Insatisfação Crônica - parte I
I
Espelho, espelho meu! É hora de (mais) uma conversa séria! Sim, é sobre a mesma ladainha de sempre: minha insatisfação crônica.
Fui inocente de acreditar que esse nomadismo todo me traria alguma realização. Vinte e dois anos morando na Polônia, outros cinco na França e os últimos três na Itália... Mas continuo me sentindo incompleto! Sendo piegas, mudei meu exterior, mas não meu interior.
Não que minha vida seja repleta de tragédia e tristeza. Pelo contrário, acho até que falta. Porém, pouca coisa até hoje realmente me fez plenamente feliz. Não faltou variedade; já tentei de tudo, desde a universidade até a mímica. Infelizmente, nada disso foi o bastante para me deixar mais contente em viver.
Espelho, como já lhe disse várias vezes, converso contigo porque não tenho ninguém mais com quem dividir a minha vida. Passo boa parte do dia calado – afinal, sou mímico! -, e, quando chego a casa à noite, despejo tudo o que eu queria falar a você, meu reflexo de vidro.
Em parte, é por escolha minha que sou solitário. Sou um individualista incorrigível; construí minha rotina de maneira à sempre estar voltado para meu próprio bem-estar. Até meu trabalho, por envolver muito a arte, me exige pouca dedicação à vida alheia; é quase auto-suficiente, como se nem fosse necessário que os transeuntes contemplem minha mímica.
Porém, não nego que gostaria de dividir minha vida com alguém, seja com um amigo ou com uma companheira. Já tentei das duas possibilidades, mas nenhuma delas durou o bastante para se consolidar e alterar minha rotina. Steven, em Nice, e Paola, aqui em Roma, que o digam.
Minha infância foi tranqüila, sem grandes traumas, tampouco momentos de extrema felicidade. Meus pais me proporcionaram um padrão de vida razoável, embora nunca fossem muito afetuosos. Na adolescência, fiz algumas amizades, e até mantive uma ou outra com o passar dos anos. Porém, com o tempo fui perdendo o interesse por aquelas pessoas; não sei se por achá-las entediantes, ou se era eu a encarnação do tédio.
Depois disso, entrei na universidade e fiz um curso de Literatura Polonesa por três anos. Vários dos livros e autores com que tive contato naquela época até hoje me marcam. “Solaris”, de Stanislaw Lem, é até hoje meu romance sci-fi predileto, com seu tom perturbador e tão desolador. Tem uma passagem que me marcou profundamente. É mais ou menos assim: “O homem saiu para explorar outros mundos e outras civilizações sem ter explorado seu próprio labirinto de passagens escuras e câmaras secretas, e sem haver descoberto o que jaz atrás das portas que ele mesmo lacrou”. Seria muita pretensão da minha parte dizer que isso é praticamente um resumo da minha vida?
Há também aquele que leio nos momentos em que estou um pouquinho esperançoso. Adam Mickiewicz é o maior dos românticos de minha terra natal, numa época em que a Polônia sequer era independente. Sempre recorro à poesia crua de Czeslaw Milosz quando estou desiludido e às vésperas de desistir de tudo, precisando desesperadamente de uma razão para manter a fé na “realidade”.
Fui, no entanto, me chateando com a universidade. Acho que não nasci para levar uma vida erudita, formal e com um futuro, tanto profissional quanto acadêmico, tão linear. Perdoe-me pela jocosidade, espelho meu, mas considerava a maioria daqueles professores e colegas como pessoas “quadradas”! Você sabe: sem paixão, sem alma, sem carisma, sem capacidade de fugir de um caminho fácil e conhecido.
Foi aí que me decidi por fugir daquele mundo, mas não só dele; também queria dar adeus à minha família, a meus parcos e desinteressantes amigos, à minha ex-namorada Katanyna... Enfim, à Polônia e a pouca atração que ela me exercia. Após algumas semanas de burocracia (na época, eu ainda tinha paciência para isso), arranjei um passaporte e fui para o Oeste. Europeu, é claro.
Mudei-me para Nice, na França. Escolhi-a porque ela tinha um ar de “meio-termo”: era populosa (uns 300 mil habitantes), mas não tão grande quanto Paris ou Marselha; tinha clima mediterrâneo, um equilíbrio entre chuvas e calor; é visada pelos turistas, mas de difícil acesso por ficar perto dos Alpes; é uma cidade histórica, mas que não chega a ser exageradamente nostálgica como uma Veneza da vida. Além disso, não me esqueci de que, certa vez, meu professor de Literatura Positivista – Século XIX mencionou que já havia morado lá, e cobrira a cidade de elogios. Mal sabia ele que alguém ouviria seu conselho...
Sendo sucinto, fui músico de rua durante uns três anos, mas cansei e resolvi virar mímico. É dessa época que conheci Steven Von Meek, um dos poucos colegas que fiz por lá. Com o tempo, no entanto, fiquei farto daquela cidade – e dos franceses em geral -, e resolvi partir para a Itália, onde moro desde 2002. Continuo na mesma: um mímico com Ensino Superior incompleto.
Ah, ainda sobre o tal do “meio-termo”... No fundo, tudo que eu faço é pautado por uma busca da “justa medida”. Só que, muitas vezes, isso é frustrante e infrutífero; ao evitar os extremos, eu permaneço em uma espécie de zona cinza, em que nada é especialmente interessante. É como se eu fugisse da possibilidade de, experimentando a euforia e a melancolia, encontrar-me. Será, espelho meu, que meu erro é justamente esse – não ser “selvagemente ambicioso”?
Não tenho a resposta, portanto contentar-me-ei em continuar falando da minha rotina, certo? Pois bem. As ruas de Roma continuam pouco interessantes. Como sempre, algumas pessoas param para ver minha mímica, poucas delas se divertem, a maioria ignora ou não acha graça... Enfim, o de praxe. Sinto falta de alguma novidade, de algo inesperado. Afinal, seria por meio de um desses solavancos que minha patética existência passaria a ter algum sentido, sabe?
Não quero mais saber, meu caro, de hoje.