"Então, o que é que vai ser, hein?"
Passaram-se dois anos desde que assisti ao filme de Stanley Kubrick, e enfim eu li o livro que o inspirou. Para a minha surpresa, o romance sci-fi consegue ser ainda melhor do que a brilhante película. O principal motivo para isso, é claro, reside no fato de que o final do livro é diferente - e melhor. Enquanto no filme de Kubrick o desfecho passa a sensação de auto-indulgência e cinismo, o texto de Burgess se encerra com uma bela reflexão sobre amadurecimento. Alex DeLarge, nas 10 páginas finais, começa a enxergar a realidade sem o egoísmo niilista de sua adolescência, e isso sim seria sua verdadeira cura, e não apenas voltar a sonhar normalmente com o bom e velho entra-e-sai com devotchkas krikando.
A trama de "Laranja Mecânica", tanto no cenários quanto nos personagens, é praticamente um sinônimo da palavra "estiloso". Anthony Burgess elaborou uma ficção científica que, apesar de ter suas distopias sociopolíticas, investe muito em problemáticas concretas, cotidianas. É justamente nisso que o livro se diferencia de "1984" e "Admirável Mundo Novo", pois a sociedade apresentada soa muito mais verossímil, visto que discutir violência, delinqüência juvenil, drogas e a condição das prisões é algo bem próximo do dia-a-dia de um leitor de 1962 (ano de publicação da obra) ou um de 2008.
Outro aspecto a se ressaltar é o genial vocabulário elaborado por Burgess para satirizar as gírias das tribos urbanas. As expressões nadsat, que combinam russo com pseudo-elizabetano e o linguajar das massas britânicas dos anos 60, tornam a narrativa em 1ª pessoa de Alex mais envolvente e excêntrica. Mesmo o leitor mais ambientado no universo "Laranja Mecânica" vez ou outra acaba tendo que dar uma olhada no glossário para conferir se entendeu ou não o significado das gírias. Imaginem então os glupis (digo isso mesmo sabendo que eu já fui um deles, como vocês descobrirão no próximo parágrafo)...
Também preciso dizer que revi muitos dos conceitos que construí sobre o enredo depois que li o livro. Se, em meados de 2006, eu achava engraçado e "digno de gargalhadas" o sofrimento de Alex DeLarge durante o Tratamento Ludovico, agora já consigo entender a crueldade transmitida por tal passagem da obra. Em outras palavras, deixei o tolo sadismo que cultivava quando percebi que o verdadeiro sádico da história era o Estado, os bratchnis que fizeram uma lavagem cerebral no protagonista em troca de menos tempo na prisão. Ele foi cobaia de uma técnica que lhe retirou uma liberdade, invalidando outra: valeria a pena ter saído da cadeia se o indivíduo não pode mais pensar ou fazer as coisas de que gosta, visto que seu corpo e sua mente foram condicionados a não pensá-las e/ou fazê-las? Até que ponto as autoridades têm o direito de manipular até os pensamentos de cada um? Definitivamente, isso não é algo para se rir, e eu fui estúpido ao não ter entendido essa mensagem há dois anos. Bem, antes tarde do que nunca.
Enfim, "Laranja Mecânica" é uma experiência literária fora de série. Seja nos aspectos temáticos ou estruturais, eis um livro que consegue ser subversivo, libertário, contundente e perturbador. "Ó, meus irmãos, lembrai-vos de quando em vez deste que era vosso pequeno Alex. Amém. E aquela kal total."