A CRÍTICA AO NIILISMO EM
DOSTOIÉVSKI E THOMAS MANN
(Texto que apresentarei hoje no GT 1 - Teoria Política da II SEPOCS)
Resumo: Este
trabalho comparará a crítica ao niilismo presente nos romances Os Demônios (Dostoiévski) e Doutor Fausto (Thomas Mann). O objetivo é
compreender a forma como ambos os autores representaram artisticamente um
conjunto de idéias radicais, relativistas e/ou que negam qualquer sentido
existencial ou metafísico. Para isso serão analisados tanto os respectivos
contextos sociais e históricos em que estes escritores viveram quanto as
perspectivas filosóficas e políticas que os orientam. No romance dostoievskiano
há uma crítica cristã e conservadora à mentalidade revolucionária, a qual
superestima os poderes da razão e da autonomia humana. Personagens como o
soturno Stavróguin, o suicida Kiríllov e o ambicioso Vierkhoviénski simbolizam
as várias facetas que, segundo Dostoiévski, o niilismo pode assumir. Por sua
vez, na obra de Thomas Mann predomina uma preocupação humanista com o lado
imoral e diabólico que o esteticismo pode assumir. O autor se apropria do mito
fáustico para elaborar a trágica história de Adrian Leverkühn, um músico que
pactua com o diabo para adquirir maior inspiração artística. Seu círculo
social, que envolve desde teólogos negativistas até intelectuais nietzscheanos,
permite elucidar o desvirtuamento da Bildung
(formação) deste protagonista. O propósito epistemológico que orienta este
trabalho é a possibilidade de estudar temas da Filosofia Política por meio da
Literatura.
Palavras-chave: Niilismo;
Humanismo; Esteticismo; Filosofia Política; Literatura.
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Introdução
Dois dos principais
autores de “romances filosóficos” (ou “romances de idéias”) são o russo Fiódor
Dostoiévski (1821-1881) e o alemão Thomas Mann (1875-1955). Além das qualidades
estritamente estéticas de suas obras, ambos conseguiram desenvolver enredos e
personagens dotados de profundas reflexões existenciais, morais e políticas.
Embora Dostoiévski tenda a enfatizar questões éticas e metafísicas e Mann tenha
como tema central a relação entre artista e sociedade, é possível verificar
características em comum. Uma delas é a preocupação em dar densidade
psicológica aos caracteres, por meio de monólogos interiores, a relação irônica
do narrador com os personagens e a polifonia.
Outra possível aproximação
entre os dois é a temática do diabólico. Esta trama aparece no dostoievskiano Os Irmãos Karamázov (1880), quando Ivan,
após descobrir que foi mentor indireto do assassinato do pai, tem uma estranha
conversa com o Diabo. Já Thomas Mann, em Doutor
Fausto (1947), como o próprio título sugere, apresenta um pacto diabólico
entre o protagonista Adrian Leverkühn e um demônio multiforme (que ora assume
um aspecto animalesco, ora se assemelha a um intelectual sofisticado), no qual
se sela o acordo que permitirá a Adrian ser dotado de grande inspiração musical
por vinte e quatro anos.
Estas “conversas demoníacas”
são também uma alegoria do principal ponto de convergência entre Mann e
Dostoiévski, e que será o tema deste trabalho: a crítica ao niilismo,
que é visto por ambos como sintoma de decadência moral e cultural e produtor de
conseqüências devastadoras tanto para o indivíduo niilista quanto para seus
contemporâneos.
Ambos os escritores
viveram em contextos turbulentos: Dostoiévski foi contemporâneo de movimentos
socialistas e anarquistas que promoveram atentados terroristas e assassinatos
políticos na Rússia czarista; Mann presenciou as duas guerras mundiais e, entre
elas, a ascensão do nazismo. Sendo assim, cabe investigar de que forma ambos
enxergaram o niilismo em suas respectivas épocas, e como este foi simbolizado
em suas criações literárias. Para essa comparação escolhi as duas obras em que
a questão niilista é tema central: Os
Demônios (1871) e Doutor Fausto.
Os
Demônios é a obra mais crítica de Dostoiévski; o objetivo do
autor “era fazer um ensaio sobre o ateísmo, um ensaio acerca do mal em seu
funcionamento, na sua fenomenologia absoluta. Nesse sentido, esse livro parece
ser uma profunda reflexão acerca do relativismo e do niilismo.” (PONDÉ, 2003:
239) Já Doutor Fausto é contemporâneo
à II Guerra, e não se furta de conectar ficção com fatos históricos: “Alemanha,
teologia reformada, demonismo, esteticismo, niilismo, guerra, a proibição de
amar ao próximo. Tudo se conecta maravilhosamente neste ‘livro do Diabo’,
formando um quadro definitivo que mostra como o Ovo da Serpente foi gestado.”
(CORDEIRO, 2011)
Os primeiros dois
capítulos deste artigo analisarão separadamente as duas obras. No que diz
respeito a Os Demônios, o propósito é
entender como três dos personagens - o soturno Nikolai Stavróguin, o suicida
Kiríllov e o ambicioso Piotr Vierkhoviénski - simbolizam as facetas que,
segundo Dostoiévski, o niilismo pode assumir. Em Doutor Fausto a ênfase será em Adrian Leverkühn, músico ambicioso e
esteticista, mas também em seu círculo social, que abrange desde teólogos liberais
e negativistas até intelectuais vitalistas, e que permite elucidar o
desvirtuamento da Bildung (formação)
de Adrian. No terceiro capítulo irei comparar ambas as obras, elucidando qual a
perspectiva de Thomas Mann e qual a de Dostoiévski sobre o niilismo, tanto nos
pressupostos quanto nos alvos de suas respectivas críticas. Seguir-se-ão as
considerações finais, com um balanço da discussão prévia.
O propósito
epistemológico que orienta este trabalho é a possibilidade de estudar temas da
Filosofia Política por meio da Literatura. Em outras palavras, acredito na
possibilidade de discutir e refletir sobre teorias e ideologias políticas a
partir da arte, na medida em que a literatura consiga representá-las de forma
mais clara e instigante do que um estudo estritamente conceitual. Os literatos
de gênio - cânone do qual fazem parte autores como Dante, Shakespeare, Goethe e
os próprios Dostoiévski e Mann - são capazes de criar poderosas metáforas e
alegorias sobre idéias e fenômenos políticos, permitindo assim uma fecunda
relação entre os campos do Pensamento Político e da Estética.
Outra justificativa
para esta articulação entre Arte e Política reside na capacidade da literatura
de cunho realista de apresentar personagens sócio-historicamente enraizados e situados
em mundos sociais particulares. Segundo Luis de Gusmão, “a lucidez intelectual
desses romancistas não se manifesta exatamente na formulação explícita,
discursiva, de um saber ‘sobre o homem’, devendo antes ser buscada na
construção de personagens complexas e plausíveis, as quais, em determinadas
circunstâncias, por palavras ou atos, evidenciam ‘coisas que podíamos não
perceber’, alargando assim o nosso autoconhecimento.” (GUSMÃO, 2012: 39).
Destarte, neste artigo investigarei o niilismo por meio da representação
literária que Fiódor Dostoiévski e Thomas Mann fizeram do mesmo em Os Demônios e Doutor Fausto.
As
Três Faces do Niilismo em Os Demônios
Quando começou a
escrever Os Demônios, em 1869, Dostoiévski
já era um romancista maduro e consagrado. Mais do que isso, os temas que
aparecem nesta obra já haviam sido prefigurados em Memórias do Subsolo (1864) e Crime
e Castigo (1866). Personagens como o “homem do subsolo” e Raskólnikov já
apresentavam os dramas morais e existenciais que serão retomados, sob um
recorte mais político, em Os Demônios.
Esta continuidade temática é constatada por Albert Camus: “todos os heróis de
Dostoiévski se questionam sobre o sentido da vida”, sendo que tal questão “é
colocada com tal intensidade que só admite soluções extremas. A existência é
enganosa ou é eterna.” (CAMUS, 2010:
106)
A inspiração imediata
para este romance foi o assassinato de Ivanov, um membro da célula revolucionária
liderada pelo estudante anarquista Sergey Nechaev. Tal homicídio tinha como
objetivo “estreitar os laços que uniam o grupo, ao tornar cúmplices os seus
integrantes. Dostoiévski fica impressionado com o acontecimento, noticiado nos
jornais, e passa a pesquisar e estudar o caso, pois o considera típico da
geração dos niilistas russos.” (PONDÉ, 2003: 234) Nechaev, aliás, serviu de
base para o personagem Piotr Vierkhoviénski, que na obra desempenha o papel de um
cínico e ambicioso líder de um grupo revolucionário.
Ou seja, a motivação
inicial para a obra é política: denunciar as atrocidades da intelligentsia revolucionária russa. Porém,
Os Demônios não se resume a mera
panfletagem reacionária, pois Dostoiévski nutria preocupações mais profundas: analisar
a fenomenologia do niilismo, compreender a mentalidade revolucionária. Sendo
assim, evitou maniqueísmos e criou perfis psicológicos complexos mesmo para os
personagens de posições mais radicais.
O leitmotiv deste romance é uma resposta à ambigüidade quase
condescendente de Turguêniev em Pais e
Filhos (1862): há jovens niilistas porque houve pais liberais. Trocando em
miúdos, Dostoiévski está questionando a viabilidade da geração dos filhos cujos
pais acreditam na educação liberal,
ou seja, “na idéia de que a natureza humana, entregue a si mesma, vai encontrar
o seu caminho, o que para ele, na realidade, está preparando a destruição.” (Ibidem: 241). A relação entre Piotr
Vierkhoviénski e seu progenitor Stiepan Trofímovitch simboliza bem esta questão.
Ainda segundo Pondé:
“Nesta obra, o risco da
diabolização da vida, via desconstrução organizada revela sua face histórica: a
modernidade pode ser vista como a entrada da experiência do Nada pelas mãos dos
projetos de emancipação em direção ao vazio. Mas esse processo pode ser
pontualmente identificado tanto na preguiça do pai liberal quanto na fúria
transformadora do jovem cínico.” (Idem, 2009: 254)
Intelectual
proletarizado, Dostoiévski não compartilhava do liberalismo dos grandes
senhores Turguêniev e Tolstoi, diagnosticando com agudeza o anarquismo como
conclusão paradoxal, mas coerente do liberalismo burguês. Porém, “também
reconheceu o mesmo anarquismo no terrorismo-niilismo dos radicais russos, que
estavam muito longe ainda do socialismo marxista. Nos Demônios, identificou o liberalismo dos pais e o anarquismo dos
filhos.” (CARPEAUX, 2011: 2045)
Os
Demônios também pode ser lido como o romance que mostra a
degeneração do dogma da perfectibilidade na Modernidade e a lógica prática do
niilismo, sendo que o núcleo deste consiste na “afirmação da possibilidade de
criarmos um mundo ‘inteiramente novo’, fruto de nossas idéias de liberdade
histórica e não teológica” (PONDÉ, 2009: 255) Cabe agora ver como todos estes
aspectos se manifestam em três dos personagens da obra.
Começarei pelo
engenheiro Kiríllov, que tem o intrigante propósito de se suicidar para provar
que é um homem-Deus: “aquele para quem for indiferente viver ou não viver será
o novo homem. (...) Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e o medo
se tornará Deus.” (DOSTOIÉVSKI, 2004: 121) Kiríllov segue cegamente a mais
rígida lógica, e “infere de sua hipótese (‘Se Deus não existisse...’) a
licitude de todo comportamento amoral e, por fim, se suicida para provar a
não-existência de Deus.” (VOLPI, 1999: 42)
Porém, Piotr
Vierkhoviénski quer aproveitar esta intenção de Kiríllov para conseguir um
álibi: o suicida assinaria uma carta na qual declarava que matara Chátov,
membro da célula revolucionária que seria morto por tê-la abandonado (teve uma
desilusão ideológica) e por queima de arquivo (Chátov “sabia demais”).
Kiríllov, apático frente a sua existência e convicto de seu projeto, não se
importa de ser usado para acobertar o crime.
Camus dedicou um
capítulo de seu ensaio O Mito de Sísifo (1942) para analisar este
personagem, considerando-o uma espécie de pré-nietzscheano: “Para Kiríllov,
assim como para Nietzsche, matar Deus é tornar-se deus - ou seja, realizar
nesta Terra a vida eterna de que fala o Evangelho.” (CAMUS, 2010: 108) Ou seja,
para Kiríllov tornar-se deus é apenas ser livre nesta Terra e, sobretudo, extrair
todas as conseqüências dessa dolorosa independência.
René Girard também encontrou
convergências entre a visão de mundo do personagem com a do filósofo alemão.
Ele afirma que, em Os Demônios, se
desenrola o verdadeiro diálogo entre Nietzsche e Dostoiévski: “Como Zaratustra,
(...) Kiríllov quer adorar seu nada. Ele quer adorar o que cada um de nós
descobre de mais miserável e de mais humilhado na parte mais profunda de si
mesmo. (...) Kiríllov espera, ao se matar, ligar-se a si mesmo numa possessão
vertiginosa.” (GIRARD, 2009: 306-307)
Porém, a morte do
personagem não foi tão grandiosa quanto este planejava. Após presenciar o parto
do filho de Chátov, Kiríllov começa a sentir compaixão pela humanidade e perde
um pouco de sua frieza megalomaníaca. Depois de muito hesitar diante da pressão
de Vierkhoviénski para que se mate logo e assim cumpra o plano (a propósito,
Chátov fora assassinado poucas horas antes desta última visita de Piotr a
Kiríllov), ele põe fim à própria vida de forma desesperada, sem a tranqüilidade
pretendida. Ou seja, no fim das contas seu suicídio teve um quê de revoltado: “Mato-me
para dar provas de minha insubordinação e de minha liberdade terrível e nova.”
(DOSTOIÉVSKI, 2004: 600) De acordo com Girard:
“Kiríllov fracassa. Em vez da
apoteose serena que ele cogita, sua morte desencadeia um horror indizível sob o
olhar do ser mais ignóbil, Vierkhoviénski, o Mefistófeles dos Possessos. (...)
O poder absoluto almejado confunde-se, perante a morte, com uma impotência
radical. (...) Kiríllov é precipitado do ápice do orgulho às profundezas da
vergonha. Se ele acaba se matando é no desprezo por si próprio e no ódio de sua
finitude, como os demais homens. Seu suicídio é um suicídio comum.”
(GIRARD, 2009: 308)
O segundo dos niilistas
é Nikolai Stavróguin. Em sua infância e juventude ele teve como tutor Stiepan
Trofímovitch (pai de Piotr); portanto, é o personagem que mais reflete as
conseqüências da “educação liberal”. Nikolai pode ser considerado como o
mediador de todas as personagens de Os
Demônios. Dotado de uma grandeza satânica, ele se porta como um cadáver
ambulante, deixando um rastro de destruição em todas as suas relações sociais.
Dentre seus feitos estão: brigas de bar, relações adúlteras, duelo de armas, humilhação
pública de um governador, o casamento secreto com uma mulher com problemas
mentais (e em cujo assassinato foi cúmplice) - e, num dos capítulos mais perturbadores
da obra, Stavróguin confessa a um monge que molestou sexualmente e levou ao
suicídio uma menina de 11 anos.
Há dois trechos da obra
em que a psique de Nikolai é mais bem explicitada. O primeiro deles é o
capítulo supramencionado, no qual, durante a conversa com o monge, Stavróguin descreve
sua triste sina existencial: “Toda situação ignominiosa demais, humilhante ao
extremo, torpe e principalmente cômica por que tive de passar em minha vida,
sempre despertou em mim um extraordinário prazer ao lado de uma desmedida ira.
(...) Não era da vileza que eu gostava (...), [mas] do êxtase que me vinha da
angustiante consciência da baixeza.” (DOSTOIÉVSKI, 2004: 666) O outro momento é
em sua carta de suicídio, na qual afirma temer que sua morte auto-infligida
mostre magnanimidade: “Experimentei uma grande devassidão e nela esgotei minhas
forças; mas não gostava e nem queria a devassidão. (...) Em mim nunca pode
haver indignação e vergonha; logo, nem desespero.” (Ibidem: 651-652)
Estas passagens tornam
visível a angústia que marca Stavróguin: “ele é o mal que dissolveu sua
personalidade por dentro. Embora continue vivo, não tem mais nenhum ruído
interior, é totalmente esvaziado de sentido.” (PONDÉ, 2003: 244) Conquanto à
primeira vista Stavróguin pareça movido apenas pela vontade diabólica de tudo
corroer e destruir há também nele um desejo de martírio e auto-sacrifício. Um
exemplo disso é o fato de ter se casado com uma deficiente mental, o que causou
furor pelo fato de Nikolai ser de uma família nobre. Seu niilismo é menos
político que o de Piotr e menos filosófico que o de Kiríllov, mas Nikolai
encarna de maneira mais intensa a tragédia existencial acarretada pela
dissolução dos valores.
Por sua vez, Piotr
Vierkhoviénski é o único dos três niilistas que não cometeu suicídio, sendo
também aquele que teve um “final feliz”, pois conseguiu fugir para o exterior
depois do assassinato de Chátov. Ele alterna entre a aparência social de um
sujeito culto e refinado e a revelação, em círculos fechados, de suas verdadeiras
intenções. Durante uma reunião da célula revolucionária que lidera, Piotr
descreve o “espectro niilista” que assola a população:
“Ouça, tenho uma relação de todos
eles: o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço
delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa
condição já é mais evoluído do que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro,
não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para
experimentar a sensação, já são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos
a torto e a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não
ser suficientemente liberal é dos nossos. Os administradores, os escritores,
oh, os nossos são muitos, um horror, e eles mesmos não sabem disso!”
(DOSTOIÉVSKI, 2004: 409)
Vierkhoviénski é o
personagem que mais se aproxima do que Dostoiévski concebe como o “homem
moderno” - o que é um retrato crítico e não apologético, afinal o autor vê a Modernidade
como um processo de dissolução moral. Piotr encarna a tentação do orgulho e a
promessa de autonomia metafísica, e pode ser visto como um indício de que o
niilismo russo foi pouco mais que uma vertente elitista do socialismo. Assim
como vários niilistas reais do Século XIX, este personagem rejeita a
mobilização de massa, defendendo uma atuação baseada em vanguardas. “Enquanto
os chamados populistas depositavam suas esperanças na mobilização popular, os
niilistas pregaram a precedência da transformação pessoal sobre a coletiva e,
mais tarde, a ação coletiva, se necessário.” (DRUCKER, 2010: 116)
No âmbito
epistemológico, Piotr é um relativista. Para ele, a história não existe, “não é
nada além da tradição que deve ser destruída”, pois a verdade “é simplesmente
um conceito feito para aprisionar as pessoas em crenças e deter sua autonomia.”
(PONDÉ, 2003: 238). Desta maneira, Vierkhoviénski personifica o homem de ação
(ou “extraordinário”) que Dostoiévski já havia descrito antes nas Memórias do Subsolo e em Crime e Castigo:
“O niilista busca o fundamento pelo
fundamento para poder avançar. Ele faz da ausência de fundamento um suposto
fundamento para a sua ação, seja por burrice, seja por maldade ou por
simplesmente compulsão para ir adiante. (...) É possível sugerir que o niilismo
significa, antes de mais nada, exacerbação do Iluminismo, no sentido da
radicalização da busca de um ponto seguro dentro do eu. Como o eu, porém, não
pode ser elevado à categoria de ponto seguro, o processo de auto-afirmação não
resulta em nada.” (DRUCKER, 2010: 166)
Por fim, cabe dizer que
Vierkhoviénski percebe que a chave da revolução é o niilismo, “é buscar o
estado em que, diante de um universo totalmente devastado de sentido, acaba-se
destruindo toda possibilidade de sentido.” (PONDÉ, 2003: 246) O desprezo pelo
pai Stiepan, a manipulação da governadora Yúlia (que, bajulada por Piotr, não
percebeu as movimentações do grupo revolucionário na cidade), o uso político do
suicídio de Kiríllov e o assassinato de Chátov são algumas das demonstrações de
sua conduta perversa.
“Psicólogo afiado, sociólogo que
compreende a fragilidade das estruturas socialmente construídas, teórico de uma
cultura da liberdade política a nascer, Piotr é um rapaz jovem e assaz
inteligente, capaz de manipular minúcias que visam uma ordem universal
dependente de outros jovens inteligentes como ele. (...) Para além de um
discurso político articulado ao redor da idéia do Nada a ser construído, um
anúncio de uma tendência claramente perversa como prática contra qualquer ordem
possível.” (Ibidem:
256)
O
Trágico Destino de Leverkühn em Doutor
Fausto
Doutor
Fausto começou a ser escrito em maio de 1943, durante a 2ª
Guerra Mundial. Este delicado contexto político é o pano de fundo para que
Serenus Zeitblom, narrador da obra, conte a terrível saga de Adrian Leverkühm,
seu melhor amigo. Thomas Mann afirmou que pretendia elaborar um romance de sua
época, “disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e
pecaminosa.” (MANN, 2001: 35). Em A
Gênese de Doutor Fausto (1949), o autor alegou estar cauteloso quanto ao
risco de, com seu romance, “contribuir para a criação de um novo mito
germânico, de lisonjear os alemães com seu aspecto ‘demoníaco’”. Para evitá-lo,
procurou “dissolver o tema do livro - crise, um tema de tonalidade de resto tão
germânica - o máximo possível num contexto geral histórico e europeu.” (Ibidem: 48-49)
Doutor
Fausto também foi a retomada de um projeto literário antigo:
“Quarenta e dois anos haviam se
passado desde que eu fizera anotações para um possível projeto de trabalho
sobre um pacto entre um artista e o diabo, e buscá-las e revê-las provocou em
mim uma comoção, para não dizer um abalo emocional, que me evidencia, já no
começo, uma aura de sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático
vago e escasso, uma atitude biográfica etérea, cujo alcance, mais profundo do
que minha própria visão, predestinou a novela a se tornar romance.”
(Ibidem: 20-21)
Segundo Nivaldo
Cordeiro, Thomas Mann foi um dos poucos que compreendeu o que estava em jogo,
desde sua origem, quando a ascensão nacional-socialista estava em seus
primórdios e as potências do Ocidente ainda falavam em desarmamento
voluntário. (cf. CORDEIRO, 2011). Mesmo morando nos Estados Unidos, pois
exilado da Alemanha, Mann continuou sua denúncia do totalitarismo, como demonstram
seus Discursos contra Hitler
(1940-45), transmitidos pela BBC. Nesse sentido, Doutor Fausto é um retrato artístico da decadência da
intelectualidade alemã nos anos que antecederam a ascensão dos
nacional-socialistas ao poder. Mann pretendia traçar um paralelismo entre a
embriaguez popular fascista e uma euforia artística danosa que desemboca num
colapso. (cf. MANN, 2001: 29)
Como já foi dito, o
livro consiste nas memórias do professor humanista Serenus Zeitblom sobre o seu
amigo Adrian Leverkühn. Elas demonstram desde o início uma interessante questão
metafísica: Adrian se sentia alienado e inútil em relação a Deus, o que se
refletia até mesmo em sua timidez e incapacidade para cultivar relações sociais.
Este tormento religioso se refletiu na decisão de, antes de seguir a carreira
musical, cursar Teologia. Na universidade, conviveu com professores que só
reforçaram suas tendências niilistas, sendo que os principais eram o teólogo
liberal Kumpf e o negativista Schlepfuss:
“A ingênua convivência que o
professor Kumpf tinha com o Diabo era simples brincadeira em comparação com a
realidade psicológica que Schelepfuss conferia à figura do Destruidor,
personificação da traição a Deus. Pois, se me permitem expressar dessa forma, acolhia
ele dialeticamente na esfera divina o escândalo do pecado e o inferno no
empíreo, elevando a perversidade à categoria de necessária e congênita
correlação de santidade, a qual, por sua vez, seria uma contínua tentação
satânica, convite quase irresistível à violação.”
(MANN, 1996: 133)
Em meio à sua crise
existencial, Adrian faz um “pacto” com o diabo para se libertar da inibição e
tornar possível sua redenção artística. Para tal, ele se relaciona com uma
prostituta e contrai sífilis, o que seria uma expressão e confirmação do pacto.
Porém, há uma cláusula no contrato: em troca de inspiração criativa, Adrian
deve renunciar a amar: “O amor te fica proibido, porque esquenta. Tua vida deve
ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma.” (Ibidem: 337) Ao longo do romance, várias
pessoas amadas por Leverkühn morrem em circunstâncias trágicas - a última
delas, seu pequeno sobrinho Nepomuk, serviu de inspiração para sua composição
final, “Lamentação do Doutor Fausto”, comparada por Serenus a uma “Nona
Sinfonia” (Beethoven) às avessas, isto é, uma ode à melancolia.
A essência do pacto
fáustico é o anti-amor ao próximo (cf. CORDEIRO, 2011). Além disso, o acordo
satânico feito por Leverkühn revela o problemático fundamento de sua Bildung (formação). Se por um lado o
pacto pode ser visto como uma escapatória das dificuldades da crise da cultura
européia, também é possível encará-lo como a ânsia por eclosão, a qualquer
custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade.
A propósito, a
“conversa” entre Leverkühn e o diabo, relatada pelo próprio Adrian em um
manuscrito encontrado anos depois por Serenus, consiste em um dos momentos mais
sublimes de Doutor Fausto. O ser
demoníaco, assim como aquele que dialogou com Ivan nos Irmãos Karamázov de Dostoiévski, parece sempre ecoar e expressar
pensamentos do próprio Leverkühn; ou seja, o romance nos leva a compreender o
documento de Adrian como auto-revelação, ao invés de uma prova de um pacto
"real" fornecido por uma fonte onisciente e objetiva. (cf. GOLDMAN,
1992: 242)
O diabo concorda com Adrian no
sentido de considerar a arte moderna como paródia, e a paródia como um niilismo
aristocrático. Além disso, infla o ego de seu “parceiro comercial” ao mencionar
as vantagens da genialidade artística que lhe fornecerá:
“Tu serás um líder, imprimirá o ritmo à marcha
que conduz ao futuro; teu nome será adorado pela rapaziada, que graças à tua
loucura, já não precisará enlouquecer. (...) Não somente vencerás as
estorvadoras dificuldades dos tempos; não, os próprios tempos, a fase da
Cultura e seu culto serão superados por ti; terás a audácia de uma barbárie
duplamente bárbara, por ocorrer após o humanismo, após o refinamento burguês e
qualquer tratamento de canal que se possa imaginar.” (MANN,
1996: 329)
O esteticismo (isto é,
afirmação da superioridade dos valores estéticos e do caráter auto-suficiente
da Arte) presente em Leverkühn é, segundo Cordeiro, apenas outro nome para o
niilismo resultante do abandono a metafísica cristã. A arte e o belo não podem
ser sucedâneos para as verdades da alma e caem no vazio existencial
inexoravelmente. Um trecho do diálogo com o diabo revela a perigosa relação
entre esteticismo e a apologia do crime e da morbidez:
“O
artista é irmão do criminoso e do demente. Pensas, por acaso, que já se haja
realizado alguma obra interessante, sem que seu autor tivesse aprendido a
entender a existência de celerados e loucos? Que significa ‘mórbido’ e ‘sadio’?
A vida nunca logrou dispensar o mórbido. E ‘genuíno’ ou ‘falso’? Somos então
trapaceiros? (...) Onde nada existe, o próprio Diabo não terá campo, e nenhuma
Vênus pálida produzirá coisa alguma que preste. (...) O que nós propiciamos já
não é o clássico, meu caro, e sim o arcaico, o primordial, o que, desde tempos
imemoriais, ninguém experimentou.” (Ibidem: 320)
O próprio círculo social de
Leverkühn reforçou-lhe tais tendências. Além dos já citados professores de Teologia,
ele conviveu com artistas e intelectuais que também estavam neste Zeitgeist niilista. Um exemplo é o
acadêmico Helmut Institoris, marido de Inês, uma amiga de Adrian e Serenus.
Especialista na Renascença, Helmut faz constantes apologias ao ideal da “arte
pela arte”, não se importando com as conseqüências morais (e políticas) dessa
postura. Durante um sarau no qual foi lido um poema que exaltava a guerra e a
conquista imperial (“Ó soldados! Entrego-vos, para o saqueardes, o mundo!”), eis como a platéia reagiu:
“Tudo isso era ‘belo’ e tinha forte
consciência de sê-lo. Era ‘belo’, de um modo cruel, inteiramente estético,
naquele desbragado espírito exclusivo, irresponsável, frívolo, que poetas ousam
manifestar. Em suma, o mais esdrúxulo, o mais absurdo esteticismo que jamais me
foi dado presenciar. É escusado dizer que Helmut Institoris o apreciava
grandemente. Mas também entre os demais convidados, o autor e a obra gozavam de
alta estima.” (Ibidem:
492)
Mesmo em seu último discurso, à
beira do colapso, ocasionado concretamente pela sífilis, mas simbolicamente
pelo fim do pacto, Adrian continua acreditando piamente que vender a alma ao
Diabo era inevitável para que ele se tornasse um gênio da Música:
“... esta é a época em que já não é
possível realizar uma obra de modo piedoso, correto, com recursos decentes. A
Arte deixou de ser exeqüível sem a ajuda do Diabo e sem fogos infernas sob a
panela... Sim, sim, meus caros companheiros, certamente cabe aos nossos tempos
a culpa de que a Arte estagna, que se tornou difícil e zomba de si mesma, que
tudo se tornou por demais difícil e a pobre criatura de Deus já não percebe nenhuma saída, na sua
miséria.” (Ibidem:
672)
Porém, Serenus Zeitblom se opõe
frontalmente ao cinismo esteticista do amigo, mostrando os riscos de uma postura
anti-humanista: “Ver na estética um compartimento estreito, separado,
da Humanidade é um grande erro. (...) O afã de abrir caminho, livrando-nos das
amarras e do cárcere do feio (...) é mesmo o que define a germanidade, um
estado de alma ameaçado de quimeras, do veneno da solidão, de um provincialismo
boçal, de maranhas neuróticas, de silencioso satanismo...” (Ibidem: 418) É possível afirmar que esta
é uma passagem autoral, pois a crítica de Thomas Mann ao niilismo reside nessa
ressalva à tentadora fusão entre o culto ao belo e a vontade de poder; aliás,
as grandiloqüentes óperas de Wagner e a filosofia vitalista de Friedrich
Nietzsche são duas manifestações dessa tendência.
De forma alegórica,
Mann liga o destino de Leverkühn com, por um lado, a evolução gradual da
Alemanha em direção ao nazismo e, por outro, a vida e destino de Nietzsche (o
qual, cabe lembrar, também era sifilítico). Com isso esperava mostrar que a
tentativa de escapar da impotência através da adesão a ideais anti-sociais
(como o esteticismo e o nazismo) fracassaria, pois está divorciada do ideal de
Humanidade. Nietzsche e a Alemanha nazista seriam dois exemplos do malogro
dessa tentativa. (cf. GOLDMAN, 1992: 226)
Sendo assim, Doutor Fausto é um romance anti-nietzscheano,
no qual Nietzsche é forçado a ver e confessar seus erros. (Ibidem: 252) O que Mann está defendendo é o ideal de Humanidade
que, outrora parte integrante e pilar da tradição da Bildung, foi suplantado por elementos reacionários e vitalistas. Thomas
Mann tenta reviver este ideal como uma alternativa para a crise e divisão da
Alemanha e à sua perda de ideais estáveis; ou seja, vê o humanismo como uma
síntese espiritual e uma tentativa de transcendência da sociedade burguesa e de
seus oponentes da direita e esquerda. É por isso que a vontade de poder e o
avanço em direção ao "super-homem" (Übermensch), empreendidos tanto pela Alemanha quanto por Leverkühn,
são uma solução nietzscheana que Mann rejeita. (cf. Ibidem: 232)
O
ortodoxo Dostoiévski e o humanista Mann
Uma comparação entre
dois autores que viveram em épocas e países diferentes certamente encontrará
mais diferenças do que semelhanças. Porém, comecemos por um ponto de
convergência: tanto Dostoiévski quanto Mann eram cristãos, e suas críticas ao
niilismo demonstram claramente este fundo religioso. “O cristianismo de
Dostoiévski é radical: é a religião ‘existencial’ de um angustiado que vê
aberto, aos seus pés, o abismo da anarquia e da danação eterna.” (CARPEAUX,
2011: 2046) Já o escritor alemão era protestante, mas criou um
personagem-narrador (Zeitblom) católico e não poupou o luteranismo de certas
críticas: “Thomas Mann reconhece que a raiz primeira da orgia de sangue que
foram as guerras da primeira metade do século XX está na Reforma, que criou o
homem fáustico, esta figura tipicamente moderna (...), o pequeno Satã, o
rebelde contra Deus. É aquele que foi proibido de amar ao próximo.” (cf. CORDEIRO,
2011)
Porém, enquanto
Dostoiévski rejeita em bloco o pensamento ocidental, Mann defende parte do
cânone. O autor de Os Demônios
“afirma a decadência do Ocidente, a apostasia da Igreja romana, e prega o
domínio universal dos eslavos ortodoxos. Faz-se mister destruir a Europa, ‘o
cemitério das artes e o foco das revoluções’. Dostoiévski também é
revolucionário. Mas o é contra nós.” (Idem,
1999: 169) Além disso, o escritor russo “é o profeta de todas as deificações do
indivíduo que se sucedem desde o final do século XIX”; ele condena as ambições
prometéicas dos ocidentais e profetiza seu fracasso. “Para ele, a
sobre-humanidade nietzscheana não teria sido mais que um sonho subterrâneo.”
(GIRARD, 2009: 310)
Por sua vez, Thomas
Mann, ao mesmo tempo em que procurou preservar valores caros à cultura
ocidental (quando perpassada pela filosofia moral em prol do amor e da
dignidade), não se furtou de criticar revolucionários e reacionários; como já
foi dito anteriormente, foi um dos primeiros a alertar para os riscos do
nacionalismo exacerbado que assolava a Alemanha. Doutor Fausto representa a ruptura definitiva de seu autor com o
esteticismo, ligando-o definitivamente ao humanismo democrático. Para Mann, a
verdadeira Bildung é aquela que forma
plenamente o indivíduo, sem fazê-lo cair no vazio existencial ou no cinismo
esteticista.
A relação que ambos
traçam entre literatura e política também é diferente. Dostoiévski convive com
a disputa entre ocidentalistas e eslavófilos, na qual ele se situa mais próximo
dos últimos (com ressalvas). Sobre este contexto histórico, eis o que Carpeaux
tem a dizer:
“A literatura russa do século XIX é
profundamente política. O país não tem imprensa nem tribuna, nem mesmo cátedras
livres, e a literatura é a única voz do povo, em plena evolução política e
social. (...) A literatura torna-se uma tribuna. Existem aí, como no parlamento
inglês, dois partidos opostos. Um, o dos ‘Ocidentais’, que glorificam a Europa
e desejam a europeização integral da Rússia; para isto é preciso primeiramente
destruir as instituições estabelecidas, o que lhes vale a acusação de niilismo.
Os outros, os ‘eslavófilos’, glorificam o passado nacional, mesmo o asiático; é
necessário esmagar as influências estrangeiras, o que lhes vale a acusação de
obscurantistas.” (CARPEAUX, 1999: 168)
Fiódor Dostoiévski é
apaixonadamente um escritor político, e a forte carga filosófica de suas obras
dá um tom mais elevado para os debates ideológicos. Embora seja possível
defini-lo como conservador, Dostoiévski tem um conservadorismo peculiar: embora
seja czarista, não fecha os olhos diante da terrível realidade dos camponeses
russos, e tenta encontrar soluções que não passem por uma adesão cega às idéias
e práticas ocidentais. “O seu sonho de humanidade espiritualizada é o de uma
humanidade emancipada das forças econômicas que, uma vez desencadeadas,
tornariam inevitável a queda no abismo materialista.” (Ibidem: 170)
Thomas Mann vê com mais
cautela a relação entre arte e política. Embora na época de Doutor Fausto já não seja mais um
“apolítico”, como chegou a se definir num polêmico ensaio de 1918, procura
incorporar questões político-ideológicas a seus romances sem ser panfletário.
Já o havia feito com maestria em A
Montanha Mágica (1924), com o debate entre Settembrini e Naphta, e o
realizou novamente no romance fáustico. Nas palavras do próprio Mann, embora o
moralizar político de um artista tenha um quê de cômico e fútil, o problema da
humanidade é indivisível: o estético, o moral e o político-social são uma
unidade, e a arte não pode estender a fria mão diabólica do niilismo à vida.
Em termos gerais,
Dostoiévski pode ser rotulado como um “ortodoxo” (isto é, um partidário da
ortodoxia cristã russa) e Mann como um “humanista” (pois defende o legado
cultural do Ocidente quando este valoriza a dignidade humana). A propósito,
segundo Claudia Drucker, o autor de Os
Demônios não tem uma opinião tão favorável sobre esta cosmovisão. Para
Dostoiévski, o niilismo é a forma mais radical do humanismo, na medida em que
este é matéria-prima do ímpeto calculador e da aposta na capacidade humana de
erguer-se a partir de si mesmo, de ser o fundamento de si mesmo. Sendo assim, a
segunda metade do século XIX, na Europa e em seus satélites, é uma época
niilista porque sacrifica tudo em nome da organização, seja de esquerda ou de
direita. (cf. DRUCKER, 2010: 185-188)
Porém, não creio que
seja possível considerar Dostoiévski como um anti-humanista, na medida em que a
dignidade humana também é um valor importante para ele. A diferença reside no
fato de, ao contrário de Mann, ele ser um pessimista antropológico, isto é,
acreditar que, embora o homem seja livre, o sofrimento é inevitável, pois a
liberdade humana está misturada com o mal, com o pecado. (cf. PONDÉ, 2003: 177)
Além disso, cabe ressaltar que Dostoiévski não poupa o cristianismo ortodoxo de
críticas; vide Os Irmãos Karamázov.
No que tange
especificamente à questão central deste artigo, podemos atribuir a Dostoiévski
a descoberta de uma essência do niilismo, que consistiria na tentativa
contraditória de fundar o sentido sobre a falta e o sentido:
A destruição pregada pelos niilistas é
concebida como um estágio provisório, como uma preparação para um ordenamento
social mais racional. O niilista declara ansiar por um fundamento novo e mais
sólido, mas não se abala diante da possibilidade de que seu projeto resulta
apenas em destruição. A destruição é autorizada, em princípio, pelo novo começo
que ele entrevê, mas não se sabe quando ele vai considerar terminado o trabalho
de negação. A conclusão implícita de Dostoiévski: o niilismo não leva a nada
além de sua repetição.” (DRUCKER, 2010: 176)
Thomas Mann
compartilharia dessa crítica ao niilismo, pois afirma que a verdade não pode
ser “um conceito relativo e subjetivo que cada um pode manipular a seu
bel-prazer. A verdade deve ser novamente a medida absoluta com que se mede a
nossa dignidade humana.” (RIEMEN, 2011: 72) A trajetória de Adrian mostra, em
sua perspicácia niilista e total alienação do mundo, que seu espírito não pôde
superar todas as inibições sem a ajuda de uma vontade formadora e sem um ato de
absoluta prostituição. A arte como produto de tal prostituição não é tanto uma
questão de autodisciplina, mas resultado do orgulho de Leverkühn, que sacrifica
seu intelecto para solucionar a angústia espiritual, o que lhe acarreta uma
“consciência infeliz” e uma resignação ao destino. (cf. KAUFMANN, 1973: 214)
Conclusão
Cabe pronunciar algumas
considerações finais sobre a comparação entre Doutor Fausto e Os Demônios.
Comecemos por Dostoiévski, em cuja obra o cenário do niilismo se abre de par em
par, com toda a amplidão e profundidade. “O fenômeno da dissolução dos valores,
vivido como uma crise que corrói a alma russa, descortina-se visivelmente em
todas as suas nefastas conseqüências, até no crime e na perversão.” (VOLPI,
1999: 41)
Kiríllov pretendia se
suicidar para se tornar um homem-Deus, mas sua morte refletiu apenas o
desespero de um homem que não via sentido na própria vida. Stavróguin também
encerrou com suicídio uma existência marcada por situações chocantes e
sombrias, portando-se como uma “medusa solitária”. Vierkhoviénski alcançou seus
objetivos puramente destrutivos, levando uma cidade ao caos total em poucos
dias; porém, seu desfecho consiste mais em denúncia política do que em uma
condescendência à la “o crime
compensa”.
“Dostoiévski
premeditara um final tamanhamente aterrador. Desejava desenvolver uma crítica
tão ferrenha que nenhuma ambigüidade doravante pudesse persistir quanto aos
malefícios do processo de inumanidade então apenas em princípio. Desejava
convencer a Rússia inteira, desejava convencer o mundo, desejava convencer,
sobretudo, a si mesmo... E, no entanto, não obstante sua intenção tão
estreitamente definida, delimitada, o conjunto da desventurosa aventura finda por explicitar a multiplicidade de
perspectivas diante da questão: se Stavróguin e Kiríllov abraçam fatidicamente
o suicídio (e por razões diversas), a mesma descrença leva (...) Vierkhoviénski
a traçar seus planos mórbidos de arrasadora destruição.” (AQUINO, 2011)
Por sua vez, Doutor Fausto consistiu na amarga
história da vida do músico Adrian Leverkühn, na qual seu amigo Serenus narrou “os
altos e baixos da Alemanha, a crise de uma época, a crise na arte.” O pacto
simbolizou o seu “orgulho intelectual e cegueira moral; a proximidade do
esteticismo e da barbárie como conseqüência da cultuação da arte; do pensamento
ilusório de que o homem pode libertar-se a si mesmo.” (RIEMEN, 2011: 77)
Doutor
Fausto também representa o fim e o enterro de uma era.
Zeitblom, já velho, revê a própria vida, a de seu amigo e a de sua época - e o
que ele vê é... a morte. A morte como saída majestosa de uma grande tradição,
mas também na aridez que ela emite; na pseudo-vida da paródia, no “niilismo
aristocrático” em que as velhas formas são perpetuadas, reverentemente ou não.
O fim de tudo é experimentado por Serenus Zeitblom em 1945, embora o desfecho
bélico já tenha sido prefigurado pelo “Apocalipse” de seu melhor amigo. E
Thomas Mann? Ele não se permite a indulgência de voluptuosos sonhos de morte.
Esta posição pessoal aparece na consciência de última hora de Leverkühn, quando
este, em seu último concerto, confessa seus pecados à platéia. (cf. KAUFMANN,
1973: 220-221)
A principal semelhança
encontrada entre Mann e Dostoiévski foi a perspectiva cristã que adotam em suas
críticas ao niilismo. A diferença central é a postura diante do Ocidente. O
autor russo possui muitas ressalvas em relação ao pensamento ocidental, vendo
na Modernidade um rastro de deificações do indivíduo e ambições ingênuas (e
perigosas); a mentalidade niilista seria uma conseqüência lógica do humanismo.
Já Mann procura fazer um acerto de contas com a tradição filosófica ocidental,
tecendo críticas às ambições fáusticas de pensadores como Lutero e Nietzsche,
mas ao mesmo tempo se considerando herdeiro da preocupação humanista - cujas
raízes estão nas filosofias grega e cristã - com a dignidade e o amor ao
próximo, em oposição ao encanto mortal do esteticismo.
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