbo espontâneo, penosamente disfarçada sob as máscaras da estilização. (...) A grande maioria dos romances da nossa época não passam de ensaios, de ensaios frustrados.”  (18)
C: É, tem toda razão, Júlia. Por mais que eu goste de Thomas Mann, às vezes as pretensões ensaísticas ou filosóficas que ele tenta dar às suas obras são maçantes e prejudicam a fruição artística do belo ou sublime. Porém, acredito que esse problema é mais remediável do que o hiper-esteticismo de alguns contemporâneos dele que, sob os mais diversos rótulos, desenvolveram uma literatura auto-indulgente na forma e niilista no conteúdo. Não consigo compactuar com essas apologias à decadência e essa tentativa de renegar a tradição...
Mas enfim, isso nos levaria a outro debate, e acredito que já chegamos a uma conclusão neste. O que procurei demonstrar a vocês é que Schopenhauer e Nietzsche não são tão esteticistas quanto muitos de seus epígonos querem crer; também defendi que a ética é elemento fundamental da forma romanesca, na medida em que o denominador comum dos grandes romancistas é a combinação da beleza ou sublimidade no estilo com a densidade psicológico-filosófica dos personagens e tramas; deve-se, portanto, evitar tanto a literatura excessivamente moralizante quanto o perigoso esteticismo da “arte pela arte”. O bom romance é aquele que consegue retratar a busca pelo sentido existencial de uma forma genuinamente poética.
Obrigado pelas suas contribuições, Alice e Júlia. Quando eu já tiver escrito alguns capítulos do romance, mostrarei para vocês!
A: Mal posso aguardar! Mas espero que você leve a sério a crítica que acatou sobre o ensaísmo exacerbado... [Risos]





(1) LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 145.
(2) SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: UNESP, 2005, p. 253.
(3) Ibidem, p. 245.
(4) Ibidem, p. 246.
(5) NIETZSCHE, Friedrich. “A Filosofia na Época Trágica dos Gregos”. In: Obras Incompletas (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 257.
(6) BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 56.
(7) NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 14.
(8) Ibidem, p. 77-78.
(9) MELLO, Mario Vieira de. O Humanista. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 29-30.
(10) MANN, Thomas. Schopenhauer, Nietzsche, Freud. Madri: Alianza Editorial, 2000, p. 100 e 130.
(11) Idem, A Morte em Veneza. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 87.
(12) SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: UNESP, 2005, p. 274.
(13) Ibidem, p. 280.
(14) MANN, Thomas. Schopenhauer, Nietzsche, Freud. Madri: Alianza Editorial, 2000, p. 69-70.
(15) LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 72.
(16) Ibidem, p. 138.
(17) MANN, Thomas. “O Artista e a Sociedade”. In: Ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 35.
(18) CARPEAUX, Otto Maria. “O Admirável Thomas Mann”. In: Ensaios Reunidos, 1942-1978. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 253-254.

 

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