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15 dezembro 2011

Burckhardt e o Desenvolvimento da Individualidade no Homem Renascentista

(Artigo que escrevi para a disciplina Teoria da História 2. Aproveitei para enviá-lo para uma revista online; tomara que publiquem, hehe.)

Resumo: Uma das temáticas centrais de “A Cultura do Renascimento na Itália”, obra-prima de Jacob Burckhardt, é o desenvolvimento [Bildung] do indivíduo. Segundo Burckhardt, pela primeira vez na história ocidental os homens conseguiram cultivar plenamente suas personalidades e, desta forma, escapar da malha social. O propósito deste artigo é acompanhar os passos desta tese de Burckhardt, começando pela compreensão do método por ele adotado, em seguida analisando o ensaio propriamente dito e alguns de seus comentadores e, por fim, verificando o legado de “A Cultura do Renascimento na Itália” para a historiografia.

Palavras-chave: Renascimento; Individualidade; Bildung; Modernidade.

1. Introdução: Burckhardt e o resgate do Renascimento Italiano

Em certo sentido, Jacob Burckhardt (1818-1897) pode ser considerado um “homem póstumo” – categoria, aliás, criada por um de seus alunos, Friedrich Nietzsche. Seu ensaio “A Cultura do Renascimento na Itália”, publicado pela primeira vez em 1860, passou quase despercebido quando seu autor ainda estava vivo; porém, adquiriu súbita popularidade na Belle Époque (isto é, entre o fim do Século XIX e o estouro da I Guerra Mundial). Segundo Otto Maria Carpeaux, “o livro provoca uma moda européia, o culto do Renascimento, a adoração dos grandes animais ferozes de gênio artístico.” Talvez um dos motivos para este sucesso seja uma questão de status e auto-indulgência: “o burguês de dinheiro, ansioso por uma árvore genealógica, acredita reconhecer-se nesses homens geniais que devem tudo a si mesmos.” (CARPEAUX, 1999: 80)

De qualquer maneira, o êxito de “A Cultura do Renascimento na Itália” entre público e crítica levou ao reconhecimento da importância de Burckhardt para a historiografia moderna. Contemporâneo do Historicismo e pioneiro do que viria a se consolidar como História Cultural, este suíço da Basiléia teve papel decisivo na visão, predominante até hoje, do Renascimento como periodização histórica, simbolizando a ruptura entre a mentalidade da Idade Média e o nascimento do homem moderno.

A obra divide-se em seis grandes capítulos, cada um tratando de uma faceta da Renascença: “O Estado como Obra de Arte” (política), “O Desenvolvimento do Indivíduo” (valores), “O Redespertar da Antiguidade” (humanismo), “O Descobrimento do Mundo e do Homem” (produção intelectual), “A Sociabilidade e as Festividades” (hábitos e costumes) e “Moral e Religião” (moralidade, superstições e fé). Cada um deles permite discussões extremamente frutíferas, porém este artigo se focará em um tema específico, mas que atravessa todos os capítulos (em especial dois deles, “O Desenvolvimento do Indivíduo” e “O Descobrimento do Mundo e do Homem”): a questão da individualidade.

O argumento de Burckhardt é que, na Itália renascentista, se rompem os entraves medievais ao individualismo, e começam a fervilhar personalidades entregues a si próprias. “Desconhecendo limites, milhares de rostos adquirem feição própria (...); ser humano algum receia sobressair, ser e parecer diferente dos demais.” (BURCKHARDT, 2009: 146) Esta temática se relaciona com uma discussão central do humanismo desde a Antiguidade Clássica: o cultivo da personalidade, o ideal de um “homem universal”, formado mediante a Paidéia [1]. À época de Burckhardt, o conceito que melhor expressava tal projeto filosófico e educacional era a Bildung, defendida (e praticada) por artistas e intelectuais como Goethe e Humboldt.

O propósito deste artigo é verificar como o desenvolvimento da personalidade é abordado em “A Cultura do Renascimento na Itália”. Antes de entrar no ensaio propriamente dito, discutiremos brevemente a trajetória de vida e o método historiográfico de Burckhardt. Em seguida, traçaremos uma visão panorâmica da obra, pinçando a questão que nos interessa (i.e., a individualidade). Recorreremos a alguns comentadores (Cássio Fernandes, Francisco Mendonça Júnior, Pedro Caldas, Peter Burke e Peter Gay) para obter uma compreensão mais ampla do pensamento de Burckhardt. Por fim, apresentaremos algumas críticas feitas à obra e o legado deste autor para a historiografia moderna.

2. Burckhardt em sua vida e obra

2.1. A trajetória de Burckhardt até 1860

Nascido na Basiléia em 1819, Jacob Burckhardt estudou na Universidade de Berlim entre 1839 e 1842, onde foi aluno de Leopold von Ranke, considerado o “Pai do Historicismo”. Embora reconhecesse o débito intelectual que tinha para com seu mestre, e que reciprocamente este o valorizasse (Ranke o recomendou para uma cátedra na Universidade de Munique), Burckhardt seguiu um caminho bem diferente. Ao invés da história política, que era um estandarte dos historicistas, ele devotou seus esforços à história cultural.

Um dos motivos para esta guinada foram as viagens que ele fez à Itália ainda na década de 1840. Elas despertaram nele um profundo fascínio pela cultura e sociedade italianas – aliás, reforçado pelo desgosto que Burckhardt tinha pela civilização industrial encarnada nos povos do Norte: “‘Agora eu sei que jamais poderei ser verdadeiramente feliz de novo longe de Roma’, suas ruas seus jardins – uma cidade onde, por um lado, ‘não há o menor sinal de indústrias’, e, por outro, ‘o lazer fez com que a polidez florescesse feito uma arte’.” (Ibidem: 22)

A propósito, é interessante notar que o encanto deste suíço pela cultura italiana era compartilhado por literatos de outro povo cujo perfil é considerado “sóbrio” e “introspectivo”: os alemães. Goethe, que passou dois anos na Itália (1786 a 1788), inspirou-se para criar algumas das personagens e tramas de “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”; Nietzsche escreveu várias de suas obras finais em Turim, e foi nesta cidade que teve a crise de loucura que encerrou sua carreira (1889); Thomas Mann representou os doces (e mortais) encantos da paisagem italiana em “A Morte em Veneza” (1912).

Burckhardt, que lecionava na universidade de sua cidade natal desde 1843, teve a grande chance de direcionar seus estudos e pesquisas à Itália quando foi convidado por Franz Kugler a ajudá-lo a preparar uma segunda edição de seu Manual de História da Arte. É desse período que datam suas obras “A era de Constantino, o Grande” (1853) e “O Cicerone” (1855). Finalmente lhe é possível dar um rumo a seus estudos: “tratar o Renascimento italiano na totalidade de sua abrangência, porém conservando ainda aquele ponto de vista presente no plano original, (...) ‘uma grande pesquisa sobre a história do belo’.” (FERNANDES, 2006: 9-10).

2.2. O método

Em suas “Reflexões sobre a História”, Burckhardt estabelece três potências para se ter uma visão geral de uma determinada época: o Estado, a Religião e a Cultura. Interessa-lhe compreender as inter-relações entre estes três fatores, que são heterogêneos e conflituosos: “O Estado e a Religião, que são a expressão de necessidades políticas e metafísicas, reivindicam uma aceitação universal, pelo menos para o povo em cujo seio existem, se não para todo o mundo. A Cultura, porém, que corresponde às necessidades materiais e espirituais do homem, (...) para nós constitui a quintessência de tudo aquilo que se gerou espontaneamente, da vida intelectual e moral do homem...” (BURCKHARDT, 1961: 34)

A partir desta ênfase, mesmo que indireta, aos aspectos culturais, talvez seja possível entender o porquê deste historiador suíço ter se voltado à História Cultural. O seguinte trecho da aula inaugural de seu curso História da Arte na Universidade da Basiléia é enfático:

“Nós devemos falar da arte porque ela nos condiciona e nos envolve com demasiada força. (...) Nós sentimos a arte como um fenômeno histórico de primeira grandeza, como uma potência ativa em nossa vida. Ela apresenta suficientemente aspectos tangíveis que permitem apreendê-la: suas manifestações monumentais estão estreitamente ligadas à história dos povos, das religiões, das dinastias e das civilizações.” (BURCKHARDT apud MARTINS, 2010: 182)

Anos antes, na apresentação de um curso sobre a Civilização Grega, ele também fez uma interessante defesa de seu campo de estudo:

“A história da cultura quer penetrar no íntimo da humanidade pretérita e revelar o que ela era, queria, pensava, intuía e podia. (...) Uma outra vantagem da história da cultura é que ela pode proceder por reagrupamentos, e pode dar relevo aos fatos segundo a sua importância proporcional, e não é obrigada a desprezar todo sentido de proporção, como costuma ocorrer nos tratamentos antiquários e histórico-críticos.” (Ibidem: 169-170)

Há algo que, no entanto, distancia este autor de boa parte da História Cultural que se constituiu no século XX: ele adota o individualismo metodológico. Porém, como determinar a grandeza de um indivíduo, a ponto de este merecer ser estudado em específico? Para Burckhardt, “um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só podiam ser concretizadas por ele, em sua própria época e ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. O grande homem está fundamentalmente ligado ao grande fluxo central de causas e efeitos.” (Idem, 1961: 214-215)

Sendo assim, em seu próprio método Burckhardt deixava transparecer o seu enfoque nas individualidades; como veremos adiante, isso se manifesta na importância dada às biografias e às autobiografias dos italianos. Em suas anotações preparatórias para o livro de 1860, “o primeiro grupo de excertos foi dividido de acordo com uma ordenação por autor: ‘sobre Leon Battista Alberti’, ‘sobre Bandello’ e ‘sobre Dante’. Organização que revela (...) como Burckhardt centralizava em determinados indivíduos sua metodologia e sua indagação histórica. Era, de novo, a biografia surgindo no centro de seu arranjo metodológico.” (FERNANDES, 2006: 10)

Outro aspecto relevante é que, embora fosse contemporâneo do Historicismo [2], Jacob Burckhardt não se identifica com este. Embora destaque as individualidades, “em momento algum (a) perde de vista a importância da continuidade histórica, (b) analisa as crises, mas elabora uma interessante teoria de relações estruturais entre Cultura, Estado e Religião, na qual estabelece constantes antropológicas, e (c) se de fato ele desconfiava das visões por vezes anti-históricas do iluminismo, Burckhardt preferia apresentar sua crítica de maneira cética, e jamais afirmativa.” (CALDAS, 2010: 307) Pedro Caldas defende, em sintonia com Richard Sigurdson [3], que o conceito de Historicismo não é tão pertinente para entender a consciência histórica em autores como Burckhardt, sendo a idéia de Bildung (formação) mais adequada.

A definição clássica de Bildung foi enunciada por Wilhelm von Humboldt: “A verdadeira finalidade do Homem (...) é a da formação a mais alta e harmoniosa possível de suas forças em direção a uma totalidade completa e consistente.” (HUMBOLDT, 2004: 143) Análoga à Paidéia grega, tal formação ampla consiste na “realização de uma individualidade nutrida pela diversidade da experiência.” (Ibidem: 76) Sendo assim, o cultivo da personalidade individual é uma marca tanto da metodologia de Burckhardt quanto de seu objeto de estudo: o homem renascentista.

3. Um Panorama de “A Cultura do Renascimento na Itália”

Segundo Cássio Fernandes, Burckhardt compreende “a origem do Mundo Moderno não mais como um evento germânico cumprido pela Reforma Religiosa (como pensava Ranke), mas com as vestes coloridas da vida italiana num espaço de tempo mais ou menos delimitado entre a vida de Dante e o saque de Roma.” (FERNANDES, 2008: 128) Esta chave de leitura é útil, na medida em que todos os capítulos da obra parecem convergir para o mesmo ponto: é no Renascimento italiano que se configura o homem moderno em suas principais características: a individualidade e a racionalidade, tornando a organização da vida mais objetiva ao mesmo tempo em que se aflora a subjetividade. É como se a Itália fosse o palco da Bildung vislumbrada pela filosofia e literatura alemãs dos Séculos XVIII e XIX. [4]

Em “O Estado como Obra de Arte”, são analisados os efeitos da cultura sobre a política. Aquela funciona como instância de legitimação desta. O tirano é a figura máxima, pois se auto-afirma, com seu egoísmo desenfreado e sua entrega aos instintos, sobre qualquer tipo de estrutura social, inclusive a familiar. Porém, ele também se cerca de artistas para minimizar a forma ilegítima pela qual chegou ao poder. Este capítulo é marcado pelas sanguinárias disputas de poder que marcam as cidades italianas e até o Papado.

Por meio da trajetória de italianos ilustres como Alberti e Dante, o capítulo “O Desenvolvimento do Indivíduo” procura demonstrar o desenvolvimento precoce do homem moderno entre os italianos. De certa maneira, o homem cartesiano, em sua forma metódica de organizar a realidade, é pré-enunciado no Renascimento. Ao mesmo tempo, este homem renascentista não era um exemplo de calma, equilíbrio e simetria. Pelo contrário: representava uma poderosa, até mesmo demoníaca diversidade de talentos. (cf. KAHAN, 1992: 105) A sua ânsia por glória revela “a expressão assustadoramente verdadeira da mais colossal ambição e sede de grandeza, independentemente do objetivo ou resultado.” (BURCKHARDT, 2009: 162)

Em “O Redespertar da Antiguidade”, o historiador argumenta que “não foi a Antiguidade sozinha, mas a sua estreita ligação com o espírito italiano (...) que sujeitou o mundo ocidental.” (Ibidem: 177) Em outras palavras, a tomada de partida ao mesmo tempo erudita e popular pelos valores clássicos mesclou-se com algo particular aos italianos: a lembrança da própria grandeza nos tempos de Roma. Esta força espiritual influenciará consideravelmente os demais países do Ocidente. Ao longo deste 3º capítulo, a ênfase recai sobre o papel dos humanistas tanto na educação quanto na política. Sob uma vida instável e uma desvirtuada influência da Antiguidade (pois minava os princípios morais cristãos sem lhes transmitir os seus próprios), eles se tornaram as maiores vítimas da subjetividade liberta.

O capítulo “O Descobrimento do Mundo e do Homem” mostra nas mais diversas áreas (poesia, cosmografia, pintura, astronomia...) a descoberta, em sua totalidade, da substância humana. Segundo Burckhardt, “esse período desenvolve ao máximo o individualismo, conduzindo-o a seguir, ao mais diligente e multifacetado conhecimento do indivíduo, em todos os níveis. O desenvolvimento da personalidade vincula-se, essencialmente, a seu reconhecimento em si próprio e nos outros.” (Ibidem: 282) O engenho da “Divina Comédia” de Dante é um dos exemplos centrais para mostrar esta cisão entre a Idade Média e os tempos modernos.

O argumento central do 5º capítulo, “A Sociabilidade e as Festividades”, é que, em comparação com o resto da Europa, havia nas cidades italianas uma maior transição social; isto é, um maior nivelamento e fusão das camadas sociais. Enfraquece-se o próprio conceito de nobreza hereditária, na medida em que o mérito pessoal é mais valorizado que a origem familiar. Uma tese polêmica deste capítulo é a de que “a mulher gozava da mesma consideração conferida ao homem”, de tal forma que também elas ansiavam por “um desenvolvimento total e completo de sua personalidade, em todos os seus aspectos.” (Ibidem: 352-354)

Algumas das melhores passagens de “A Cultura do Renascimento na Itália” estão no capítulo final, “Moral e Religião”. Burckhardt mostra que pensadores como Maquiavel viam a crise da nação italiana bastante relacionada com a imoralidade vigente. Novamente a Antiguidade age como um mau exemplo aos homens renascentistas: “a grandeza histórica substituiu neles o ideal cristão da vida, a santidade.” (Ibidem: 382) As cidades são assoladas por jogos de azar, vendetta (vingança), relações ilícitas, prostituição, homens de absoluta perversidade (César Bórgia, p.ex.) etc. Outra questão levantada é a forte religiosidade subjetiva dos italianos, presente até nos supostamente incrédulos e “epicuristas” [5]. O livro, no entanto, se encerra com uma amarga digressão sobre a crise de fé dentre os italianos, muitas vezes por influência de doutrinas pagãs presentes nos clássicos da Antiguidade. Aliás, o teísmo (devoção positiva ao Ser Supremo), que se fortalecerá nos séculos seguintes (notavelmente entre os iluministas), tem as suas origens aqui.

4. A individualidade e suas conseqüências

Segundo Mendonça Júnior (2011: 11), o grande fio condutor de “A Cultura do Renascimento na Itália” é o surgimento do indivíduo. A individualidade, de acordo com Burckhardt nasceria da transição entre um coletivismo medieval e a possibilidade de individualismo do Renascimento. Nas palavras do próprio autor:

“Na Idade Média, (...) o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, família ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal.” (BURCKHARDT, 2009: 145)

Dentro do capítulo IV, “A Descoberta do Mundo e do Homem”, há duas passagens que explicitam esta tese. No sub-capítulo “A descoberta da beleza paisagística”, a própria relação de enumeração com a paisagem mostra como o sujeito cada vez mais escapa da malha social. É a primeira vez em que o homem se põe como indivíduo diante do mundo exterior, o que passa por uma reeducação dos olhos que molda seus juízos da exterioridade. Na Idade Média, no entanto, a paisagem era parte do sujeito; havia pouca descrição, e a consciência estava semi-desperta, pois o homem ainda estava preso por categorias sociais (as guildas e corporações de ofício, p.ex.).

As biografias e autobiografias são outra faceta do desenvolvimento deste senso de individualidade, dir-se-ia até da Bildung, da busca por um telos dos biografados. Segundo Cássio Fernandes, um dos traços fundamentais dessa nova era consistia no “impulso literário dos homens do Renascimento de construir, de um lado, um discurso íntimo que representasse sua ligação com o mundo exterior; de outro, seu interesse em narrar os episódios marcantes da vida de personagens significativos em seu tempo.” (FERNANDES, 2008: 129)

Porém, segundo Peter Gay (1990: 145), Burckhardt não via este “homem universal” de uma forma ingênua e exacerbadamente otimista. Ele sabia que o despertar do homem em toda sua plenitude e potencialidade foi ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Se por um lado essa individualidade foi condição para a grandeza, por outro ela trazia em si o egoísmo:

“O egoísmo do homem moderno, para Burckhardt, se expressa tanto no excesso de paixão política, que tenta amoldar o mundo de acordo com seus dogmas revolucionários, bem como no excesso de utilitarismo, que tenta se servir do mundo de acordo com necessidades fugazes e cambiantes.” (CALDAS, 2010: 306)

O pessimismo do historiador suíço também é indicado por Otto Maria Carpeaux, que o julga conservador, na medida em que acreditava na constância da substância humana, em todos os tempos e em todos os povos. (cf. CARPEAUX, 1999: 85) Aliás, “a salvação da civilização da Velha Europa” era o único fim de Burckhardt; para ele, o papel do intelectual limita-se a cuidar das realizações passadas, para evitar a queda na barbaria definitiva. (cf. Ibidem: 264) Sua postura apolítica é outro traço desse conservadorismo perante a Modernidade. “De fato, Burckhardt se sentia um aristocrata cultural acuado pelas massas e sua cultura. Pela sociedade de massa nutriu um desprezo poderoso, que seu aluno e amigo Nietzsche transformaria em filosofia.” (MENDONÇA JÚNIOR, 2011: 13)

5. Elogios, críticas e o legado da obra

Um dos elogios mais comuns à obra “A Cultura do Renascimento na Itália” foi a capacidade de síntese histórica de Burckhardt, ao postular que haveria uma unidade cultural para o período histórico do Renascimento italiano, considerando-o como uma entidade coesa e atravessada pelo mesmo “espírito”. (cf. GAY, 1990: 156) Para Burckhardt, “o que interessava era a continuidade da cultura, pois para ele era essa continuidade na passagem do tempo que garantia a manutenção das normas e regras que regiam a vida humana.” (MENDONÇA JÚNIOR, 2011: 13)

Outro aspecto bastante louvado é a fluidez da linguagem. Um dos motivos para a narrativa encantadora de “A Cultura do Renascimento na Itália” é a profunda intimidade do autor com o tema, fazendo com que a escolha do formato de ensaio explicitasse o tom pessoal e, por conseqüência, a paixão de Burckhardt pela cultura italiana. Mesmo não sendo um historicista, ele realiza uma das metas destes: pesquisa empírica sólida combinada com exposição narrativa acessível ao leitor comum.

Porém, Burckhardt não foi poupado de críticas. A principal delas é a de falta de conhecimento e até o desprezo pela Idade Média. Segundo Peter Burke, em seu prefácio à obra, a sugestão de que o homem medieval não via a si próprio como indivíduo, mas apenas como parte de um coletivo, “não se ajusta facilmente à existência de autobiografias datadas do Século XII, como as de Abelardo e Guibert de Nogent. O conceito de ‘desenvolvimento do indivíduo’ revela-se, na verdade de difícil fixação.” (BURKE, 2009: 31. In: BURCKHARDT, 2009)

Outras críticas pertinentes são: o pouco aprofundamento sobre os fundamentos econômicos da vida cultural; a idéia de que as mulheres gozavam de posição igualitária à dos homens (o que foi refutado pela historiografia posterior); a interpretação de certos documentos (por exemplo, a carta de Petrarca, no capítulo “A descoberta da beleza paisagística”) como sintomas do senso moderno, quando eles na verdade revelam continuidade com a mentalidade medieval etc.

Por outro lado, o legado da obra se revela maior do que os seus defeitos. Burckhardt tornou-se referência indispensável para se compreender o Renascimento italiano:

“Há uma profunda identificação entre o Renascimento italiano, concebido como época histórica, e o nome do historiador suíço Jacob Burckhardt. (...) O produto de seus estudos teve tão grande significado (...) que se tornou quase impossível pensar a Renascença italiana, como bloco histórico unitário, sem fazer referência à figura de Burckhardt, já que o esboço e o aspecto formal da época deveram-se originalmente ao alcance de sua descoberta. (...) Através dessa obra, Burckhardt apresentava uma síntese histórica do período, concedendo à infinidade de realizações dos homens na Itália da época um caráter e um sentido de unidade.” (FERNANDES apud MARTINS, 2010: 159-160)

Outra herança do historiador suíço é o próprio método que desenvolveu para o estudo da história cultural. “Quando historiadores do calibre de Johan Huizinga e Abe Warburg criticaram a obra de Burckhardt, não conseguiram abandonar a chave por ele criada. (...) Dessa forma, é impossível negar o alcance a atualidade das contribuições de Burckhardt, como sua ênfase na subjetividade da escrita da história e no relativismo cultural, bem como sua preocupação com padrões de cultura e sobre a pessoa humana.” (MENDONÇA JÚNIOR, 2011: 15)

Com Burckhardt, aprendemos que a Renascença foi um marco de nossa civilização, “guia e farol de nossa época” (BURCKHARDT, 2009: 488). A Antiguidade deixou de ser algo a ser superado e passou a ser encarada como agradável nostalgia – mesmo que após um tortuoso processo. A individualidade e até mesmo a ânsia por Bildung (formação universal) do homem moderno pode até ter origens anteriores, simultâneas (digamos, em outras partes da Europa que não as cidades italianas) ou mesmo posteriores (a Reforma), mas “A Cultura do Renascimento na Itália” tem o mérito de mostrar, com riqueza descritiva e analítica, aqueles magníficos três séculos e as personalidades que o marcaram: Dante, Leonardo, Michelangelo, Petrarca, Lourenço o Magnífico, dentre outros.

Referências Bibliográficas

BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

___________________ História da Cultura Grega: Introdução (1872); Sobre a história da arte como objeto de uma cátedra acadêmica (1874). In: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). “A História Pensada: Teoria e Métodos na Historiografia Européia do Século XIX”. São Paulo: Contexto, 2010, pp. 166-185.

__________________ Reflexões sobre a História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1961.

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A crítica conservadora de Jacob Burckhardt: uma leitura política da história da cultura. Uberlândia: “História & Perspectivas”, 2006, nº 40, pp. 303-310.

CARPEAUX, Otto Maria. Burckhardt, profeta de nossa época. In: “Ensaios Reunidos 1942-1978 – Volume 1”. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, pp. 79-85.

FERNANDES, Cássio da Silva. Apresentação – Jacob Burckhardt. In: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). “A História Pensada: Teoria e Métodos na Historiografia Européia do Século XIX”. São Paulo: Contexto, 2010, pp. 159-165.

_________________________ Jacob Burckhardt e a preparação para A Cultura do Renascimento na Itália. “Fênix – Revista de História e Estudos Culturais”, 2006, Vol.3, Ano III, nº 3, pp.1-18.

________________________ O humanismo em Basiléia e a obra de Jacob Burckhardt. In: Varella, Mollo, da Mata e Araújo, “A Dinâmica do Historicismo: Revisitando a Historiografia Moderna”. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.

GAY, Peter. O Estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

HUMBOLDT, Wilhelm von. Os Limites da Ação do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

KAHAN, Alan S. Aristocratic Liberalism: The Social and Political Thought of Jacob Burckhardt, John Stuart Mill, and Alexis de Tocqueville. New York: Oxford University Press, 1992.

MENDONÇA JÚNIOR, Francisco P. S. A Cultura do Renascimento na Itália em Jacob Burckhardt. In: “Revista Tempo de Conquista” [online], 2011, Vol. 9, pp. 1-17.



[1] Paidéia era o processo educacional de formação cultural e intelectual dos jovens nobres na Grécia Antiga. Segundo Werner Jaeger, “a palavra alemã Bildung (...) é a que designa de modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico.” Vide JAEGER, Werner. “Paidéia: a formação do homem grego”. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13.

[2] Adotaremos a seguinte caracterização do Historicismo, proposta por Pietro Rossi: a ênfase na individualidade das épocas históricas; o caráter dinâmico da verdade, ao invés de estático e metafísico; e a crítica a valores absolutos. (cf. CALDAS, 2010: 307)

[3] SIGURDSON, Richard. Jacob Burckhardt´s social & political thought. Toronto: University of Toronto Press, 2004.

[4] Não por acaso, como vimos anteriormente, Goethe inseriu tópicas e temáticas tipicamente italiana em seu “Wilhelm Meister”, muito embora a trajetória dos personagens italianos (o Harpista e sua filha Mignon) tenha um desfecho trágico.

[5] Termo utilizado pela Igreja para condenar por heresia os indivíduos que não acreditavam na imortalidade da alma.

 

Comentários:

 

 

rapaz, muito bom!


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