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Kaio

 

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17 dezembro 2011

Verossimilhança e relaxamento da fronteira entre ficção e realidade em "Jogo de Cena"

(Trabalho final que fiz para a disciplina Estética)

“... a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou necessidade.”

(ARISTÓTELES, “Arte Poética”. In: “A Poética Clássica”. São Paulo, Cultrix, 2005, p. 28)

Filme escolhido: Jogo de Cena (2006), Eduardo Coutinho.

O propósito deste trabalho é mostrar de que forma a teoria aristotélica sobre a verossimilhança pode ser pertinente para compreender a linha tênue entre ficção e realidade no documentário “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho (1933). Em primeiro lugar, revisaremos o que Aristóteles diz sobre a representação do real na tragédia. Em seguida, veremos de que forma isso ocorre no filme de Coutinho, a partir de tópicos como a mimese, a memória e a expressividade. Por fim, procuraremos compreender como o documentário, mesmo tendo o seu quê de ficção, pode ser tão potente quanto a própria realidade na qual se baseia.

Segundo Aristóteles, a tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão. Ela deve ser composta num estilo tornado agradável (com ritmo, harmonia e canto) pelo emprego separado de cada uma de suas formas. Na tragédia, a ação é apresentada não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Sua característica essencial é a inspiração do temor (medo) e da piedade (compaixão) na audiência, visando a obter a purgação (catarse) dessas emoções. (cf. ARISTÓTELES, 2005: 25)

Ainda de acordo com Aristóteles, sendo o poeta um imitador, perante as coisas este será induzido a assumir uma dessas três maneiras de imitá-las: como elas eram ou são (presentes ou passadas) como os outros dizem que são ou dizem que parecem ser (opinião pública), ou como deveriam ser (situação ideal). (cf. Ibidem: 48)

O argumento central da teoria aristotélica sobre a poética é o de que o campo da mimese não se circunscreve ao da verdade, mas ao do possível. Não por acaso, ele considera o poético/artístico mais filosófico que as narrativas históricas (cf. Ibidem: 28), pois o efeito catártico da obra pode ser potencializado por meio do uso das formas adequadas. Com isso, a arte poética pode enunciar verdades gerais através da representação fictícia do real.

“Jogo de Cena” (2006) parte de uma premissa interessante: atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram sua história de vida em um estúdio. Vinte e três delas foram selecionadas, em junho de 2006, sendo filmadas no Teatro Glauce Rocha (RJ). Três meses depois, várias atrizes interpretaram, a seu modo, as histórias contadas por estas mulheres. O objetivo de Eduardo Coutinho é a tematização do próprio documentário. Como o próprio título “Jogo de Cena” sugere, o documentário é uma cena construída, com palco, equipe e atores/atrizes. O esforço de Coutinho é explicitar toda a montagem por trás deste gênero cinematográfico, mostrando que ele não mostra fielmente “a vida como ela é”; pelo contrário, o documentarista faz recortes, escolhas, direcionamentos:

“Eduardo Coutinho levou às últimas conseqüências a sua reflexão sobre a desimportância da fronteira entre mentira e verdade, e promoveu uma instigante reflexão sobre a idéia da representação no filme Jogo de cena. Inicialmente, o espectador assume o papel que aprendeu, também ele, a representar, como provável conhecedor da obra de Coutinho, e acredita estar diante de pessoas que contam suas histórias de vida ao cineasta. Na medida em que os depoimentos se sucedem, porém, este mesmo espectador "ensaiado" experimenta a inquietação de ocupar um novo lugar: o do próprio cineasta que descobre o poder da fabulação e da representação.” (BARCELLOS, 2010)

O "jogo" proposto por Coutinho parece ser o do questionamento da mimese, ao confundir o espectador e induzi-lo a tentar identificar o que é falso e o que é verdadeiro. Os depoimentos se confundem; até mesmo as atrizes famosas (Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra) contam suas histórias, e as menos famosas são confundíveis com as entrevistadas anônimas, de forma que nunca temos certeza de quem eram as atrizes e quem eram as entrevistadas. Os depoimentos destas, aliás, acabam mexendo com as atrizes de tal maneira que nunca conseguem ser indiferentes ao texto. Uma cena particularmente interessante nesse sentido é quando Andréa Beltrão chora ao interpretar uma cena na qual a entrevistada que depôs não se emocionou; pelo contrário, relatou de forma quase estóica.

Outro aspecto relevante é que, no caso das atrizes que já são conhecidas do grande público, o espectador de “Jogo de Cena” percebe a angústia que há em representar um personagem real, reconhecendo assim a dimensão instável da arte da representação. Porém, quando as personagens são desconhecidas, a emoção de acreditar no formato de narração de momentos íntimos é retomada, mesmo sob a constante suspeita sobre a veracidade do que é dito.

Luiz Fernando Gallego observa que as atrizes adotam três estilos de interpretação bem diferentes, o que reitera a idéia de que a realidade envolve uma pluralidade de possibilidades:

“... enquanto Andréa (...) parece reviver intensamente o que sua “personagem” real teria vivido – mas em sua própria pele, ao seu modo, com outra experiência emocional -, Fernanda Torres faz uma opção mimética de identificação mais naturalista, digamos - e comenta alguma coisa neste sentido, sobre como é dar vida a uma personagem ficcional e como seria recriar uma pessoa viva cujo ‘modelo’ real estaria acessível e, portanto, passível de comparação com a interpretação dada.

Já Marilia Pêra cria uma ‘outra’ personagem bem diversa na forma do modelo ‘vivo’ que lhe foi ofertado: é a mesma narrativa, mas com outro formato; é a mesma pessoa que também acabamos de ver/ouvir; mas agora é uma ‘personagem de Marilia Pêra’, com um certo ‘distanciamento’ que atualiza a re-apresentação do que já foi visto antes, mas como que orquestrando um outro arranjo para a mesma melodia.” (GALLEGO, 2007)

Por mais que o espectador freqüentemente fique consternado com a ambígua fronteira entre ficção e realidade, entre os depoimentos “reais” e os “fictícios”, o efeito também pode ser catártico; ou seja, ver o truque e se apaixonar por ele. Em outras palavras, é como se Coutinho procurasse “educar” o espectador de documentários a ver o artifício e apreender dele não o que simula, mas o que ele tem de verdade. É como se este diretor fizesse um documentário em que o cinema imita a vida - não por substituição, mas por reverência.

Para Ismail Xavier, os documentários de Eduardo Coutinho são marcados por lances que ganham seu efeito pela relação entre o inesperado e a sanção do real. Este diretor enfatiza o valor da oralidade nos filmes de Coutinho, como uma forma deste diretor deixar os depoimentos mais intimistas: “Ao minimizar o contexto e os recursos narrativos, o documentário procura se otimizar como forma dramática feita deste embate decisivo que traz ao centro a fala.” (XAVIER, 2010: 72)

Os filmes recentes de Coutinho podem ser vistos como um modo deste diretor de enfrentar questões trazidas pela ficção moderna. Segundo Xavier, nela os personagens têm menor coerência interna, são mais erráticos e suas motivações são mais opacas. Constitui-se assim um “campo de descontinuidades”, o qual Coutinho procura trazer para os seus documentários: “a composição da cena e sua duração buscam potencializar a força do instante; produzir no encontro a irrupção de uma experiência não domesticada pelo discurso, algo que (...) retém um quê de irredutível na atuação do sujeito” (Ibidem: 70-71). Os filmes de Coutinho não são um mundo de comunicação plena, mas a exposição de um movimento nesta direção que depende do que “a combinação de método e de acaso permitam.” (Ibidem: 78)

Por outro lado, o que há de ficção em “Jogo de Cena” pode transmitir mais realidade do que o faria um mero registro documental que ainda não tenha provocado um “entendimento” no espectador. Como já foi dito, este filme torna menos nítidas as fronteiras do que é documentário e do que é ficção ao mesclar os limites do que é “realidade” e do que seria “desempenho teatral”, pois as atrizes acabam por colocar conceitos e idéias pessoais, comentam dificuldades e até entregam “truques” (cf. GALLEGO, 2007).

Portanto, é preciso reiterar que, em “Jogo de Cena”, Coutinho postula que mesmo nos documentários há uma mistura entre a dimensão real e a imaginária. Por um lado, a espontaneidade do entrevistado nunca é absoluta. Por outro, é preciso levar em conta a verossimilhança, a construção que parece real, e é justamente nela que uma obra poética pode ser mais universal, mais verdadeira justamente quando é mais ficcional. A seguinte reflexão de Felipe Bragança nos permite explicitar a pertinência deste conceito aristotélico de “verossimilhança” para compreender os jogos de cena do documentário de Coutinho:

“A verdade em Coutinho não é nunca aquela que imita, mas aquela que propõe um maravilhamento, uma descoberta, uma generosidade desinteressada de se deixar levar pelo drama, o drama como aquilo que as atrizes, as inspirações, o diretor, a câmera e a equipe compartilham como desejo de afeto, de afetar.” (BRAGANÇA, 2007)

É possível traçar uma analogia entre “Jogo de Cena” e um pseudo-documentário de Orson Welles, chamado “Verdades e Mentiras” (“F for Fake”, 1974). A partir da história de um falsificador de pinturas, o diretor traz indagações relativas ao sentido da mentira na arte. Welles encerra seu documentário ignorando (ou desafiando?) um dos valores mais buscados pelo gênero documental: o seu caráter verídico. O filme põe no espectador em dúvida sobre o que lhe fora apresentado, “e o que lhe resta é o questionamento de tudo aquilo que delimita (ou que poderia delimitar) o que é o real e o que é falso, sem propor respostas, mas apontando inúmeras e insolúveis dúvidas que perpassam a mera questão temática do enredo, invadindo questões que dizem respeito desde o próprio fazer cinematográfico até o fato de ser colocado como espectador.” (NOVO, 2009)

Assim como o documentário de Welles tem cenas fictícias que soam tão verossímeis que poderiam ser tomadas como verdadeiras (por exemplo, a anedota sobre uma amante de Picasso, a qual pouco depois de ser contada tem a sua veracidade desmentida), isso também ocorre em “Jogo de Cena” no depoimento de uma das atrizes, que, embora parecesse uma entrevistada de tão intensa que foi em sua fala, encerra-a com a frase: “Foi isso o que ela contou.”

Outra dimensão que pode ser ressaltada em “Jogo de Cena” é a maneira como a pessoa entrevistada lida com suas lembranças e memórias. Mesmo quando busca ser o mais fiel possível, é inevitável que a recordação do passado seja “editada”, construída de tal forma que parece ter início, meio e fim. São narrativas que se fecham, que têm um sentido, criadas a partir de uma vida que não é tão linear assim. Em uma entrevista, o próprio Coutinho ressalta este aspecto: “Você conta a sua infância e é uma infância que está na sua memória, feita metade de esquecimento, metade de verdade. O que é verdade? Isso passa a ter totalmente desimportante.” (BARCELLOS, 2010)

Um último ponto sobre o qual podemos tratar é a relação do cinema (e, portanto, do documentário) com o mundo; isto é, a expressividade da obra ficcional, e como ela difere de outras artes. Para isso, podemos recorrer à seguinte reflexão de Merleau-Ponty sobre psicologia e cinema:

“Eis porque a expressão humana pode ser tão arrebatadora no cinema: este não nos proporciona os pensamentos do homem, como o fez o romance durante muito tempo; dá-nos a sua conduta ou o seu comportamento, e nos oferece diretamente esse modo peculiar de estar no mundo, de lidar com as coisas e com os seus semelhantes, que permanece, para nós, visíveis nos gestos, no olhar, na mímica, definindo com clareza cada pessoa que conhecemos.” (MERLEAU-PONTY, 1969: 30)

No cinema, a percepção se corporifica: o amor, o ódio ou a cólera não são “realidades interiores” (como na literatura), mas sim tipos de comportamento, estilos de conduta visíveis. Sendo assim, a arte cinematográfica configura situações em que o sujeito “se lança” ao mundo. Nesse ponto podemos retomar a verossimilhança aristotélica, pois, se o que importa no cinema é a existência no mundo, então é legítimo que os documentários afrouxem (e explicitem este afrouxamento) as barreiras entre ficção e realidade, na medida em que o fundamental não é a documentação fiel do acontecido, mas a capacidade de emocionar, de despertar afeto e até empatia no espectador.

Segundo Marta Barcellos, “uma vez que as narrativas ocupam o foco principal de interesse, o cineasta de certa forma pode abandonar as explicações que costumavam acompanhar suas entrevistas sobre documentários anteriores”, pois, no caso de “Jogo de Cena”, o caráter de fabulação e encenação contido nos depoimentos de personagens reais é tornado visível. (cf. BARCELLOS, 2010). E é com este argumento que encerramos este trabalho: o mérito de Coutinho em “Jogo de Cena” é ter desafiado as próprias convenções do documentário para “tirar a máscara”, mostrar que mesmo este é ficção, representação do real.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES, “Arte Poética”. In: “A Poética Clássica”. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo, Cultrix, 2005.

BARCELLOS, Marta. “Ninguém é dono da boa história”, 2010. Fonte: http://www.digestivocultural.com/colunistas/imprimir.asp?codigo=3205

BRAGANÇA, Felipe. “(Re)viver a vida”. Fonte: http://www.revistacinetica.com.br/jogodecenafelipe.htm

GALLEGO, Luiz Fernando. “Ficções Verdadeiras”. Fonte: http://criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?artigo=1411

MERLEAU-PONTY. “O cinema e a nova psicologia”. In: GRÜNNEWALD, José Lino (org.). “A idéia do cinema”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, pp. 15-32.

NOVO, Raoni Reis. “F for Fake (Orson Welles, 1974”). Fonte: http://www.ufscar.br/rua/site/?p=1467

XAVIER, Ismail. “Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. In: MIGLIORIN, Cezar (org.). “Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje”. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010, v. 1, pp. 27-42.

 

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