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Kaio

 

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28 junho 2011

A Direita Beat: Política e Religião no Libertarianismo

Quando se pensa na relação entre política e religiosidade no mundo contemporâneo, muitas vezes se recorre a dois tipos de reducionismo: ou se fala em “fundamentalismo religioso”, seja na direita cristã ou no “fanatismo” islâmico, ou é ressaltada a busca “mística” de certos intelectuais, artistas, escritores etc. por iluminação espiritual ou vida comunitária. Porém, estas duas esferas se entrelaçam de maneiras muito mais diversas e complexas do que nossa vã filosofia possa imaginar.

No que diz respeito à Geração Beat e a Contracultura, embora sejam dois temas sobre os quais há uma farta literatura, raramente é abordada a ligação do Libertarianismo[1] com questões religiosas. Entre os motivos que podem ser elencados para essa carência, alguns são resultantes das preferências ideológicas e teóricas dos estudiosos do tema e outros são endógenos ao movimento libertário.

Dentre os do primeiro tipo, pode ser citada a ligação da maioria dos acadêmicos com a esquerda e/ou com perspectivas marxistas ou multiculturalistas, o que faz com que haja tanto uma ênfase nas reivindicações e estratégias dos movimentos sociais inseridos no contexto beat e contracultural (vide, p.ex., Theodore Roszak) quanto o desinteresse em verificar como a direita e os defensores do livre mercado se inseriram na efervescência cultural, política e espiritual das décadas de 50 e 60.

Quanto ao caráter endógeno, há o peso do legado ateísta de Ayn Rand, que tanto em seus escritos filosóficos quanto em seus romances (mais notavelmente em “A Revolta de Atlas”) insiste em separar o Libertarianismo da religião, na medida em que considera esta como uma opressão da individualidade e um obscurantismo coletivista (nas palavras de Rand, “altruísmo servil”). Outros pensadores libertários de destaque, como Murray Rothbard, também compartilham dessa “laicização”, dissociando seus ideais políticos e econômicos de quaisquer questões religiosas.

Sendo assim, procurarei, neste ensaio, demonstrar como o Libertarianismo se relacionou com questões espirituais ao longo do período que atravessa a Geração Beat (Kerouac, Ginsberg e cia.) e a Contracultura (Roszak, Snyder e outros) nos Estados Unidos da América. Tomarei como base o livro “Radicals for Capitalism” (2007), do jornalista Brian Doherty, que conta a trajetória do Libertarianismo nos EUA ao longo do século XX. O 5º capítulo desta obra, “Objetivism, Anarcho-Capitalism, and the Effects of Psychedelics on Faith and Freedom”, forneceu motivação e material de pesquisa para o argumento que pretendo desenvolver nas próximas linhas.

O ponto de partida desta discussão é um movimento chamado Spiritual Mobilization, abreviação de Mobilization for Spiritual Ideals. Ela foi fundada em 1935, em reação à resolução do Conselho Geral da Congregação e Igrejas Cristãs dos Estados Unidos pela defesa da abolição do “destrutivo” sistema de livre iniciativa na América. Tal decisão foi o início da filosofia da “ação social” que dominou as igrejas protestantes nas décadas seguintes. Opondo-se a tal tendência, os cristãos que enalteciam o livre-mercado resolveram agir no sentido de ressaltar a ligação entre os valores do Cristianismo com a argumentação em prol da iniciativa privada.

O programa de rádio “The Freedom Story” e o periódico “Faith and Freedom” são duas iniciativas que a Spiritual Mobilization desenvolveu para disseminar os ideais liberais e libertários. Além disso, os membros deste movimento, no intuito de aproximarem suas críticas ao socialismo e ao intervencionismo com a doutrina cristã, criaram uma espécie de agenda a partir da qual estabeleceram três critérios para avaliar qualquer ação governamental, programa eleitoral ou candidato político:

1. Ele (o ato, candidato ou programa) encoraja o princípio cristão do amor ou o princípio coletivista da compulsão (coerção)?

2. Se ele propõe a expropriação da propriedade ou renda para o benefício ou uso de outros, há violação do mandamento “Não roubarás”?

3. É necessário o uso da compulsão por meios políticos nesse caso, ou os fins poderiam ser alcançados pela cooperação cristã e ações voluntárias e não-políticas?

Um aspecto interessante é que, ao contrário da direita cristã (representada atualmente pelos neoconservadores), os libertários cristãos não focavam suas críticas a inimigos externos ou conspirações “moscovito-comunistas”, mas nas próprias idéias equivocadas que permeiam o socialismo. Seu alvo era a própria noção de natureza humana que alimentava o coletivismo.

Porém, os editores e autores de “Faith and Freedom” eram bem mais radicais em seu Libertarianismo que seu público. Exemplo disso é que os artigos de autores como Murray Rothbard, que criticavam severamente a política externa belicista do presidente Eisenhower, repercutiram negativamente entre vários leitores do periódico, que achavam tal tom – vejam a ironia – digno de um esquerdista antipatriótico.

A Spiritual Mobilization teve entre os seus membros Leonard Read, criador da Foundation for Economic Education (FEE), organização cujo objetivo era divulgar as idéias de livre-mercado na classe empresarial, frente à expansão do keynesianismo e às políticas do New Deal implantadas por Franklin Roosevelt (presidente americano entre 1933 e 45). Read não era ateu ou materialista; buscava a verdade espiritual e não estava tão confiante de encontrá-la na tradição ocidental. Em sua busca por iluminação espiritual, ele nutria a crença, digna de um velho sensei, de que não há mudança no mundo, mas apenas em nós mesmos. Portanto, não caberia a nós aperfeiçoar e reformar a humanidade, mas apenas o homem: “A humanidade de cada um de nós precisa ser descoberta”.

Ser uma minoria combativa levou muitos libertários a terem descontentamentos espirituais e desenvolverem interesse por uma iluminação mística, fugindo do protestantismo convencional. Não foram os poucos que, seguindo o legado de Thoreau em seu “Walden”, cultivavam o ideal bucólico de se afastar das cidades e da civilização para uma localidade natural e solitária, um lugar para contemplação e autoconhecimento ao invés de lutarem contra os problemas do mundo.

O advogado James Ingebretsen, em meados dos anos 1950, teve uma experiência epifânica, que o levou ao êxtase, ao renascimento espiritual; chegou a ter visões da filha morta e adotou a alcunha de “Kristifer”. Assim como Read, Ingebresten acreditava que aquilo que homens como ele haviam erroneamente pregado como uma crise política poderia ser na verdade uma crise espiritual. A partir dessa constatação, passou a ter o profundo desejo de entender a natureza da realidade, e não apenas questões ligadas aos negócios e à política. Nesse sentido, libertários como ele não estão tão distantes da preocupação dos zen-budistas (como Jack Kerouac) de uma busca autêntica e ética pela subjetividade, fomentando a autoconsciência sob forte inspiração de filosofias orientais.

O guru pessoal de ambos (e muitos outros) era o místico Gerald Heard, que, em seus textos e palestras sobre temas metafísicos, falava em evolução do espírito e encorajava a prática da meditação. Com isso, começo a chegar ao ponto que motivou este ensaio: uma década antes que “stoned college kids” e a geração hippie se interessassem pela busca espiritual e pela auto-realização, alguns empresários e intelectuais americanos ligados à direita já o faziam na supostamente tão conformista década de 1950. Eis a primeira onda de aventureirismo psicodélico.

A adesão de alguns dos “radicais pelo capitalismo” aos psicodélicos foi questão de tempo. Heard, assim como o escritor Aldous Huxley, pregava o uso da mescalina e do LSD. William Mullendore, por sua vez, considerava o LSD como uma ferramenta fascinante, e recorria a metáforas como “voltagem”, “freqüência” e “plug in” para explicar os efeitos da droga. Assim como nos textos de Theodore Roszak, verifica-se aqui uma preocupação com o “uso responsável”, com a densidade por trás do uso das drogas e a dimensão da subjetividade acarretada por elas.

Mullendore escrevia cartas para os amigos falando em um apocalipse econômico que acometia os EUA e o mundo. Isso não nos faz lembrar o tom profético de Allen Ginsberg ao falar da crise social e espiritual que marcava a América? Afinal, assim como em Ginsberg em seu poema “América”, há em Mullendore um viés irônico e apocalíptico diante dos problemas sócio-econômicos e culturais que marcavam a sociedade americana à época.

Porém, nem todos ficaram contentes com essa inusitada aliança. Alguns libertários, como Rothbard, ficaram incomodados com a guinada espiritual capitaneada por Heard; aquele discordava da idéia de que a política não é “o” caminho, ou de que o cultivo de um espiritualidade interior era mais importante que tentar mudar o mundo. Segundo Rothbard, este misticismo era fatal para a vontade e racionalidade dos libertários; o espiritualismo e os psicodélicos enfraqueciam a causa.

Quanto à ligação do Libertarianismo com a Contracultura, sua postura foi diferente. Na década de 60, liderados por Rothbard, vários libertários se aliaram a movimentos e manifestações contraculturais, defendendo causas como o fim da Guerra do Vietnã. O que pregavam era uma espécie de “revolução anarquista”, como demonstram os slogans que adotavam: “Death to the state” e “Power to the people”, p.ex.. Fomentou-se uma aliança entre esquerda e direita contra o militarismo e a crescente intervenção do Estado nas liberdades civis. A espiritualidade, assim como em Roszak, é vista como forma de responder à tecnocracia – muito embora aquilo que os libertários entendam por “tecnocrático” é uma crítica à burocracia e ao intervencionismo estatal na economia e nos direitos individuais, na medida em que não rejeitam o capitalismo e o progresso tecnológico.

Em outras palavras, ao invés de uma reação conservadora contra a suposta “degeneração moral” dos movimentos artísticos e jovens que marcaram as décadas de 50 e 60, os libertários aderiram à causa, na medida em que viam neles uma exaltação da liberdade individual e da auto-expressão. Ao mesmo tempo, aproveitavam-se da crítica ao Estado que marcava esses movimentos para tentar quebrar o estigma que tinham contra o capitalismo e o livre-mercado. Porém, assim como ocorreu com a “New Left”, sua tentativa de “educar” a juventude para uma causa política específica não foi tão bem-sucedida. A despeito do posterior rompimento de Rothbard e outros com a Contracultura, este crescente ativismo político culminou na fundação do Libertarian Party, em 1971.

O que posso observar quanto a tudo que foi dito é que, de fato, verifiquei uma relação entre o movimento libertário tanto com questões religiosas quanto com bandeiras da Contracultura (o que inclui o psicodelismo), inclusive onde menos se esperaria: empresários preocupados com indagações espirituais e acadêmicos participando de manifestações pacifistas. O Libertarianismo, que cada vez mais ganha espaço no espectro político-ideológico dos EUA, já em seus primórdios tinha um forte diálogo com a defesa de causas “subversivas”, como a legalização das drogas e a liberdade sexual, assim como não se separava tanto das discussões religiosas e espirituais com Ayn Rand e seus seguidores pretendiam. Afinal, os ideais que norteiam a Geração Beat e a Contracultura, como já foi dito acima, ressaltam a individualidade e a auto-expressão, duas bandeiras bastante valorizadas pelos libertários. Ao contrário dos conservadores, parece-me que eles são uma direita que não recai em discursos moralizantes contra a “juventude transviada”.



[1] Corrente política que prioriza a liberdade individual e que atribui um papel mínimo ao Estado.

Derivado da tradição do liberalismo clássico, embora também tenha elementos do anarquismo

individualista em sua filosofia.

 

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