A Ilusão Imperial sob o olhar libertário de Thoreau
No segundo episódio de South Park, “Weight Gain 4000”, Eric Cartman vence um concurso de redação sobre Meio Ambiente. Tal resultado foi uma considerável surpresa, se considerarmos que Cartman, mau aluno e politicamente um “reacionário”, era a última criança que se poderia imaginar que escreveria um bom texto sobre tal tema. No entanto, dias depois foi desmascarado: descobre-se que ele simplesmente plagiou “Walden”, a obra-prima de Henry David Thoreau. Tal anedota é sintomática quando o que pretendemos é falar da “traição” que os Estados Unidos cometeram a seus mitos fundadores e princípios orientadores. Um hábito recorrente dos políticos americanos nas últimas décadas é se apropriar de ideais libertários para justificar causas controversas e bélicas. Assim, a mentira e o cinismo de Cartman podem servir de analogia para as mentiras e cinismos da própria política imperial dos EUA. O anseio por independência é reconhecido como um traço recorrente da cultura americana, atravessando gerações de mediadores culturais, sejam eles de cunho sociopolítico ou estético. Basta citar a relevância perene de autores do século XIX da Literatura Americana - Whitman, Twain, Emerson, o próprio Thoreau etc. Porém, em algum momento da história social e política da América, houve uma guinada imperialista. Ou será que ambos os ideais sempre coexistiram, mas o segundo deles acabou adquirindo maior predominância no século passado? Vejamos o que Thoreau pode contribuir para esta discussão. Ao se ler a sua obra (e analisar a sua vida), salta aos nossos olhos o individualismo e até a misantropia que o caracterizam - obviamente, no melhor sentido que tais posturas possam vir a ter: “Eu fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que tinha a me ensinar, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido.” Este trecho, provavelmente o mais famoso de “Walden”, indica uma fuga para a natureza em busca de autonomia, de libertação das amarras sociais e econômicas da vida urbana. É legítimo alegar que gesto de Thoreau visava a descredibilizar a sociedade industrial do século XIX, em uma crítica mais do que teórica ao progresso e desenvolvimento material desenfreados. Vítima da tuberculose, ele morreu nos primórdios da Guerra Civil Americana (1861-1865), evento que foi um divisor de águas; se por um lado este sangrento conflito aboliu a escravidão, por outro foi uma intervenção autoritária da União, aprofundando de forma irreversível a centralização política. Porém, ainda em vida Thoreau conviveu com a Guerra do México e o desabrochar dos interesses imperiais de seu país. Profundamente patriota, ele muito se incomodou com este expansionismo desenfreado, que afetava as próprias liberdades civis dos americanos. Aliás, o que o levou à prisão foi justamente a recusa a pagar impostos que financiavam esta guerra e a manutenção da escravidão. Ele não teve ilusões: contribuir com sua cota ao Tesouro seria consentir com as injustiças perpetradas pelo Estado. Thoreau expressa uma mistura de liberalismo com anarquismo (o que, na terminologia corrente, pode ser chamado de Libertarianismo) quando o assunto é o papel do Estado. Para ele, o melhor governo é o que governa menos, mas julga que, quando os homens estiverem preparados, pode-se ir além, e defender que o melhor governo é o que absolutamente não governa. Em seu famoso tratado “A Desobediência Civil”, ele retoma uma tradição anti-autoritária (que pode ser remontada ao francês La Boétie e seu “Discurso sobre a Servidão Voluntária”) quando afirma que, para a autoridade do governo ser tida como justa, ela deve ter a aprovação e o consentimento dos governados. Ou seja, o governo não pode gozar de direitos sobre uma pessoa e seus bens além do que ela lhe concede. Portanto, um Estado realmente livre e esclarecido precisa reconhecer o indivíduo como poder superior e independente, do qual deriva o seu próprio poder e autoridade. Por outro lado, não podemos dizer que há uma recusa atomista e anti-social da parte de Thoreau, mas sim uma ênfase na relação pacífica e voluntária que deve existir entre os indivíduos. A seguinte passagem de “Walden” deixa este princípio bem claro: “Não cabe ao homem colocar-se em oposição à sociedade, mas manter-se em atitude compatível com as leis de seu ser, que não estarão em oposição às leis governamentais, se ele tiver a sorte de se defrontar com um governo justo.” Há claro contraste entre esta filosofia política de Thoreau com a trajetória que seu país seguiu. A idéia do imperial baseia-se justamente na noção de que há primordialmente súditos, e não cidadãos. A ilusão do Império, cultivada por mentiras políticas, surgiu como perversão do expansionismo (a chamada Marcha para o Oeste) e se apoderou gradualmente da política americana. Segundo Michael Hardt e Antonio Negri, em “Império”, quatro são as fases da transformação dos EUA em uma nação imperial: 1) a já mencionada Guerra Civil; 2) o fim do séc. XIX, em que políticas de intervenção em países da América Central e nas Filipinas revelam que, na tensão Imperialismo x República Universal, o primeiro começa a se sobrepor; 3) a Guerra Fria, que, no rastro da militarização da sociedade americana resultante da II Guerra Mundial, é o momento em que os EUA se autoproclamam Polícia do Mundo, recorrendo a diversos métodos (desde apoio a elites locais até intervenção direta) para manter sua zona de influência perante a ameaça soviética; 4) após a queda da URSS, a Guerra do Golfo é a 1ª manifestação da Nova Ordem Mundial, em que a política externa americana atua como se fosse uma “força de paz” do Império global. Porém, até que ponto este Império foi, na verdade, baseado em uma Ilusão? Em outras palavras, será que esta guinada imperialista pode ser encarada como um jogo baseado em manobras astuciosas, e acima de tudo em uma promessa que se revela decepcionante e dolorosa? Afinal, estamos falando de um país em que muitos dos intelectuais públicos – o que inclui Thoreau – são profundamente isolacionistas em matéria de política externa. Mesmo no século XX, uma facção chamada “Old Right”, composta tanto por conservadores como o senador Robert Taft quanto por libertários como o acadêmico Murray Rothbard, opunha-se fortemente à entrada dos EUA na II Guerra Mundial, à intervenção na Guerra da Coréia e até mesmo ao ingresso do país na ONU. Para prosseguirmos, é indispensável mapear quais são as doutrinas em jogo. Três parecem ser as principais, sendo as duas primeiras baseadas no ideal da autonomia e a última, mais bélica, cultiva uma ânsia pelo Império: 1) Os isolacionistas, que defendem uma política externa não-intervencionista. No caso dos artistas e pensadores, há também uma preocupação com a jornada individual, com a auto-descoberta. Thoreau, por exemplo, vê a libertação como emancipação das necessidades artificiais, permitindo um maior contato com a natureza. Além disso, alega que é graças à resignação à própria autonomia que a maioria dos homens leva vidas de sereno desespero. 2) Os expansionistas, que também valorizam a autonomia, mas a encaram no sentido da expansão – inclusive física – deste ideal. Ou seja, pregam uma paradoxal “imposição” de inclusão cívica. A Marcha para o Oeste, que em poucas décadas transformou os EUA no 4º maior país do mundo em extensão territorial, é uma manifestação prática desse credo. 3) Os imperialistas, que são abertamente intervencionistas em política externa. Atribuem ao Estado uma função policial, o que envolve a criação de uma rede de poder internacional, para que este exerça amplamente sua influência e poder. O Império é construído por ocupação territorial e bases militares. Tal doutrina se torna política de Estado com o “Big Stick” de Theodore Roosevelt (fim do século XIX), aprofundando-se após a II Guerra Mundial, por meio do “equilíbrio de poder” da Guerra Fria. Verificamos que, ao mesmo tempo em que não houve uma “traição” (afinal, a cultura política americana possui vertentes imperialistas desde o século retrasado), por outro não se pode afirmar que houve uma “evolução” do isolacionismo para o imperialismo. Em outras palavras, podemos rastrear desde a Independência dos EUA a existência de tensões entre pelo menos duas destas três doutrinas[1], mesmo que reduzidas a dicotomias teóricas (Império x República Universal) ou práticas (entrar ou não na Liga das Nações). Para entendermos melhor a Ilusão do Império, e como ela é questionada já em seus primórdios, voltemos ao próprio Thoreau. Como já mencionamos, é difícil enxergar tendências imperialistas em um pensador que diz que jamais se deve renunciar à própria consciência em prol do legislador, e que a única obrigação que se tem direito de assumir é a de sempre fazer o que se julga correto, pois a lei não nos torna mais justos. Henry David Thoreau é favorável à democracia, mas não a poupa de certas críticas; ainda em “A Desobediência Civil”, ele nos diz que o governo em si é somente o modo que o povo escolheu para executar a sua vontade, sendo suscetível de deturpações que vão de encontro à aprovação popular. Se, como ele afirma, o governo está sujeito a corrupção e abusos, então fica claro que também é terreno fértil para doutrinas baseadas na aquisição desenfreada de poder. Um libertário como Thoreau dificilmente veria a máquina pública com bons olhos. As promessas de bem-estar são efêmeras; a preocupação com o “social” é ilusória e demagógica; os impostos não constituem virtude cívica, mas apenas um roubo institucionalizado, cultivado por esperanças vãs de que se está ajudando ao próximo, quando na verdade os tributos apenas alimentam a máquina de guerra – no caso do Thoreau, com o agravante de sustentarem o regime escravista. Ao longo do texto, utilizamos vários dos significados da polissêmica palavra Ilusão. Em especial, enfatizamos a mentira política, o engano deliberado da população em prol de causas bélicas. Porém, cabe citar mais uma destas acepções: o sonho, a quimera de ser uma grande Potência. Hardt e Negri observaram um impulso “romano” na construção dos EUA enquanto Império, que ainda por cima foi alimentado pela auto-percepção dos americanos como uma nação mais moderna, dinâmica e impetuosa do que as do Velho Mundo – entendimento que tragédias como a da I Guerra Mundial só reforçaram. O patriotismo se tornou nacionalismo na medida em que a mera fidelidade a um território e cultura se tornou uma ideologia que não respeita fronteiras, em nome da preservação da supremacia política e militar perante os “inimigos da sociedade aberta”. Não nos resta alternativa senão aceitar que os impulsos autonomistas (sejam eles isolacionistas ou expansionistas) e imperialistas sempre coexistiram na tradição sociopolítica dos EUA, sendo que o segundo grupo, por razões quase endógenas (afinal, sua própria doutrina enfatiza a obtenção de poder), tornou-se hegemônica; erigiu-se um “status quo” que, para se legitimar, muitas vezes recorre a uma retórica cinicamente libertária – vide slogans como “a guerra pela democracia”. O mito da liberdade e democracia esteve (e está) presente tanto entre conservadores quanto entre transgressores. Um Cartman pode reproduzir o discurso de Thoreau e escapar ileso – pelo menos durante algum tempo. Afinal, por enquanto, na tensão entre posições intervencionistas e aquelas baseadas no ideal da autoconstrução, revela-se uma predominância daqueles que procuram transformar os Estados Unidos da América em uma máquina de guerra, em uma auto-intitulada Polícia do Mundo. Resta saber se aqueles que resistem às ilusões imperialistas ainda têm força e motivação para lutar pela América guiada por ideais emancipatórios que estavam presentes na própria Independência do país. [1] Lembremo-nos, por exemplo, do embate entre Federalistas e Jeffersonianos para a Constituição americana. É visível que o grupo de Jefferson era mais baseado no ideal da autonomia, enquanto Hamilton, Madison e Jay enfatizavam a construção de um poder central como forma de fortalecer a nascente república.