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Kaio

 

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15 novembro 2010

We Are The Dead - Parte 2

(Atividade realizada pela Semana de Extensão, em 10 de Novembro.)


"A Guerra Civil Espanhola e outros acontecimentos do período 1936-7 fizeram a balança pender para um lado, e daí em diante eu sempre soube de que lado estava. Tudo de sério que escrevi desde 1936 foi escrito com a intenção direta ou indireta de atacar o totalitarismo e defender o socialismo democrático tal como eu o conheço."


Foi a partir desta experiência dramática que George Orwell (1903-1950) teve a inspiração para seus dois romances mais influentes. Na Guerra Civil Espanhola – a qual ele relatou na obra “Lutando na Espanha” -, ele sentiu na pele os excessos da esquerda oficial (stalinista), os quais, ao semear a discórdia entre os socialistas, foram decisivos para que, em 1939, fossem derrotados pelos apoiadores da ditadura franquista. No mesmo ano, o tratado estratégico entre Hitler e Stálin deixou claro o viés totalitário do socialismo soviético.
O 1º desses romances foi a fábula “A Revolução dos Bichos”, que ganhou notoriedade com sua interpretação amarga e crítica da Revolução Russa. O segundo, porém, é ainda mais impactante: “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, no original) é uma descrição minuciosa de um mundo em que o totalitarismo se tornou hegemônico em todo o planeta, e a tentativa de resistência de Winston Smith, um membro do Partido Externo que não pode mais tolerar tal atmosfera opressora.
A obra permite inúmeras discussões, inclusive algumas em analogia com reflexões de outros autores. Não estão em ordem cronológica, mas é possível perceber o encadeamento de algumas delas.


Comecemos pelo relativismo cognitivo com o qual Winston se depara. O protagonista do romance se depara com uma sociedade cuja ideologia oficial prega a inexistência da realidade objetiva. Vejamos o seguinte trecho da página 81: "Sua filosofia negava tacitamente não apenas a validez da experiência com a própria existência da realidade externa. (...) Se tanto o passado como o mundo externo só existem na mente, e se a mente em si é controlável... então?"

O próprio O’Brien reconhece que a dominação do Partido está amparada em uma filosofia epistemologicamente subjetivista (p. 254): "A palavra que está procurando encontrar é 'solipsismo'. Mas estás enganado. Não é solipsismo. Solipsismo coletivo, se quiseres."

Ou seja, a teoria de que nada existe fora da mente humana pode ser sustentáculo de um regime opressor.
Alegoria do "2 + 2 = 5"; aprender, compreender e aceitar são os três estágios da reintegração. Por meio delas, vão sendo abaladas todas as resistências físicas e psicológicas de Winston à doutrina oficial. Uma das formas encontradas por O’Brien para “persuadir” Winston foi lembrar a este que, certa vez, disse estar disposto a tudo (até matar inocentes e corromper mentes infantis) em nome de uma rebelião contra o status quo. Logo, perde-se para o protagonista o argumento de que ele seria mais “humano” que os seus inimigos.

Aspecto fundamental para entender a política em “1984” é a Teoria das 3 classes. Na página 177, Winston Smith começa a ler o livro de Goldstein: "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico". É apresentada a idéia de que sempre existiram, independentemente do nome ou época, três classes (Alta, Média e Baixa), sendo que as duas primeiras, ao longo da História, se alternam no poder, freqüentemente por meio de revoluções. A vencedora converte-se em "status quo" e a perdedora assume um tom insurrecional que antes combatia. A classe baixa, entretanto, não passa de “massa de manobra”; eis a razão pela qual sua principal reivindicação (igualdade social) nunca foi atendida.
Além disso, existem três superestados em guerra permanente: Oceania (EUA + Império Britânico + Sul da África), Eurásia (Rússia + Europa Continental) e Lestásia (China + Sudeste Asiático), sendo que cada um adota variações da doutrina socialista: Ingsoc, Neobolchevismo, Obliteração do Ego (ou Adoração da Morte), respectivamente. O objetivo dessas guerras seria destruir excedentes (que costumava ser um problema recorrente na economia mundial), e assim manter o “sistema” funcionando.

Outro ponto interessante a ser debatido é o relacionamento Winston e Julia, que muitas vezes soa como metáfora de um dilema que apareceu com força total em 1968: revolução política ou comportamental? Enquanto o personagem principal de “1984” advoga – ou pelo menos deseja – uma debilitação ampla do poder do Partido, a insurreição defendida por Julia é mais ligada a pequenas, mas significativas atitudes cotidianas. Por exemplo, os membros do Partido terem relações sexuais com prazer, as quais são proibidas pelo regime do Ingsoc.
Um dos mecanismos utilizados pela Polícia do Pensamento é o Duplipensar: “guardar simultaneamente na cabçea duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas” (p. 206). É um processo consciente e inconsciente; dizer mentiras deliberadas e acreditar nelas piamente, esquecendo qualquer fato inconveniente. É um sistema de fraude mental que reconcilia contradições. Permite, assim, a retenção do poder, pois “para se dominar, e continuar dominando, é preciso deslocar o sentido da realidade. Pois o segredo do mando é combinar a crença na própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros anteriores” (p. 207). Ex.: a crença de que a guerra permanente se equivale à paz permanente.


Outro ponto central na obra é a Novilíngua e a perversão da linguagem. Ela impossibilita outras formas de pensamento que não sejam a da cosmovisão Ingsoc. Syme, colega de Winston que está na equipe responsável pela 11ª edição do Dicionário da Novilíngua, profere uma reflexão contundente a respeito dos poderes dessa simplificação vocabular (p. 54): "Como será possível dizer 'liberdade é escravidão' se for abolido o conceito de liberdade?"

Orwell e a Filosofia da História; esta é realmente cíclica e/ou dotada de um sentido? Fica ambígua para o leitor a posição de Eric Blair (lembrando que George Orwell é um pseudônimo) a respeito da História. Será que ela é mesmo imprevisível, ou possui um “motor”, algo que a move ou a faz retornar ao(s) mesmo(s) ponto(s)?
Nesse sentido, o personagem orwelliano afirma que o socialismo era o último elo de uma cadeia de pensamento iniciada com a revolta dos escravos antigos, mas que foi infectada pelo Utopismo, que ao longo de suas variantes, diminui progressivamente seus propósitos de liberdade e igualdade.

O autor de “1984” cultiva uma espécie de utopia da liberdade + igualdade: o "libertarianismo igualitário", contra o elitismo de direita e esquerda. George Orwell de fato cultivava a esperança em um socialismo democrático, ao contrário do que o pessimismo de suas últimas obras indicaria.
Winston (e, talvez, também Orwell) sintetiza o que entende por ser livre na seguinte frase: “A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre” (p. 82).


Além disso, pode-se ressaltar seu papel como outsider.
“Historicamente, os dissidentes representam as novas forças sociais que anunciam o futuro. Por expressarem a crítica ao status quo, ficam à margem das instituições formais – ou não encontram respaldo no interior destas –, o que os impulsionam a criar novas instituições. (...)
O dilema do intelectual que milita na esquerda parece insuperável. Os que se exercitam em procedimentos autoritários não se conformam com a sua independência intelectual e tentam encaixá-lo em algum “ismo”. Um amigo pode lhe confidenciar, por exemplo, que o considera centrista; outro verá resquícios da formação cristã (como se isso fosse um grave pecado!); há, ainda, os que o ignoram ou são condescendentes, tratando-o como figura excêntrica.
Incompreendido por uns, malquisto por outros, ele sabe que o essencial é não silenciar e assumir as responsabilidades inerentes à militância solitária. Apesar de tudo, vale a pena correr os riscos de ser catalogado como quixotesco. (...) George Orwell é um exemplo.”
(Antônio Ozaí)

Podemos encontrar paralelos com outro romance distópico, “Laranja Mecânica” (Anthony Burgess), no que tange aos métodos de tortura. Enquanto o primeiro se refere a condicionamentos de ordem psicológica (ex.: Alex DeLarge passou a associar Beethoven com morte e destruição), o romance orwelliano trata de um procedimento assustadoramente completo, que envolve tanto punição física quanto lavagem cerebral. A última delas, operada na sala 101, é especialmente cruel: O’Brien ameaça jogar ratazanas em Winston (este tem fobia de ratos), para arrancar-lhe a confissão que derruba sua última resistência ao Grande Irmão – o amor por Júlia: “Faze isso com Júlia! Comigo não! (...) Não me importa o que fazes com ela.” (p. 273)


"Nós somos os mortos" é uma frase que sintetiza a melancólica esperança de Winston e Julia por um futuro melhor. Aquele ainda acredita no papel dos proles como força revolucionária. Porém, isso só ocorrerá quando estes se conscientizarem da possibilidade que têm de interromper aquele mundo totalitário.


As souvenirs são uma forma de reconstruir o passado. O peso de papel, que continha um fragmento de coral, foi uma forma que Winston encontrou para se conectar com uma época (início do séc. XX) na qual ele não havia vivido, e o pior, sobre a qual nada se sabia.


"Compreendo como; não compreendo por quê": eis a dúvida que inicia a investigação sobre a (cínica) verdade por trás do Partido. A partir do pressuposto de que o domínio do Partido é eterno, O’Brien afirma, no interrogatório, que ele e seus correligionários não estão interessados no bem-estar alheio, na riqueza ou no luxo, mas apenas no poder. A força de tal dominação resulta justamente de sua carência de hipocrisia.


Lança-se a idéia do “escravizar para libertar”; solapando a consciência individual (tanto racional quanto emocional). Para O’Brien, a solidão é indesejável: “O indivíduo só tem poder na medida em que cessa de ser indivíduo; (...) sozinho, o ser humano é sempre derrotado” (p. 252).
Embora também haja elementos da Alemanha nazista (o Grande Irmão tem semelhanças – inclusive físicas – com Hitler), podemos dizer que é a URSS a grande inspiração para a sociedade de “1984”. Motivos não faltam: expurgos, adulteração do passado, terror, criação de um “inimigo de Estado” (Goldstein é claramente inspirado em Trotski).

"Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado" - distorcendo a História. A mutabilidade do passado destrói a própria (noção de) verdade histórica. Afinal, se os registros são destruídos e a memória individual é rechaçada, que maneiras existem de comprovar que algo aconteceu ou não?

"O passado é o dizem os registros e as memórias. E como o Partido tem pleno controle de todos os registros, e igualmente do cérebro dos seus membros, segue-se que o passado é o que Partido deseja que seja."

Uma passagem curiosa no livro de Goldstein coloca a guerra como forma de gerar responsabilidade nas elites. Afinal, quando ainda era possível perder ou ganhar regras, havia uma salvaguarda de sanidade para as classes dominantes. Porém, quando o conflito bélico torna-se literalmente contínuo, deixa de existir necessidade militar e preocupação com o progresso técnico; enfim, cessa-se o perigo.

Comparação com Tocqueville: as “hierarquias” da sociedade democrática. Ao contrário de sociedades anteriores (aristocráticas), o acesso ao Partido não depende de família, de antepassados; mesmo alguém da prole pode ser da burocracia partidária. Porém, essa “igualdade de condições” é pilar para uma nova forma de estratificação: Partido Interno (2% da população; a nata da Oceania), Partido Externo (13%; é como uma classe média) e a Prole (85%; alijada das decisões políticas, goza até de certas liberdades, pois é inofensiva).


Como o LP "Diamond Dogs" (David Bowie) trabalha as temáticas do livro?
“They'll split your pretty cranium, and fill it full of air
And tell that you're eighty, but brother, you won't care
You'll be shooting up on anything, tomorrow's never there
Beware the savage jaw
Of 1984”
(1984, 00:50)

Someone to claim us, someone to follow
Someone to shame us, some brave Apollo
Someone to fool us, someone like you
We want you Big Brother, Big Brother”
(Big Brother, 01:20)

“Because of all we've seen, because of all we've said
We are the dead”
(We Are The Dead, 04:15)

Também podemos discutir manifestações sutilmente totalitárias por meio de exemplos contemporâneos: “Ato Patriota” (EUA, 2001); “Controle social da imprensa” (Brasil, 2004); “Plano Nacional de Direitos Humanos” (Brasil, 2009).

 

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